São Gabriel, Maomé e o Islamismo

Pe. Julio Maria espiritualidade

Muito se fala sobre o islamismo, mas pouco se sabe sobre ele.

SÃO GABRIEL, MAOMÉ E O ISLAMISMO

Pe. JÚLIO MARIA, S.D.N.


1.a Edição

1954

EDITORA "O LUTADOR"

Manhumirim - Minas 

lmprimatur

Caratinga, 25 de março de 1945.
João Cavati C. M.
Bispo de Caratinga CARTA DO REVMO. CENSOR, Pe.

ANGELO CONTESSOTTO, S-].
Município de Tijucas, Santa Catarina.

 

Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor, Laudetur Jesus Christus.
Após atenta leitura, devolvo às sagradas mãos de V. Excia., com o nihil obstat à impressão, o sólido e oportuno trabalho: São Gabriel - Moamé e o Islamismo - do saudoso batalhador de Manhumirim, tão súbita e tragicamente arrebatado da luta jornalística, em fins de dezembro pp.
É mais uma das muitas provas do grande zelo que inflamava o coração de apóstolo do inolvidável P. Júlio Maria. Esta nova trilogia póstuma, a exemplo do Bispo de Hipona, ataca rijamente o err respeitando a quem erra. Não há adversário que não tenha algo de bom. Faz bem às almas retas ver como o nobre Autor, neste seu testamento, reconhece as boas qualidades no campo inimigo, mesmo tratando-se de um adversário tão figadal da Cristandade. Em nossos dias, este belo exemplo torna-se oportuníssimo espezinhar um adversário simplesmente pela sua humilde origem, mostrando-lhe a cada passo os pés de barro, além de não ser muito objetivo é muito pouco imparcial.
Deus guarde a. V. Excia Revma.


De V. Excia. servo em Cristo.
P. Angelo Contessotto S. J.

A S. Excia. Rvma.
D: João Cavati C. M.
Bispo de Caratinga Minas

PREFÁCIO

O novo livro que a "Editora O Lutador" ora publica é o último trabalho do saudoso Pe. Júlio Maria, que deixou uma obra tão vasta e multiforme como só deixa­ram semelhante alguns Padres da Igreja.
É o último que saiu de sua pena chamejante. As derradeiras páginas foram encontradas sobre sua mesa quando na trágica noite de 24 de dezembro de 1944 introduzimos em seu modesto quarto aquele que já não era mais deste mundo.
Este livro é, pois, uma relíquia preciosa, que oferecemos aos milhares de leitores e apreciadores da obra do grande Pe. Júlio Maria. Pode parecer que sua leitura não tenha interesse, pelo assunto que versa. Além disto, publicado somente nove anos após a redação, afigura-se ainda mais que o livro perde totalmente a razão de ser.
Mas exatamente isto é que faz jus à nossa curiosidade e admiração. É uma obra que não pode e não deve ficar desconhecida, porque a última de um autor tão cheio de méritos.

* * *

Poderia alguém perguntar por que somente depois de nove anos se publica enfim tal preciosidade. São destes acontecimentos que a gente não sabe explicar. Reconhecemos que foi verdadeiro descuido de quantos continuamos a desenvolver e propagar sua maravilhosa obra.
A morte do saudoso autor, nas conjunturas em que se deu, deixou-nos estarrecidos e perplexos. Roubou-nos a presença de espírito em muitos pontos. Nada mais natural. Seria preciso não sermos filhos para que nos acontecesse diferentemente do que aconteceu. Assim, cremos, se justifica plenamente o lapso de terem permanecido entre papéis velhos, até agora, os originais do presente livro.

* * *

Afoitamo-nos, afinal, em dizer que o livro não perdeu mas ganhou atualidade com a tardança da publicação. Ele vai ser agora mais apreciado como relíquia de um grande morto. Vai ser lido com mais sofreguidão pelos que, saudosos de seus escritos inéditos, vão reencontrá-lo nestas páginas, como redivivo, tratando um assusto que nunca tratara, apresentando-se com as roupagens sempre autênticas de seu estilo alerta e vibrante.
Se o assunto é sem aplicação - porque não temos, creio, o Maometismo como um perigo religioso no Brasil, presentemente, - o fundo histórico é sempre útil e continua a ser interessante para todos os tempos. Além disto, o empolgante da narrativa, na pena vibrante que a faz, toma vulto incomparável. Tem-se a impressão de um romance histórico.

* * *

Não é, entretanto, romance este livro sobre Maomé, pois não há aí ficção, criação e caracterização de personagens na grande trama da narrativa. Não é romance.
É a verdadeira história, guerreira, épica em certos transes, duma figura que deixou rastro nos fastos religiosos do mundo oriental. E esta história vai escrita com proficiência e encanto.
Há sempre no Pe. Júlio Maria a mão do teólogo, que analisa os acontecimentos à luz da fé. Descreve, mas não faz simplesmente descrição. Analisa. Critica. Mostra senões. E mostra também qualidades, até nos próprios partidários do erro. Esta particularidade do talento do Pe. Júlio Maria, outrora tão bem refletida noutro livro paralelo- "0 CRISTO, O PAPA E A IGREJA" - aqui reaparece com igual vulto e alerteza.
Não hesito em dizer que este livro terá numerosos leitores e já sai a lume com o triunfo assegurado.
Que ele realize nas almas o bem almejado pelo ilustre Autor.

Pe. ANTÔNIO MIRANDA, SDN.
Manhumirim; 20/5/53.

 

INTRODUÇÃO

Jamais me passara pelo pensamento escrever, um dia, a vida do fundador do Islamismo, pela razão muito simples de ignorar a existência de muçulmanos em nossa querida Pátria Brasileira.
Um vigário brasileiro tirou-me o véu da ilusão, escrevendo que em sua paróquia existe sofrível número de maometanos... famílias, aliás boas, diz ele, porém ignorantes da própria seita como da religião dos outros.
Pensa ele que uma exposição sucinta, clara e simples, da vida e doutrina de Maomé, e da Expansão do Islamismo, seria um meio de esclarecer os muçulmanos e os católicos, dando aos primeiros, uma prova inconcussa da origem completamente humana da sua seita, e aos segundos, mais convicção e firmeza na profissão prática da sua religião, a única divina.
Tal é a razão do presente trabalho, que completa estudos anteriores já publicados, sobre: "O CRISTO, O PAPA E A IGREJA", "O DIABO, LUTERO E O PROTESTANTISMO"; e, agora, "GABRIEL, MAOMÉ E O ISLAMISMO".
Maomé atribuiu as suas revelações a S. Gabriel; eis porque o Arcanjo aparece aqui, em disparate, ao lado de Maomé e da seita fundada por ele.
Possam estas linhas projetar um raio de luz sobre as almas e orientá-las para a verdade.
É a única aspiração do autor.

P. JÚLIO MARIA, S. D. N.

 

CAPÍTULO I

A ARÁBIA NOS TEMPOS DE MAOMÉ

Para se compreender a ação de Maomé, importa conhecer o meio em que exerceu sua atividade de reformador.
A Arábia não é somente povoada de árabes, como nem todos os árabes residem na Arábia.
Não há uma raça árabe, como não há uma raça cristã. Antes de Maomé, existia uma raça nômade, ardente, sempre em guerra, que se foi modificando pouco a pouco, pela mistura de outras nações, de modo que, hoje em dia, dificilmente se encontra o tipo autêntico do árabe de outrora.
A Ásia ocidental adianta-se da Síria, na direção do Oceano Índico, tendo a forma de um vasto trapézio, unido ao Egito pelo istmo de Suez, banhado ao ocidente pelo Mar Vermelho e ao oriente pelo Eufrates. Eis a Arábia.
Este país, cujas tradições vão tão longe, que os mercadores percorrem e que forneceu inúmeras lendas e narrativas aos poetas e historiadores, ainda hoje é mal conhecido, devido ao fanatismo de seus habitantes.
Os árabes não usam nome de família, mas se distinguem pelo nome do pai, antecedido pela partícula "BEN". O prefixo "ABU" significa possuidor.
Fogoso como o seu corcel, sóbrio como o seu camelo, o árabe é supersticioso, sanguinário, mas generoso para com seus amigos. A vingança passa de geração em geração e faz parte da sua religião, de modo que raramente perdoa o sectário uma ofensa recebida .
A língua dos árabes é animada, pitoresca, expressiva. Sua imaginação, viva e fecunda, e o entusiasmo das paixões o fazem propenso à poesia, miscelânea de verso e prosa harmônica, a que um idioma flexível e rico oferece grande cópia de rimas.
A poesia era considerada pelos árabes como inspiração divina, e convém notar esta particularidade que empresta um vislumbre de verdade às visões do nosso herói Maomé.
Quando algum poeta se revelava na tribo, eram convidados os amigos para um alegre banquete, e proclamava-se a nova glória ao som da trombeta.
A poesia árabe, em vez de consistir numa obra de arte como a nossa, ou de ser animada por ficções místicas como a dos gregos e indus, é a expansão espontânea de paixões ardentes, de desejos impetuosos, de impulsos de amor ou de vingança. Nutre-se de parábolas, de enigmas, de sentenças, por meio de uma linguagem figurada e de imagens desregradas.
Segundo as tradições, os árabes são descendentes de Sem, por Heber e Katan, e de Ismael, filho de Agar; deste modo se dizem descendentes do Patriarca Abraão, tendo no começo a mesma religião e as mesmas tradições que os Israelitas. Como eles, eram circuncisos e acreditavam na existência de um só Deus.
No decorrer dos tempos, caíram na idolatria, adorando, além de Deus, os astros e as inteligências que os dirigem. Oravam três vezes por dia: ao nascer do sol, com oito adorações, prostrando-se três vezes a cada uma; ao meio dia e à noite, com cinco adorações.
Sendo tradição sua que, tendo os pais do gênero humano visto no paraíso uma casa perante a qual se prostravam os anjos em adoração, quiseram imitá-la sobre a terra, e Abrahom ou Ismael construiu em Meca, pelo seu modelo, a CAABA, ou casa quadrada, santuário de toda a Arábia.
Guardou-se nesta Caaba a pedra negra. núcleo primitivo da terra, dizem eles, outrora rubi flamejante, que, caindo do Céu, iluminou toda a Arábia com os clarões da aurora; foi-se esta pedra apagando e enegrecendo, à medida que se pervertiam os homens, e só tornará a brilhar no dia do juízo.
Os devotos iam todos os anos, em peregrinação, visitar esta casa sagrada, em volta da qual circulavam sete vezes em passo rápido, beijando sete vezes a pedra e percorrendo outras tantas as montanhas vizinhas.
A Arábia, antes de Maomé, não conhecia união alguma, política ou religiosa.
As tribos do centro e do norte, cujo conjunto for­mava os Ismaelitas, eram apegadas ao velho paganismo semítico.
As tribos do sul (Yemen) foram durante um tempo governadas por uma dinastia cristã da Abissínia e pertenciam à Pérsia, no tempo do profeta. Encontravam-se ali bastantes cristãos e judeus. O centro pertencia às tribos nômades, quase exclusivamente pagãs.
A capital Meca, em razão de seu antigo santuário, a Caaba, constituía o centro religioso e comercial mais importante.
Uma grande romaria e uma feira nacional reuniam aí as várias populações do país. Havia lá um certo número de cristãos, enquanto bastantes judeus povoavam a cidade vizinha YATRIB, denominada mais tarde Medina.
A Arábia tinha vários bispos cristãos, e contava um bom número de mártires em tempos de perseguição por que havia passado. O Cristianismo, porém, não chegou a implantar-se em todo o país, localizou-se nas regiões do noroeste e sudoeste.
Qual é o Deus que se adorava na Caaba? A tradição islamítica ortodoxa diz que era ALAR, o Deus único.
É certo, porém, que, ao lado do Deus único, se adoravam ídolos, entre os quais a divindade moabita Hubal e as três divindades: el-Lat, el Ozza e Mariãt, que se diziam filhos de Alah, do Deus único.
A Caaba era, deste modo, um verdadeiro santuário politeísta; certas tradições pretendem que ali se prestava também homenagem a Jesus e Maria.
Naquela interpenetração de pagãos, judeus e cristãos se havia formado uma religião que não era mais nenhuma das três originais, uma espécie de ecletismo em que se tomavam ou rejeitavam, conforme os gostos e antipatias particulares, crenças e práticas piedosas.
É nesse ambiente impregnado de superstição e de meias religiões que devia nascer Maomé, o grande reformador da nação e o fundador do Islamismo.
A Arábia estava madura para uma revolução religiosa, de que o Cristianismo, em certa medida, havia facilitado a execução, faltando apenas o homem apropriado para tomar a frente do movimento.
O mesmo fenômeno, aliás, aconteceu com todas as revoluções religiosas.
Lutero apareceu na época em que a Alemanha dividida, entregue às paixões e à exaltação, queria sacudir o jugo da autoridade. Fora dessa época, Lutero teria sido apenas um comunista.
Maomé, igualmente, apareceu na época preparada pela falta de uma religião certa, conhecida, quando todos sentiam a necessidade de orientação firme e segura.
Se a Igreja Cristã tivesse tido uma expansão mais larga e mais profunda, bastante forte para formar o espírito e orientar a alma das populações árabes, o Islam não teria vingado, ou teria ficado apenas como uma seita regional, como o são hoje as novas seitas protestantes, inventadas a cada passo..
aqui vai começar a história do Islam, pela aparição e a atividade de Maomé, que se dirá "o profeta de Deus", inspirado pelo Arcanjo S. Gabriel, que conhecia de nome e de ofício, pelo contato dos judeus e dos cristãos.
Convém, no entanto, notar que S. Gabriel nada tem com Maomé nem com as pretensas revelações que este lhe atribui.
O glorioso Arcanjo no sistema de Maomé serve apenas de anzol para atrair e de véu para encobrir o que é do homem, quando esse homem o quer atribuir a Deus.

CAPÍTULO II

PRIMEIROS ANOS DE MAOMÉ


A data tradicional do nascimento de Maomé é o ano 570 depois de Jesus Cristo. A primeira infância do futuro reformador fica envolta nos véus meio transparentes da história e da lenda.
Nasceu em Meca. Sua mãe Amina, já viúva, era de condição medíocre, apesar de ser de uma família bastante opulenta. Após 6 anos, morreu, deixando o filhinho em completa orfandade de pai e mãe.
O pai de Amina, chamado Abdalah, pertencente ao grupo dos Hachimitas, fração importante dos Coraichitas, recolheu o órfão que pretendia educar; porém, tendo falecido pouco tempo depois, o menino ficou entregue a seu tio Abon-Talib.
Estes pormenores nos são revelados pelo próprio Maomé em seu Alcorão, onde ele faz dizer ao anjo Gabriel: Não eras tu órfão e Deus não te recolheu?
Ele te encontrou desviado e te guiou!
Ele te encontrou pobre e te enriqueceu!
Abon-Talib educou o órfão com grande carinho.
Não sendo rico, não pôde dar a seu filho adotivo uma educação esmerada, mas orientou-o para o comércio, o seu próprio ramo de vida.
O menino era inteligente, observador das coisas e dos fatos, e visivelmente inclinado às práticas religiosas.
De um caráter sério, pensativo, sonhador, não apreciava as festas barulhentas nem as conversas prolongadas.
Sentia em si uma propensão para a vida solitária, para a poesia sonhadora, para o misticismo da solidão, que a sua imaginação ardente povoava de seres invisíveis.
Não era ele, como se tem pretendido às vezes, um doente, um epiléptico. Ao contrário, sentia em si uma vida ardente, transbordante, porém repleta de um espiritualismo obsedante, que o colocava muito acima do buliçoso materialismo de seus patrícios.
Seu tio o estimava muito, e levava sempre o menino em sua companhia, admirando ao mesmo tempo a sua inteligência precoce, o seu natural ponderado e sério, o seu traquejo social impecável e a profundeza das suas observações e palavras.
Comerciante como era, sem instrução, Abon-Talib, nem sequer se lembrava de cultivar o espírito de seu sobrinho, mas pensava unicamente em adestrá-lo para a vida comercial. Participava ele das grandes caravanas que iam regularmente para Okad, na Síria, através dos imensos desertos e dos vales do Oued Rouma e do Mar morto.
Conta-se que, numa destas viagens, o jovem Maomé teria encontrado um Bispo Cristão, Gous ben Saído, Bispo no Nejran.
Era um ancião de barbas brancas, que foi durante muitos anos o grande apóstolo do deserto e árbitro dos árabes. Montado em seu camelo e sem outro púlpito além do arqueado dorso do animal, falava e instruía o povo que o cercava com veneração; tomava por testemunhas (como o fará mais tarde o Alcorão, n o qual várias suratas oferecem com essas pregações notável semelhança, até mesmo nas palavras) o céu, o mar, a noite, as estrelas .
O jovem Maomé, de alma poética, ardente, bebia as palavras sublimes do Prelado Cristão, que impressionavam profundamente o seu espírito e sua imaginação.
O Bispo Gous falava à multidão dos guerreiros e mercadores da inutilidade da glória e das riquezas. Dizia, ou antes recitava, no estilo oral de frases místicas, que era então a forma da eloquência: "Ó homens, ouvi e compreendei: Quem vive morre, e quem morre passou.
O que tem de ser será.
Noite tenebrosa, céu constelado, Ondas revoltas, estrelas cintilantes.
Esplendor e obscuridade, igualdade e justiça, Alimentos e bebidas, roupagens e montarias, Que vejo? Os homens passam e não voltam, Serão seus leitos tão agradáveis, Que não se querem mais erguer?
Ou, abandonados, não têm quem os acorde?
O homem não se limita a este mundo; ele tem um outro destino.
A sua pátria é o Céu, a casa de Deus, Que o criou à sua imagem; Somos na terra como a chuva, Que Deus manda fecundar as plantas.
As plantas crescem preparando o seu fruto; Nós somos estas plantas, o fruto do bem.
O bem que devemos produzir na terra é oferecer a Deus para remir os nossos pecados E obter dele a recompensa eterna."
Assim falava horas infindáveis, desenvolvendo e variando sempre as imagens, alternando-as com sentenças e provérbios, sem aborrecer o auditório, que amava loucamente esses recitativos harmoniosos, essas pérolas recolhidas por um mestre hábil.
Muitos anos mais tarde, Maomé ainda se lembrava do Bispo Gous pregando do alto do seu camelo, e pedia às vezes a Abou-Bakr que lhe recitasse um de seus discursos.
Foi essa, sem dúvida, uma das primeiras influências cristãs que ele experimentou.
Tais viagens, repetidas várias vezes, e em diversas direções, abriram novos horizontes aos olhos do jovem Maomé.
Ativo, inteligente, perspicaz como era, dotado de um exterior simpático, de uma imaginação fecunda, de uma palavra fácil e imaginosa, o jovem cameleiro ia conquistando a amizade de seus companheiros e senhores.
Nas longas noites, deitado ao lado de seu camelo, Maomé, sonhador, cantava, inventava versos suaves, que embalavam o sono dos caravaneiros e excitavam a admiração dos seus camaradas.
Entre as grandes fortunas de Meca, contava-se uma viúva chamada KHADID]A, da tribo Coraichita, que por duas vezes fôra casada com ricos comerciantes.
Um de seus empregados que viajava com Maomé e apreciava esse. mancebo sensato e honesto, recomendou-o à viúva.
A figura agradável, a beleza viril, a fisionomia franca desse jovem árabe de vinte e cinco anos inspiraram-lhe tanta confiança que ela o tomou ao seu serviço.
Maomé tomou-se o homem de confiança da rica viúva, dirigindo suas caravanas através de toda a península. Os negócios de Khadidja corriam maravilhosamente, ao ponto que um dia, depois de uma importante excursão bem sucedida, a viúva resolveu casar-se com o seu empregado.
Maomé, apesar da diferença de idade - ele com 25 anos e a viúva com 40 - aceitou e, desde este dia, tornou-se, pela fortuna de sua mulher, um personagem de certa importância, em Meca.
A tradição conta que o seu lar foi feliz e que Maomé foi sempre fiel à sua consorte. Entretanto, uma mudança visível vai-se operando nele. Mudança não repentina, mas fruto de uma disposição latente, refletida, que esperava apenas a ocasião favorável para se manifestar publicamente: esta mudança é a obsessão religiosa e a ambição do poder.
Sem ter uma ideia nítida da religião, de Deus e da vida futura, Maomé sente em si uma aspiração que ele mesmo não compreende, mas que o impele a uma prática mais completa da verdade... Mas, que é a verdade?
O que vê em redor de si não é a verdade . A vida que levam seus patrícios não está dentro da verdade.
Os usurários que pululam em Meca e comandam as caravanas não estão na verdade.
Os beduínos ladrões e anárquicos, os aventureiros sem escrúpulo, os negociantes desonestos. não podem estar na verdade: esquecem-se de qualquer coisa de essencial.
Os ídolos que montam guarda em volta da Caaba não são verdadeiros.
O deus Hobal, de grandes barbas e roupas espalhafatosas, embebidas de perfumes, não é um deus verdadeiro.
Como conhecer a verdadeira religião?
Será a dos judeus, tão poderosos em Yatrib e no oásis de Hijaz?
Será a dos cristãos, detentores de um livro misterioso que impõe respeito... e de cujo chefe ele se lembrava - o Bispo Gous, cuja figura majestosa tinha um como reflexo do Céu, e cuja palavra era tão divina?
Maomé apreciava esses cristãos em suas viagens.
Mesmo nos arredores de Meca eram bastante numerosos, sobretudo entre os escravos vindos da Abissínia.
Ele se sente atraído por esta religião, mas conhece-a muito mal. Precisava de um esclarecimento: procurava-o, ora com um cristão, ora com os judeus, ora com os pagãos mais sensatos, fazendo-se, deste modo, uma percepção mais extensa da religião em geral, sem, entretanto, conceber qual a religião verdadeira.
Ao lado desta aspiração pela verdade, o jovem esposo de Khadidja, agora rico e poderoso negociante de Meca, sente-se chamado a dominar, a reformar, a rasgar novos horizontes na vida materialista, estreita e egoísta dos seus patrícios.
As várias tribos de árabes estavam divididas, sempre em guerra umas contra as outras, sem encontrar uma autoridade segura, dominante, que as orientasse para a união e o progresso.
Tudo isso começava a apontar na ardente imaginação de Maomé... tudo isso, dia por dia, ia tomando corpo em seu espírito. Eram projetos... eram ideias!...
longínquas, porém não irrealizáveis.
E o jovem árabe pensava, interrogava, observava com uma insistência e uma tenacidade que foi notada por todos aqueles que o cercavam.

CAPITULO III

A OBSESSÃO RELIGIOSA

Várias opiniões têm sido emitidas sobre o estado de alma e de espírito de Maomé.
Pensam uns que era um doente, um histérico, epiléptico, visionário. Tal opinião, embora admitida por muitos e veiculada em várias vidas de Maomé, não parece, entretanto, resistir a uma observação atenta e a um estudo sério da vida e sobretudo das guerras do fundador muçulmano. Parece-nos difícil coordenar os ataques, crises e debilitamento de tal moléstia com a vida agitada, violenta e tenaz do pseudo-profeta. Aliás suas palavras denotam reflexão, inteligência, perseverança, tenacidade, qualidades que não se concebem informando uma personalidade doentia.
Parece-nos mais lógico acreditar na sinceridade de Maomé. Ele tinha sentimentos religiosos, não se pode negar, e até sentimentos exagerados a esse respeito, desviados, é natural, pela ignorância e pelas ideias do ambiente em que vivia.
Não era letrado; ele mesmo confessa que não recebeu nenhuma instrução. Mas tinha um grande espírito de observação, de modo que a experiência adquirida pela prática, no comércio e nas viagens, deu-lhe noções bastante claras e extensas sobre a vida, os abusos e a miséria humana e aspirações para um ideal superior ao complexo que o circundava.
A tradição conta que um primo da sua mulher Khadidja, chamado Waraca Ben Neroval era cristão fervoroso e instruído, de modo que, vivendo em certo tempo na intimidade de Maomé, deve ter-lhe dado bastantes conhecimentos sobre a religião de Jesus Cristo e as práticas de piedade.
A variedade e diferença de religiões professadas na Síria: cristãos, judeus, pagãos, fetichistas, etc., dera ao jovem árabe uma ideia falsa da religião, como hoje, em países protestantes, divididos por centenas de seitas, nasce a ideia de que são os homens que fazem a religião. E fazem-na conforme as necessidades da época, para extirpar abusos e desenvolver um bem determinado.
Em tal ambiente, apodera-se de certos homens bem intencionados, mas ignorantes, um certo fanatismo que excita neles uma obsessão religiosa e os lança em novos empreendimentos, ou mesmo os faz fundar novas seitas, como vemos hoje ainda entre os protestantes.
Parece-nos ter sido o caso de Maomé.
Ele tinha uma noção bastante certa de Deus, da sua unidade, da sua providência, das recompensas e dos castigos reservados aos homens, conforme as suas obras; faltava-lhe, porém, e por completo, a parte apologética da verdadeira religião. Comparando as noções religiosas adquiridas no contato dos cristãos com o grosseiro fetichismo de seus correligionários, Maomé sentia profundamente o contraste absurdo, experimentando uma repulsa fortíssima a estes fetiches, onde tudo era falso e faltava por completo a noção do Deus Verdadeiro .
Pelo ano de 610, diz a tradição, a crise interior de Maomé manifestava-se em toda a sua plenitude. Não suportava mais a ideia de que o essencial faltasse à religião de seu povo.
Cada qual apegava-se ao seu fetiche, ao ídolo da sua tribo e do seu clã. Temiam os fantasmas, que chamavam os jins do mal. Descuidavam-se da suprema realidade.
O coração de Maomé desembaraçava-se de todas essas ideias accessórias, desligava-se de todas as forças que dependem de uma outra força, de todos os seres que não fossem mais que um reflexo do Ser único.
Sabia-o agora, pois que o aprendera com os cristãos sírios e mequenses: havia uma religião revelada. Certos povos haviam recebido ordens divinas, eram depositários de uma verdade; homens inspirados tinham-lhes falado em nome do Céu.
Cada vez que os homens se perdiam, o Céu enviava um profeta para os reconduzir ao verdadeiro caminho, para os chamar à verdade imutável.
A religião dos profetas de todos os tempos era uma só. Os homens desfiguravam-na, mas vinham sempre os enviados do Céu para a reerguer.
O povo árabe chegara então ao cúmulo do extravio.
Não era preciso que a misericórdia divina se manifestas-se de novo e viesse especialmente em seu auxílio?
Essas ideias atormentavam o generoso árabe, tornaram-se uma verdadeira alucinação para ele.
Por que o povo árabe, e em que, seria ele inferior às outras nações, aos judeus, aos cristãos? Se Deus era um só, não governava ele a todos com a mesma destra e a mesma medida?
Os judeus diziam ter recebido do Céu seus profetas que, em nome de Deus, revelavam ao povo a vontade de Alah, do Deus único... Os cristãos diziam ter sido instruídos pelo próprio Jesus Cristo que era Deus, e eles, os árabes, não teriam também um mensageiro celeste, um profeta, um enviado de Deus, que os orientas-se no caminho do bem e da verdade?
E Maomé pensava, cismava, meditava, compenetrava-se deste argumento sem réplica. Era a sua ideia fixa.
Todos os seus pensamentos concentravam-se sobre esta ideia, a ponto de ir ficando alheio a tudo o que o cercava.
Renunciando cada vez mais ao convívio dos homens, ficava ele horas e horas, sentado na escuridão ou deitado ao sol, ou então caminhando a passos largos pelos atalhos rochosos da solidão onde se ia esconder. Já não distinguia bem a noite e o dia, o sonho e a realidade.
Ao fim de sei; meses, Maomé estava alquebrado.
Emagrecera. Seus movimentos tornaram-se bruscos, a barba e o cabelo em desalinho, o olhar estranho. Enfurecia-se. Ter-se-ia tornado um possesso, um infeliz endemoninhado, hediondo joguete do poder das trevas?
Ter-se-ia tornado - pois lhe vêm muitas vezes à boca, inconscientemente, frases cadenciadas - um desses poetas inspirados por um jinn (espírito do mal)?
Exaspera-se, e exclama: "Tenho medo de ficar doido... sinto em mim os sintomas dos possessos!"
As primeiras confidências eram feitas à sua mulher Khadidja, que o consolava e tranquilizava, mas seguia com inquietação a marcha da moléstia desconhecida de seu marido.
A forte convicção de Maomé era que havia só um Deus, governador do mundo, que a idolatria ou adoração de fetiches aos quais se atribui vida e poder era um erro grosseiro, e que cada nação devia ter o seu profeta.
Foi sob a impressão desta ideia constante que uma noite, num sonho atormentado, em meio de um pesadelo horrível, parecia-lhe ouvir uma voz que dizia: Proclama, em nome de teu Senhor Que criou o homem do sangue coagulado; Proclama, pois o teu Senhor é o mais generoso, É ele que ensinou ao homem a servir-se da pena, Que lhe ensinou o que o homem não sabia .
É o próprio Maomé que cita esta passagem no Alcorão (Surata 96, 1-5).
Estas palavras o deixaram numa dúvida horrível, numa verdadeira agonia de morte. Perguntava-se a sí mesmo se não era vítima dos jinns, ou se era aquilo uma realidade, um convite de Deus.
Pouco tempo depois, em outro pesadelo, Maomé pareceu ouvir uma nova voz, que diz ser do Anjo Gabriel, falando-lhe: Levanta-te e adverte os homens, Glorifica o teu Senhor, Conserva puros os teus vestidos E foge da abominação, Não queiras amontoar riquezas, E, por teu Senhor, sofre com paciência.
Esta segunda inspiração ou obsessão resolveu as suas dúvidas e fê-lo acreditar com firmeza que Deus o chamava como profeta do seu povo.
A grande questão que se apresenta aqui, a quem examina o caráter de Maomé, é saber se realmente ele estava convencido da sua missão de reformador.
Os biógrafos que estudaram o caso estão quase unanimemente pela afirmativa.
Em consequência de seu estado de espírito, de sua obsessão, ele acreditava ser chamado por Deus a trabalhar para o soerguimento moral de seus patrícios. Ninguém e nada nos autoriza a suspeitar da boa fé desta convicção (Lammens - Mahomet, fut-il sincere?).
Estudando e penetrando os melhores historiadores de Maomé e a fonte original de sua doutrina, que é o Alcorão, fica-se convencido de que ele acreditava interiormente e chegou a formar-se uma convicção da sua missão, que era substituir o culto idólatra dos árabes por uma religião mais alta e mais pura. (Schwally: Geschichte des Korans, I, pg. 3).
Tal convicção não se limitava a uma reforma espiritual, mas, unindo o espiritual ao material, Maomé pensava reformar a sua nação, tanto civil como religiosamente.
Nesse tempo e nessas paragens longínquas, afastadas dos centros civilizados e das organizações de governos, o povo unia sempre, em seu espírito, a questão religiosa e a questão civil, que era para ele uma questão única: a de uma autoridade suprema.
Pela sua obsessão religiosa, Maomé queria reformar a religião pagã, estando convicto da sua falsidade, mas, como tinha ao mesmo tempo aspirações ambiciosas, queria também ser chefe temporal, civil e militar e ter uma autoridade completa, integral sobre o povo reformado.
A religião lhe serviria de pedestal para o poder civil, e o poder civil seria uma base para a expansão da religião.
Não juntando esses dois elementos constitutivos, encontramos na vida de Maomé um dualismo, uma transição inexplicável, radical; enquanto, unindo-os, tudo se compreende, tudo se unifica em uma síntese lógica e natural.
Estudando-se imparcialmente, ou mesmo com certa incredulidade o Alcorão, chega-se à conclusão de que Maomé foi honesto e sincero no início de sua reforma, sendo levado pelo desejo de melhorar as condições morais, religiosas e materiais de seus patrícios.
A razão fundamental desta afirmação é que Maomé, sem convicção pessoal, teria sido incapaz de inspirar a seus primeiros companheiros, árabes orgulhosos e interessados, uma convicção tão sincera que os levasse a abandonar pais, riquezas, pátria para se associarem aos pobres e aos escravos do primeiro séquito do reformador.
E tal convicção não foi simplesmente uma exaltação entusiasta de momento, mas durante largos anos tornou-se um dos característicos dos árabes.
Mesmo quando o Céu dava o desmentido às promessas e ameaças de seu profeta, os adeptos conservavam a mesma convicção na sua missão divina de reformador.
Juntemos a isso o tom sincero e entusiasta do pregador de Meca, a sua perseverança em face da indiferença e da oposição de seus patrícios, o seu caráter moral, ainda puro das manchas que o deformarão mais tarde em Medina e nas conquistas realizadas com tanto êxito e firmeza - e conclui-se necessariamente pela sinceridade do profeta.
Pregador religioso convencido, Maomé não foi nem socialista, nem comunista - foi reformador.
Alguns biógrafos exageram quando afirmam que o islamismo não entrou na vida como sistema religioso, mas como ensaio social para combater certos abusos materiais que prevaleceram na época (Grinime: Mohammed, t. I, p. 14).
Deve-se reconhecer que o islamismo prestou um serviço importante à ciência, chamando a atenção dos sábios sobre a natureza social da pregação de Maomé.
Considerações econômicas exerceram, sem dúvida, uma influência considerável sobre as primeiras pregações do pretenso profeta, sem entretanto explicar-lhes a origem, retirando-lhes o caráter religioso.
Em suma, Maomé servia-se das condições sociais para promover o seu programa religioso, e servir-se-á mais tarde do seu programa religioso para melhorar as condições sociais de seus patrícios (Lammens-Caetani Hartmann).
Mas, como explicar o fato de ter Maomé acreditado em sua missão divina?
Ele mesmo, no Alcorão, fala de uma primeira visão, na qual lhe foi comunicada a sua vocação, e de uma segunda, na qual lhe foi confirmada aquela.
Ora, se ele foi sincero no início, como o supomos, é improvável que tais visões tenham sido puramente fictícias.
Expliquemo-las como quisermos, ou pela alucinação - é a opinião geral - ou por fenômenos de autossugestão, elas não revelam ainda o conteúdo do Alcorão, que é um livro acima de uma inteligência comum, e acima das ideias de um alucinado.
Caetani, baseando-se sobre os estudos de Goldziher, procura explicar tudo pela inspiração poética (Annali dell'Islam, I, pp. 189-201). Segundo o seu parecer, no tempo de Maomé, todos julgavam os poetas inspirados pelos jins. É por isso que os contemporâneos o chamaram poeta, julgando-o todos inspirado por um espírito, mas ninguém o acusava de impostura.
O pseudoprofeta partilhou desta crença geral, mas foi persuadido pela própria natureza dessas experiências religiosas, que a inspiração vinha do Alto e que o espírito que lhe trazia as inspirações era bom e vinha de Deus - era São Gabriel.
O que impressiona na explicação de Caetani, é a estranha afirmação de que ninguém, nem os seus inimigos conservam vestígios de tal acusação.
É talvez falta de reflexão da parte deste historiador, pois o próprio Maomé, em seu Alcorão, diz-se acusado de impostura de todos os modos (S. 25, v. 5 - S. 16. XV. 103).
Outro biógrafo, Noeldeke, (pg. 121), assevera que a maior parte dos habitantes de Meca tomaram Maomé por um louco ou um impostor: suas revelações são tidas como mentirosas, ao nível das de todos os visionários.
Acusam-no de tê-las copiado de livros antigos e de as ter fabricado junto com um estrangeiro (cristão ou judeu).
Para poderem rejeitar as suas pretensões proféticas, exclamam: "É um poeta!.. ele mesmo as fabricou!".
Esta última citação nos demonstra que os contemporâneos de Maomé não acreditavam muito em tal inspiração poética.
Caetani cometeu aqui um anacronismo, e parece que estamos mais próximos da verdade admitindo que Maomé, acreditando na inspiração dos adivinhos de seu tempo, tenha se elevado à concepção de uma inspiração superior para explicar as suas pretensões religiosas.
Assim pensa também Noeldeke, (Ancient Arabe, Hastings Encyclopedy of Religions and Ethics, I p. 671).
Outros procuram explicar a inspiração de Maomé pela epilepsia, a catalepsia, a histeria e outras moléstias nervosas. "Maomé constitui um caso patológico", diz Maconald (Aspect of lslam, pg.72)
Convém observar, entretanto, que nunca foi provado tenha Maomé sido vítima de tais moléstias. As tradições nada afirmam a esse respeito.
Uma objeção mais forte contra esta opinião é o próprio livro doutrinai de Maomé, que não pode ser o produto de um espírito doentio. Há no Alcorão, com efeito, muita premeditação na composição e muito método no arranjo de certas suratas, muita habilidade na utilização dos materiais estrangeiros, muito oportunismo na adaptação das revelações às necessidades do momento, para se admitir que seja obra de um epiléptico ou de um histérico, escrevendo ou ditando versículos sob o impulso da sua imaginação ou de seus nervos abalados.
De outro lado, como se poderia combinar a reconhecida sinceridade de Maomé na proclamação de sua missão profética, em frente dos textos copiados dos outros, da premeditação, da composição metódica e do oportunismo do Alcorão?
Eis problemas palpitantes que se apresentam a quem reflete e pesa desapaixonadamente a missão do novo profeta.
A resposta encontra-se no próprio caráter de Maomé, que era de sua época e de seu povo, e necessariamente herdara muitos de seus defeitos e de suas qualidades.
Faltava-lhe por completo o espírito lógico e o senso nítido do bem e do mal.
O Alcorão, como o veremos depois, está repleto de contradições. Tais contradições provêm do ilogismo e do oportunismo de seu autor: não se preocupava este, senão das necessidades da hora presente. Ele seguia sempre o seu instinto, que julgava ser a voz de Deus, ideia que o dispensava de provar a sua fé.
Estando convencido de que era o enviado de Deus, não interrogava mais a sua consciência: tomava por revelação, não somente os pensamentos que lhe surgiam nos momentos de exaltação religiosa, mas até as ideias que conscientemente havia elaborado com materiais alheios.
Não distinguia mais entre espiritual e material, entre religião e política, tudo para ele era inspiração.
Maomé tinha um defeito mais grave ainda: a ausência de faculdade de abstração lógica. O seu historiador Schwally, que lhe é bastante favorável, exprime a opinião dos sábios que estudaram o caso, dizendo: "Julgava permitido tudo o que não lhe contradizia abertamente a voz do coração... não hesitava em lançar mão de meios perversos, até da fraude piedosa, para propagar a sua ideia" (Geschichte des Korans, pg. 5).
E que lhe dizia esta voz do coração? quase exclusivamente que precisava pregar contra a idolatria, levar a termo a sua missão de profeta.
Para este fim, não recuou em fabricar revelações, até conscientemente, como, por exemplo, a tal conexão entre a Caaba e Abraão, pela qual pretendia sancionar a peregrinação de Meca.
Para o mesmo fim, servia-se do assassinato, do roubo, do morticínio, muito além do que o permitia o código moral dos árabes.
''Verdadeiro Coraichita, diz o P. Lammens, sacrificava tudo ao sucesso".
Verdadeiro mercador de Meca, atriboía-se a missão de profeta, por meio das dispensas que se permitia na ordem moral.
É em Medina que ele, exaltado pelo sucesso, se entregará às maiores desordens e fará autorizar, por revelações de S. Gabriel, a sua profunda sensualidade, que não soube dominar, nem diante dos costumes árabes, nem diante da lei do Alcorão, por ele ditada.
Pode-se resumir o caráter de Maomé dizendo que tem a seu favor o retrato que ele mesmo traçou de sí no Alcorão, e que o coloca no ambiente histórico em que vivia, e tem contra si a sua própria infidelidade às leis que promulgou.
É impossível deslindar o bom e o mau de um caráter tão complexo. Não se deve julgá-lo conforme o nosso metro moral hodierno, em face do qual ele não passaria de um criminoso.
O certo é, que era um homem inteligente, perspicaz, religioso, muito acima do nível de seus patrícios, o que torna difícil desculpá-lo de ter caído tão baixo em sua vida moral.
Como já ficou dito, sofria ele de uma obsessão religiosa, queria o bem; mas, insuficientemente instruído, desvirtuava o caminho do bem, seguindo a voz de seu coração, antes que a voz da sua razão, ou consciência .
Ele teve e conservou até ao fim a convicção de trabalhar para o bem de seus patrícios, afastando-os da idolatria e orientando-os para a adoração de um único Deus.
Nesta ideia fixa, não chegou a descobrir a sua responsabilidade pessoal, a inanidade de suas pretensões proféticas, porque a obsessão arraigada, apoderando-se de seu espírito, não lhe deixou mais a liberdade de refletir e de examinar o que era de Deus e o que era dele.
A auto-sugestão fê-lo criar-se uma convicção, que julgou real e que tomou por bússola de sua ação e de sua moral pessoal.

CAPÍTULO V

PREGAÇÃO EM MECA

O novo profeta de Alah (Deus), vai entrar em cena, com a firme convicção de ser o enviado de Deus, para abolir a idolatria de seu povo e dar novos rumos à vida de seus patrícios.
Apenas podemos seguir o novo profeta por conjecturas indiretas, pois os historiadores desta época misturaram tantas lendas e superstições aos fatos, que é difícil discernir a realidade.
Sua palavra convicta, harmoniosa, imaginada, dirigia-se, no início, aos íntimos, estendendo-se, pouco a pouco, aos parentes e amigos, criando em redor de si uma espécie de sociedade secreta.
Quais foram os temas que desenvolvia?
Talvez pudéssemos afirmar que foi antes de tudo a fé num Deus único, Alah, e a fé em sí mesmo como profeta de Deus.
Deus é um.., diz ele no Alcorão.
Não há ninguém que se lhe assemelhe em poder.
Nem o cansaço, nem o sono o vencem.
Tudo o que existe no Céu e na terra lhe pertence.
A esta verdade fundamental o novo profeta associa a morte, o juízo final e o inferno, exorta à prática da esmola, à justiça, à oração precedida das abluções rituais.
 Ele fala num estilo apocalíptico, com frases curtas, incisivas, simbólicas e docemente atraentes:
O desejo de aumentar vossas riquezas vos preocupa,
Até ao momento de descerdes ao túmulo.
De certo aprendereis
Ainda uma vez, aprendereis ...
Vereis o inferno
Vê-lo-eis com a maior das certezas
E então sereis interrogados
A respeito dos vossos prazeres.
Imagens admiráveis, repetições suaves e terrificantes, sucedem-se sobre os lábios do novo profeta: Juro pelo sol e pela claridade,
Pela lua quando ela o substitui,
Pela noite que o esconde,
Pelo céu e por aquele que o fez,
Pela terra e por aquele que a criou.
Pela alma e pelo que a formou,
Aquele que a conservar pura será feliz,
O que a corromper ficará perdido.
Assim a série das aterrorizadoras suratas que descrevem a ressurreição; o juízo final, o céu e o inferno, se encadeia numa expressão em que se sente palpitar a verdade cristã, a doutrina de Cristo: Eles se interrogam sobre a grande nova
Que é o objeto das suas controvérsias,
Eles hão de sabê-la infalivelmente,
Sim, eles virão a sabê-la,
Tudo o que está na terra passará:
Apenas a face de Deus subsistirá,
Na majestade da glória.
Sente-se em cada uma destas frases uma convicção que parece de profeta e uma firmeza que espanta. O juízo final e o inferno, por exemplo, são de um absolutismo acabado:
A trombeta ressoará.
O homem gritará então: onde encontrar um refúgio?
Não, não há refúgio algum!
O último abrigo será junto do Senhor...
Lá eles não gozarão frescura, nem bebida alguma,
A não ser água fervente e pús...
O inferno; uma das coisas mais graves.
Quanto ao céu, as imagens poéticas sucedem-se num harmonioso conjunto.
Os companheiros da direita!
Oh! os companheiros da direita,
No jardim das delícias, sobre leitos de tecidos artisticamente dispostos!
À volta destes efebos sempre jovens,
Com taças, jarros e copos de claras bebidas
Que não causam mal à cabeça, .nem embriagam...
Não sentirão o calor do sol nem o frio glacial
Não ouvirão ali palavras fúteis.
Nem discursos que excitam ao pecado.
Apenas se ouvirão estas palavras: Paz! Paz!
Assim falava o novo mensageiro do Alto... era como uma doutrina nova... ideias novas... imagens novas, que, embaladas na linguagem suave e acariciante do árabe, excitavam a admiração e exerciam sobre os ouvintes um estranho atrativo.
Estes discursos foram recolhidos em parte, e formam as suratas, ou versículos do Carão, o livro santo dos muçulmanos.
Narrações bíblicas, mais ou menos deformadas, não tardam a aparecer, provavelmente à medida que Maomé recolhia novas informações. Mais tarde ainda, narrações do Novo Testamento fazem a sua aparição e completam o ensino do profeta.
As primícias da nova seita·, Islam, foram pacüicas.
Entre os primeiros que abraçaram a nova doutrina, estava sua mulher Khadidja, Zaid, um escravo liberto por ele, Abú-Bakr, um rico comerciante de Meca; Ali, filho de Abú-Talib, tio de Maomé, Fátima, a sua filha, o escravo abissínia Bilal.
Após estes, uma enorme multidão de escravos e pobres iam seguindo o profeta, atraídos pelo caráter social da nova doutrina.
Tal pregação, desprezada, ao início, pelos Coraichitas, começou logo a granjear simpatias que provocaram rigorosa oposição da parte de muitos.
Acusava-se a sua pregação de revoltar os escravos e os pobres contra os ricos. O prestígio dos Coraichitas, aliás teria ficado fortemente abalado, se todos os aderen­ tes do profeta se tornassem seus súditos.
Neste caso, as vantagens da peregrinação a Meca desapareceriam, o que seria para eles uma perda material imensa.
A oposição foi violenta e os historiadores da época representam-na como uma perseguição aberta. Quem sofreu mais nesta luta foram os escravos.
Maomé permitiu então a estes renunciassem de boca, exteriormente, a sua doutrina, ficando-lhe fiel interiormente.
Vê-se por este fato, que a consciência moral do novo profeta não está muito equilibrada.
De um lado perseguições e dificuldades; de outro os conselhos de Maomé, que receava ver abalada a fé de seus aderentes, determinaram um grupo de amigos a se exilarem para a Abissínia. Duas emigrações sucessivas juntaram ali um número de 83 homens e 12 mulheres.
Ao contato dos Cristãos da Abissínia, alguns se converteram, e outros, depois da volta para Meca, forneceram a Maomé novas informações sobre as crenças cristãs. Vê-se esta impressão nas suratas do Corão dessa época, as quais acentuam a negação da filiação divina de Jesus. Maomé, no entanto, insistia em dizer que a sua religião é idêntica ao Cristianismo. "É uma só e mesma religião" diz ele na Surata XXI, 91, 92).
A conversão de Ornar, até aí terrível perseguidor, futuro Califa, marca uma nova etapa para a doutrina de Maomé. Este acontecimento trazia aos primeiros muçulmanos um reforço precioso.
Havia dois anos que Maomé não pregava mais em público, mas fazia os seus sermões na casa de Alarcam (615-617). Sob a proteção de Ornar recomeçou de novo o seu apostolado em público.
O profeta, para granjear mais adeptos tomou um compromisso com a tribo dos Coraichitas, senhores da Caaba. A Surata 53 conserva a lembrança desta adulteração da sua doutrina.
Pregava um Deus único e tratava de ídolos os demais deuses árabes; porém o profeta reconhece as três divindades pagãs de Meca: Elas são sublimes intercessores (gharãnig) diz ele, cuja intercessão agrada a Deus.
Mais tarde, ele retirará este versículo, dizendo que lhe foi ditado pelo demônio em vez de S. Gabriel.
Esta vira-volta de opinião irritou mais ainda os mequenses que lançaram uma espécie de interdito sobre toda a tribo dos hachimitas, tribo do novo profeta .
A sua permanência em Meca tornou-se impossível.
Todos os negociantes e ricos da cidade e da tribo dominante eram contrários à nova religião, e estavam resolvidos a expulsar o profeta e seus sequazes da cidade.
Após este banimento, Maomé, sua família e seus sequazes refugiaram-se numa kaaba da montanha. O decreto de excomunhão fôra escrito em pergaminho e afixado na Caaba.
Os novos muçulmanos, quase cercados, impossibilitados de trabalhar e de ganhar a vida, passaram muitas vezes fome. Felizmente, tinham combinações com certa gente de Meca que os abastecia secretamente.
No fim de umas semanas, a pedido de um amigo da família, o decreto foi revogado e os fugitivos puderam voltar para a cidade. As provações do novo profeta não chegaram, entretanto, ao fim.
No ano 620, ele perdeu seu protetor e Khadidja, sua fiel esposa e sua consoladora nas tristezas que ameaçaram, às vezes, abalar a sua coragem.
Abou Talib era octogenário. Maomé o estimava como a um pai e desesperava-se por não o ter podido converter ao Islam.
Na hora da morte suplicou a seu tio que fizesse a profissão de fé. O ancião recusava-se, afim de que não viessem a dizer depois, que ele assim procedera por medo da morte. O profeta teve o desgosto de ver seu tio, seu pai adotivo, seu benfeitor, morrer na abominação da idolatria.
A morte de Khadidja foi um golpe tremendo para Maomé, pois, além de sua grande fortuna, era mulher forte, havia colocado Maomé no meio da sociedade escolhida de Meca. Não se sabe se o profeta lhe dedicava amor ou simplesmente gratidão, porém, é certo que lhe ficou fiel, e apesar de ela estar com 60 anos, nunca lhe deu uma co-esposa.
Após a morte da companheira pensou em casar-se de novo com Aicha, filha de seu fiel partidário Abou Bakr. Aicha prometia ser uma beleza, mas não contava ainda mais de 7 anos. Celebrou-se então apenas o noivado, o casamento teve lugar dois anos mais tarde, em Medina.
Aicha deveria ser a esposa preferida do profeta, a única que recebeu virgem... Sendo ainda criança, a futura esposa foi substituída por outra mulher, Sawda, viúva de um dos imigrados de Abissínia.
Procurava Maomé uma ocasião favorável de sair de Meça, onde era repelido e nada mais podia fazer em prol da sua reforma. Seria possível que alguma outra cidade lhe desse asilo e aderisse à sua reforma?
Lançou as vistas sobre Thaif, a encantadora cidade dos Tsaquifitas a 72 milhas de Meca. Ficou ali apenas um mês, sem resultado algum, alvo de insultos e muitas vezes de agressões da populaça. Os garotos chegaram a correr atrás dele, gritando e atirando-lhe pedras.
Expulso de Thaif, Maomé, acompanhado de seu filho adotivo Zeid, regressou para Meca, onde continuou a sua pregação, sob a proteção de Abou-Bakr.
Meses após, em 622, resolveu, enfim, após ter feito estudar a situação, retirar-se para a cidade vizinha de Yatrib. A gente desta cidade, onde o profeta contava já uns aderentes, lhe forneceria, talvez, o apoio que não encontrara em Thaif, nem mesmo em sua própria cidade de Meca.

CAPÍTULO VI

O CHEFE DE MEDINA

Antes de executar definitivamente o projeto de fixar-se em Yatrib, Maomé havia secretamente preparado o caminho.
Uma dúzia de peregrinos desta cidade havia sido catequizada e conquistada para a nova doutrina. Estes árabes, preparados pelo monoteísmo de seus aliados judeus, interrogavam-se sobre este homem extraordinário, já conhecido em toda a redondeza: não seria o profeta do fim do mundo, de que lhes falavam, às vezes, os judeus? Nesse caso, seria bom conciliarem-se com ele, e reunirem-se-lhe antes de todos os outros.
De outro lado, Yatrib estava, no momento, dividida por rivalidades de tribos, o que havia suscitado uma ruidosa guerra civil entre os Khazrai e os Aos. Este profeta talvez conseguisse restabelecer a concórdia.
Tais circunstâncias orientaram definitivamente a carreira de Maomé.
Uma comissão, composta de habitantes já convertidos pelo profeta e uns outros de posições influentes, teve uma entrevista noturna com ele. Tudo ficou assentado: os emissários ficaram de acordo com o profeta.
Retorquiu o chefe dos emissários: "Enviado de Deus, nós te seguiremos por toda parte, mas se morrermos por ti, qual será a nossa recompensa?
- O paraíso, declarou Maomé.
- Estende a mão!
 Ele estendeu para eles a mão, e todos lhe juraram fidelidade.
EI Ablas, o chefe da delegação, adiantou-se e disse : "Amanhã, se o quiseres, atacaremos com nossos sabres os idólatras de Mina". - "Não recebi ainda esta ordem de Deus, respondeu o profeta, ide em paz... darei as ordens em tempo próprio".
Este fato não deve passar despercebido: é uma nova fase de ação, na vida de Maomé e de seus muçulmanos, que se inicia.
Até então, o profeta não havia permitido que seus sequazes desembainhassem a espada. O Alcorão não continha senão exortações à paciência. Maomé e os seus, durar:te 13 anos, responderam a todas as perseguições com a doçura e o perdão.
A partir de agora, os muçulmanos estavam autorizados a responder à violência pela violência, mas somente quando a ordem viesse de Deus, pelo seu profeta.
Maomé fez seguir para Yatrib, em pequenos grupos, todos os seus fiéis. Uma centena de homens e mulheres se exilaram desse modo. O profeta permaneceu ainda, com Ali e Abou-Bakr, em Meca.
Este último desejava partir também para Yatrib.
''Não te apresses, disse Maomé, irás comigo, porque eu também espero ser autorizado por Deus a emigrar".
Vê-se aparecer cada vez mais na vida do profeta a falta de sinceridade, o papel preparado de antemão para anunciar as suas revelações e fazer acreditar que agia sempre sob as ordens de Deus.
São notas discordantes que começam a manchar a primeira sinceridade da obsessão do profeta.
Abou-Bakr preparou-se para fugir junto com seu amigo, e, durante quatro meses, teve prontos dois rápidos camelos para, esse fim. Os Coraichitas, apesar de odiarem Maomé, não queriam que se ausentasse, de medo que ele fomentasse qualquer levante contra Meca. Era preciso partir às escondidas, sem ninguém saber.
Ali sacrificou-se, e segundo consta, passou a noite no leito de Maomé, envolto no seu conhecido manto verde. O profeta foi-se com Abou-Bakr, de noite, e durante três dias e três noites esconderam-se numa caverna do monte Thour, a três milhas de Meca.
Acabara-se o tempo de suportar pacientemente as perseguições, de pagarem-se as injúrias com a humildade. O Islam deve agora vencer ou morrer!
Os antigos profetas judeus vieram com os milagres e os homens levaram-nos à morte ou à irrisão. Maomé não faz milagres, nem tenciona deixar-se matar: teve que fugir após mil maus tratos e humilhações.
Jesus Cristo veio com os milagres e as palavras divinas. Maomé virá agora com a espada. É uma vida nova que começa, a Vida de luta, a guerra santa da espada.
Depois de sete dias de viagem, o pequeno grupo de fugitivos aproximou-se de Yatrib. Começavam já a encontrar as grandes Kasbas das tribos suburbanas. Uma parte da cidade, a tribo dos Banou-Sahrn, com seu Cheikh Boraida, veio receber e render homenagem ao profeta, com os muçulmanos ali já residentes.
Duas tribos disputavam-se a cidade e viviam em guerras contínuas. Maomé aproveitou a ocasião favorável e ligou-se com todos os seus adeptos ao partido mais pacífico, concluindo um pacto de proteção mútua. Assim reforçada, esta tribo pôde com facilidade dominar a parte adversa.
Foi no dia 16 de julho de 622 que se deu este acontecimento destinado a exercer um papel tão importante na evolução do islam.
Os muçulmanos escolheram esta data como ponto de partida de seu calendário particular, ou era muçulmana, chamando-a hégira (hidjra ou fuga) e a cidade foi nomeada: Medinat el nabi (cidade do profeta), ou simplesmente Medina.
Alguns dias depois, chegaram, com o fiel Zeid, Ai­ cha e Osma, as duas filhas de Abou-Bakr, e a família do profeta.
Instalado em Medina, Maomé aí pôde organizar detalhadamente o seu culto, ao mesmo tempo em que fundava uma sociedade civil sobre bases inteiramente novas na Arábia, fora das concepções, até então exclusivas, de tribo e do clã. Ele foi assim simultaneamente apóstolo, legislador, político e guerreiro.
Era a realização de seu grande sonho de reformador. Desde então, ele não será mais o chefe perseguido de uma minoria, um pregador discutido e muitas vezes obrigado a se esconder. Na frente de sua tropa, que se irá aumentando dia a dia, figurará agora como chefe de estado e chefe religioso.
Tem nas mãos um poder suficiente para paralisar as dissenções de Medina e tratar dos interesses da sua doutrina. É a inauguração solene de um estatuto político que transforma o Islam, até aí limitado ao ensino espiritual, em religião política.
A sua autoridade ficou solidamente definida após as primeiras grandes vitórias sobre os seus inimigos.
Tratava-se para ele de se conciliar, de um lado, com os Judeus, numerosos e influentes, e de outro, com os Árabes ainda não convertidos ao Islam.
Com os primeiros contemporizou, adaptando-se às suas práticas religiosas: jejuava nos dias prescritos pelos Judeus, rezava na direção de Jerusalém e chegou mesmo a conquistar alguns rabinos. A maioria, porém, dos Judeus lhe ficou hostil.
Em virtude de um decreto solene, encontraram-se aliados na mesma nação todos os muçulmanos emigrados de Meca, todos os convertidos de Medina, assim como todos os Dhazraj e Aos ainda pagãos e as diversas tribos judias da região, suas confederadas.
Todos deviam prestar-se mutuamente assistência e defender conjuntamente a cidade. Os Judeus lograriam a liberdade de seu culto e o direito de proteção dos muçulmanos. Enquanto houvesse inimigos para combater, eles contribuiriam para as despesas da guerra.
Nenhuma fração poderia fazer aliança ou guerra sem o assentimento do profeta a quem seriam entregues, para soberano julgamento, todas as questões.
Após o entusiasmo dos primeiros dias, Maomé não deixou de encontrar algumas dificuldades em Medina.
Sua chegada contrariou alguns interesses e desfez algumas combinações.
Um certo Abdalah esperava o supremo poder e não perdoava ao profeta o tê-lo arrebatado. A sua volta se agruparam os descontentes.
A autoridade de Maomé, não obstante o seu prestígio, nem sempre era fácil de manter. Houve até brigas em meio da praça. Um dia, passando o profeta montado em seu burro, gritou-lhe Abdalah: "Afasta-te, teu burro cheira mal".
- O burro do enviado de Deus, gritou um muçulmano, cheira melhor do que tu! E agrediram-se com ramos de palmeira, socos e ponta-pés.

* * *

O profeta não se esqueceu, entretanto, de seu plano geral. Põe momentaneamente de lado o seu programa religioso, para fortalecer o seu domínio civil. Procura cativar a simpatia de uns pela religião, e dominar os outros pela força.
Os seus inimigos pessoais, os coraichitas, sentem o peso da sua vingança, enquanto outros inimigos são atraídos pelo anzol da religião e do poder.
Ordena a construção de uma casa de oração, que deve ser a primeira Mesquita da nova religião, e à imitação dos cristãos da Síria, organiza a chamada casa de oração.
É nesta época que dita as leis essenciais do Islam, leis ainda profundamente imbuídas de judaísmo. Até aí a oração fôra aconselhada, agora se torna obrigatória .
Como entre os judeus, a hora marcada é aquela na qual não se pode mais distinguir um fio preto de um branco.
O jejum rigoroso de um dia no ano, no Yom kip­ pous judeu, é ampliado, à imitação dos cristãos orientais, ao mês inteiro de Ramadan.
A carne suína e outros alimentos, reputados impuros pelos judeus, são proibidos, assim como o uso do vinho.
A esmola é desviada do seu fim caritativo, para uma contribuição obrigatória de guerra.
O número de mulheres é limitado a quatro. O profeta forma assim uma religião nova, emprestada em parte aos judeus, aos cristãos e aos pagãos; religião nova que se lhe afigura equivalente ao judaísmo e ao cristianismo.
Pensava ele que cada nação devia possuir a sua forma religiosa própria e o seu profeta. O Islam trazia aos árabes uma e outro.
Para criar uma religião nacional, era necessário ganhar a simpatia de todos os árabes; e para rever Meca, a pátria inesquecida, era urgente tomar medidas oportunas. Ora, judeus e cristãos objetavam a novidade do Islam, enquanto a religião deles contava com a imensa lista de profetas e uma lista maior ainda de gestos admiráveis e sobrenaturais.
Maomé queria providenciar e afastar a objeção, mas com a sua ignorância da religião bíblica, chegou a identificar Maria, irmã de Moisés, com Maria Mãe de Jesus; e aprendendo que Abraão era pai de Ismael, antepassado dos árabes, tira a conclusão de este não ser nem judeu, nem cristão, mas árabe.
Para resolver todas as dificuldades e conciliar todas as posições, resolveu dar-se como continuador de Abraão.
A nova religião seria deste modo a religião nacional dos árabes, como o judaísmo era a religião dos judeus e o cristianismo a religião dos cristãos.
Para alcançar isto, tornava-se necessário estabelecer uma ligação entre Abraão e ·a Caaba de Meca. Maomé, não recuou diante deste novo projeto.
A Caaba, com a sua pedra e seus ídolos devia tornar-se o santuário do lslam. É para ela, e não mais para Jerusalém, que os muçulmanos tornariam a face, em fazendo as suas orações. A peregrinação, aconselhada no princípio, seria imposta mais tarde.

CAPÍTULO VII

O GUERREIRO TREMENDO

Maomé entrou na nova fase da sua vida : a de guerreiro. Como ele mesmo repetia: O paraíso fica à sombra das espadas! É Mártir aquele que dá a sua vida por outra coisa que não a fortuna. O profeta tinha sua ambição: queria dominar, e esta ambição ia-se desenvolvendo à medida em que subia no poder.
Até esta data ele mostrou um zelo sincero no seu projeto de purificar o culto nacional, recomendando constantemente a tolerância, como usam os fracos. Mas hoje, ele sente-se forte, e pretende tomar-se mais forte, para melhor espalhar a sua religião. Quer estabelecer o reino de Deus, pe!a força.
Daí os novos ensinamentos, as novas revelações de São Gabriel, para conseguir esta meta. O Arcanjo lhe havia dito numa visão: A chave do paraíso é a espada!
Uma gôta de sangue derramada pela causa de Deus, uma noite passada sob as armas, a céu aberto, têm mais merecimento do que dois meses de jejum e oração.
Os pecados do que morre em combate lhe são perdoados, e as suas feridas exalam um perfume de âmbar.
Não acrediteis que aqueles que morreram combatendo no caminho de Deus estejam mortos; eles vivem junto a Deus e dele recebem alimento! (Alcorão, 111, 163);
A partir da hégira, ou instalação em Medina, onde Maomé era o chefe civil, militar e religioso, a guerra estava virtualmente declarada entre a cidade dos idólatras (Meca) e a cidade do Profeta (Medina).
A guerra se lhe afigurava agora, o único meio de salvar o Islam; era uma questão de vida ou de morte.
Se os Coraichitas, num ataque a Medina, saíssem vitoriosos, tudo estaria perdido. Era preciso aos muçulmanos matar e serem mortos, combater os que os tinham expulsado de seus lares injustamente, apenas por terem dito: nosso Deus é Alah.
Morrer no caminho de Deus, era padecer o martírio, repetia Maomé aos vacilantes.
Os Coraichitas e as tribos da Arábia, unidos aos próprios judeus de Medina iam-se çoligar contra o Is­ lam, cujas probabilidades de êxito pareciam bem incertas.
O Alcorão vai tornar-se agora, não somente código religioso, mas um clarim de guerra, exortando os fiéis à coragem, um compêndio das ordens do dia de seu chefe. Será o estímulo dos fracos, dará convicção aos indecisos, denunciará os hipócritas, derrotistas, prometerá aos mártires as calmas suaves do paraíso.
Deus comprou aos crentes os bens e pessoas para , DAR-LHES EM TROCA O PARAlSO, repetia Maomé para excitar os seus soldados a sacrificar tudo para o triunfo do lslam . É a teoria da guerra santa, ou jihad, que toma corpo no Alcorão e no espírito do profeta.
As revelações sucessivas sempre atribuídas a S. Gabriel, fragmentárias e desordenadas, falam do jihad, dizem respeito aos sucessos contemporâneos, à atitude que nas lutas devem manter os muçulmanos, segundo as circunstâncias cambiantes.
Os interesses materiais misturam-se aos da fé, e muitas vezes, na prática, os sobrepujam. O jihad, de simples meio que era, torna-se um fim, e o espiritual é sacrificado ao temporal, às vezes, de maneira inteiramente escandalosa.
A guerra é, antes de tudo, uma oportunidade para rendosas extorsões. Encontrando alguém no decorrer de uma expedição, matavam-no sem procurar saber quem era, e depois, para se desculparem, diziam-no infiel.
É certo que o Alcorão estigmatizava semelhante procedimento, porém, parece que Maomé fica muitas vezes em contradição com São Gabriel, ou melhor consigo mesmo, permitindo em prática o que proibiu em teoria: era a adaptação às circunstâncias, como ele soube fazer sempre, no decorrer da sua vida. Como legislador, julgava-se superior à lei e fora de suas exigências.
É certo que toda a culpa não pesa sobre Maomé.
Ele não podia modificar radical e instantaneamente o caráter de seu povo: parece ter-se esforçado por fazê-lo e até corrigir-se a si mesmo, pois tinha um certo pendor vingativo.
O saque era o resultado normal de toda a luta entre árabes, e uma espécie de indústria nacional. O profeta permitiu-o aos seus, em consequência da sua fraqueza, como ele disse.
Muitos dos seus enriqueceram-se depois de prodigiosas conquistas. Os grandes discípulos acumularam fortunas consideráveis, roubando os tesouros dos ricos.
Maomé organizou nos dez primeiros anos de seu governo umas 40 expedições, tomando pessoalmente parte em cerca de 30 campanhas e comandando uma dezena de batalhas, sem falar das difíceis negociações que teve de orientar.
Para tais expedições na Arábia, são exigidas qualidades de constância, de diplomacia, de energia e de habilidade raras; apesar disso, sente-se ainda o chefe incessantemente ameaçado, sem ter outra base além da instável adesão da população. E nesta arte difícil exaustiva, Maomé foi extraordinário.
Desde que chegou a Medina, começou a preparar a guerra. As circunstâncias de rivalidades já citadas, punham bruscamente um exército à sua disposição. Os emigrados de Meca, onde os seus bens tinham sido confiscados e as suas casas vendidas, não desejam senão tomar uma desforra.
Os Ançar de Medina tinham jurado seguir o profeta aos combates.
Alguns meses após a sua chegada, Maomé organizou diferentes expedições. A primeira foi confiada a seu tio Hamza; uma outra a Obaida. Pouco tempo depois, o próprio Maomé pôs-se à frente de 200 homens, em Bowat, onde esperou, em vão, uma caravana, que lhe escapou.
Em seguida, dirigiu-se para Ochaia, onde pretendia surpreender a grande caravana de inverno que Meca enviava, todos os anos, à Síria. O perigo era considerável.
Esta caravana era uma das mais importantes que desde há muito tempo se haviam enviado, comportando 1000 camelos e uma escolta de 50 guerreiros. Trazia um milhão de mercadorias.
O profeta não foi feliz. A presa escapou-lhe e ele regressou, sem nada ter alcançado.
Começou o Rajab, mês sagrado, durante o qual são suspensas todas as hostilidades.
O povo de Thaif acabava de fazer a sua colheita de frutas e de secar as uvas que exportavam anualmente.
Maomé quis aproveitar a ocasião para se vingar.
Mandou uma tropa esconder-se num bosque vizinho da estrada onde deviam passar.
Aparecendo a caravana, os muçulmanos saíram do esconderijo, galgaram as encostas da colina, saltaram de rocha em rocha e lançaram-se sobre os mercadores, matando uns e fazendo os outros presos. Os restantes fugiram, abandonando animais e mercadorias nas mãos dos muçulmanos, que dividiram entre si os ricos despojos, reservando a quinta parte para o profeta, e retomaram apressadamente o caminho de Medina.
O escândalo foi imenso. A trégua santa fôra violada. Houve reclamações de todas as partes... mas o profeta, a cujo serviço estava São Gabriel, para desculpar todas as demandas, trouxe-lhes uma nova revelação que dizia: É verdade que fazer a guerra durante os meses sagrados é um crime.
Mas combater Deus, persistir na idolatria, impedir ao servidor de Deus o acesso à Caaba, expulsá-lo de sua pátria, a ele e à sua família, é um crime maior ainda.
O profeta combate os incrédulos e ímpios, trata-os com rigor, o inferno será a sua habitação horrenda.
Ó crentes, combatei os vossos vizinhos infiéis, sêde seus implacáveis inimigos.
Deus comprou a vida e os bens dos fiéis, e o paraíso é o seu preço.
Combatei os infiéis e matai-os.
As promessas do Pentateuco, do Evangelho e do Alcorão serão cumpridas, porque quem mais do que Deus é fiel à sua aliança?

CAPÍTULO VIII

A GRANDE BATALHA DE BADR

Em dezembro deste ano, a famosa caravana dos mercantes de Meca, sob as ordens de Abon Sofian, regressava da Síria, carregada de mercadorias de muito valor.
Num instante, Maomé pôs o seu exército em pé de guerra. Era composto de 240 ançares e perto de 100 soldados de outros lugares, com uns 70 camelos. Ao todo uns 400 homens.
Tomaram a direção de Badr, vale onde o caminho de Medina cruza com a grande estrada das caravanas, que vai da Síria a Meca.
Os Coraichitas haviam sido prevenidos da resolução de Maomé de atacá-los em caminho, e pediram auxílio urgente a Meca. De lá se levantou incontinenti um exército de 1000 homens, 700 camelos e 200 cavalos.
As forças muçulmanas postaram-se no vale de Badr, nas vertentes norte e este, opostas à direção de Meca.
Os que possuíam montada estavam armados de lanças e sabre e os de infantaria com arcos e flexas.
Abon Sofian, o chefe da caravana, avisado por dois espiões, desviou-se do caminho acostumado e foi mais a oeste, pelas dunas do mar.
A preciosa caravana escapara-se das garras do profeta, porém os Coraichitas, sabendo da inferioridade dos muçulmanos, resolveram dar-lhes combate.
Contornaram a colina... e apareceram com toda a sua força diante dos olhos do profeta.
As tropas de Maomé estavam na esperança de um triunfo fácil e rendoso sobre uma caravana debilmente protegida, mas achando-se agora em presença de um inimigo numericamente mais forte, sentiram-se desfalecidos e sem coragem para iniciar uma luta.
O ardor do profeta encorajou-os, prometendo-lhes a vitória, em nome de Deus.
Era, de resto, muito tarde para recusar.
A batalha começou encarniçada.
Os arqueiros crivaram de flechas todos aqueles que puderam alcançar.
Era meio dia e o sol dardejava milhões de flechas ardentes, que pareciam cruzar-se com as flechas dos muçulmanos.
Gritos subiam por entre nuvens de poeira, e errava no ar um acre cheiro de sangue.
Maomé desmaiou e caiu rígido ao chão, o rosto em suores. Finalmente veio a si e exclamou: Alegrai-vos! Alegrai-vos!
São Gabriel lhe havia mandado uma mensagem: Alegrai-vos, disse ele, o socorro de Deus está convosco. Tu estás na sombra, enquanto teus companheiros combatem.
Maomé montou a cavalo e desceu com sua guarda, gritando aos combatentes: Combatei sem temer! O paraíso está à sombra das espadas! Combatei os infiéis e matai-os!
Foi então que se decidiu a sorte da batalha e do Islam.
A balança do destino vacilou um instante e inclinou-se para o lado de Maomé.
O dia avançava. Por entre o rumor das lanças, o sibilar das flechas e os gritos dos feridos, ouvia-se a voz do profeta: Combatei sem nada temer - Matai os infiéis - os inimigos de Alah!
E os muçulmanos, num brado selvagem, a gritar: Mahomet, Rasou!, Alah! Maomé é o profeta de Deus!
Os Coraichitas tinham perdido muita gente e em­ bora possuíssem ainda a vantagem nHmérica, sentiam-se desanimados, hesitaram... recuaram.
Começam a fugir... é a derrota... Abandonam os escudos, as armas, as couraças, para correrem mais depressa e retardarem a perseguição.
Um dos muçulmanos encontra um chefe coraichita ferido, Abou Jahl, corta-lhe a cabeça e a leva ao profeta.
Não há senão um Deus, disse este, prostrando-se para lhe render graças. Este homem era o Faraó da nossa pátria e foi punido como todos os inimigos de Deus!
O filho de Abou Bakr, Abderaman, que permanecera pagão, fugiu quando seu pai o avistou e lhe perguntou, de longe, o que fôra feito de seus bens, em Meca: Restam apenas, respondeu o filho insolentemente, flechas, arcos e um sabre para acabar com a imprudência da velhice!
A perseguição aos fugitivos continuava, bem como a procura dos despojos abandonados.
Esta memorável jornada de Badr, em que os sectários de Maomé, partindo com o intuito vulgar de fácil rapinagem, se tinham por alguns momentos elevado ao sublime heroísmo, foi infelizmente manchada, no fim, pela cupidez e por excessos de nascente fanatismo.
Jaziam no campo centenas de cadáveres.
Os muçulmanos lançaram os corpos de seus inimigos num velho poço. Além disso, insultaram-nos grosseira­mente, e ninguém quis cobri-los de terra.
Alguns destes muçulmanos tinham seus próprios pais entre os mortos.
No terceiro dia, enfim, Maomé aproximou-se da medonha fossa e começou um trágico discurso a estes cadáveres, que, segundo dizia, o ouviam tão bem como os vivos: Ó mortos! achastes vós o que vossos ídolos vos prometiam?
Quanto a nós, achamos o que nosso Alah nos prometeu!
Que maus compatriotas haveis sido para com o vosso profeta!
Vós me chamastes mentiroso, ao passo que outros acreditaram em mim!
Vós me expulsastes e outros me recolheram!
Vós me guerreastes e outros me ajudaram!
Vós merecestes o inferno e nós o paraíso!
Para terminar o grande triunfo de Maomé, houve danças selvagens, bebedeiras, músicas e cantos pelos poetas de Medina. Um deles cantava:
Firo com a minha lança,
Até que ela se curve,
Meu sabre dá de mamar à morte,
Sangue em abundância,
Assim como uma camela
Que deixa correr seu leite!
O Exército muçulmano acampou por três dias no lugar da batalha, a fim de resolver as graves questões dos prisioneiros e dos despojos.
Omar aconselhava a morte de todos os cativos; Abou Bakr a sua entrega mediante resgate.
Este foi o partido que tomaram.
Passando do entusiasmo às contingências econômicas, quase chegaram a brigar por causa da partilha dos despojos.
A esplêndida caravana de Abon Sofian escapara, mas, em compensação, tinha sido retirada grande quantidade de armas e camelos, sem falar do dinheiro que produziram os cativos.
Como repartir tudo isso?
A disputa foi violenta entre os três partidos. Maomé decidiu afinal que tudo pertencia a Alah, e a seu Enviado, e que este procederia à distribuição conforme São Gabriel lhe mandasse, em mensagem.
A questão dos despojos era importante, pois no futuro deveriam apresentar-se muitas semelhantes. Era necessário resolvê-la de maneira precisa.
Felizmente, São Gabriel trouxe uma revelação ao profeta:
Deus ordena, disse ele, que a quinta parte fique reservada para o profeta, para ele dispor dela segundo as suas necessidades, pela sua família, entre os pobres, os órfãos, os viajantes e a guerra santa!
Estava tudo resolvido. O anjo Gabriel, como servo humilde e fiel do profeta lhe revelava sempre o que desejava!
Zeid levara a Medina a notícia da vitória. Logo partiram os jovens tamborilando os seus "defs" e cantarolando:
Alah il Alah, Mahomet Rasoul Alah!
Deus é Deus e Maomé é o seu profeta!
A vitória de Badr inaugurou uma série de vitórias que devia mudar a face do mundo.
Nesse ·mesmo ano os muçulmanos tiveram ainda ocasião de se regozijarem com a desforra dos cristãos gregos sobre os persas idólatras.
Pela instalação de Maomé em Medina, começou o governo muçulmano. Pela vitória de Badr, começou a época de conquista do Islamismo na Ásia e depois no mundo inteiro.
O fanatismo é comunicativo... é uma centelha, um raio, e este raio aceso por Maomé, ia inflamar os seus sucessores, e fazer deles os conquistadores do mundo pagão, até se quebrarem suas forças contra os exércitos cristãos dos Francos de Carlos Marte!, dos polacos de Sobieski e dos marinheiros de Montfort, em Lepanto.

CAPÍTULO IX

A GRANDE DERROTA DE OHOD

A vitória de Badr robusteceu singularmente a autoridade de Maomé. A oposição, porém, não desapareceu.
Agora, o profeta julgou-se bastante forte para se desem­baraçar dos inimigos mais perigosos.
Uma poetisa judia, Asma, que havia feito versos contra o profeta, foi, uma noite assassinada em meio de seus filhos, por ordem de Maomé.
O velho Abou Afàk, com 120 anos de idade pagou com a vida a oposição à nova concepção muçulmana.
Os judeus de Medina não apreciavam os gestos do profeta, e recusaram abraçar a nova religião. Foram cercados em seu bairro, e Maomé, querendo dar um exemplo de castigo, ordenou que os amarrassem e lhes decepassem a cabeça.
Um judeu rico de Medina, Kaf ben Achraf, tendo censurado o profeta, este ordenou que o apunhalassem em pleno coração.
Outro judeu rico, Abou Rafi, habitante de um castelo vizinho, havia excitado os judeus contra o profeta.
Este mandou estrangulá-lo na própria cama, enquanto dormia.
Nestas ocasiões Maomé, que sempre havia pregado o perdão, a paciência, o respeito à vida e aos bens alheios, parece não sentir mais nenhum remorso. Tudo lhe serve e tudo lhe é permitido para alcançar o fim: dominar a Arábia inteira e sujeitar todo o país à sua religião e dominação.
Os muçulmanos chegaram a tal ponto de obsessão pelos ensinamentos de seu profeta, e identificavam de tal forma os seus interesses com os de Deus, que nenhum deles sentia o menor escrúpulo em cometer os maiores crimes, em prol da seita.
Diversos atritos individuais tiveram lugar após estes assassinatos.
A um muçulmano que matara um judeu, seu ben­feitor, seu irmão, ainda idólatra, recriminou esta ingratidão.
- O pão que ele te deu ainda está no teu ventre.
- Por Alah! se Maomé, que me mandou matar a este homem, me dissesse para te matar a ti, meu irmão, eu o faria.
Impressionado com semelhante entusiasmo, o irmão tornou-se imediatamente muçulmano.
Estranho método de apologia!

* * *

Enquanto o profeta executava deste modo a sua vingança, fazendo assassinar os seus desafetos, os Coraichitas reuniam-se e resolviam tirar uma desforra da vergonhosa derrota de Badr.
Reuniram um exército de 3.000 guerreiros, dentre os quais 200 possuíam fogosos cavalos, e 700 outros eram equipados com cotas de malha ou couraças de pele de leopardo. Sob as ordens de Abon Sofian avançaram sobre Medina.
Conquanto Maomé só tivesse consigo 1.000 homens, quis enfrentar o inimigo. Armado, de lança em  punho, espada ao lado e escudo pendente do ombro, passou em revista o exército e levou-o a uma pequena distância da cidade, no monte Ohod.
Mandou colocar 50 arqueiros numa garganta, afim de evitar surpresas pela retaguarda, com a ordem de não se arredarem dali. Ele possuía uma espada na qual estava escrito: "A covardia não salva do destino".
Os Coraichitas chegaram, trazendo um ídolo numa urna sobre um camelo. Em redor deste ídolo quinze mulheres rufavam tambores e cantavam selvagens melopeias para encorajar os guerreiros: Nós as filhas da estrela da manhã...
Caminhamos sobre delicados tapetes
Nossos cabelos perfumados de almíscar:
Se avançardes heroicamente, nós vos beijaremos
Se fugirdes nós vos repeliremos vergonhosamente!
Assim cantavam na retaguarda as Coraichitas, enquanto outras gritavam aos homens: Avante! matai sem piedade, Não poupeis a ninguém!
Que vossos sabres sejam cortantes
E os vossos corações inflexíveis!
Nas grandes guerras, os Árabes levavam as mulheres à batalha, porque os seus cantos e gritos levantavam os ânimos e a sua presença levava os homens a combater até à morte. Quando tal acontece é sinal de que irão até aos extremos.
Maomé compreendeu o perigo, e brandindo a espada gritou a seus guerreiros:
Deus está conosco,
Matai aos infiéis!
Não escape nenhum!
A vitória é nossa
A vitória é de Alah!
O arranco de ambos os lados foi tremendo.
Os Coraichitas crivavam de flechas as primeiras linhas muçulmanas, enquanto os cavaleiros experimen­ tavam atacá-las pelo flanco.
O ataque violento dos muçulmanos abriu larga brecha nas forças dos idólatras. Era uma verdadeira tempestade de gritos, flechas, pedras e poeira!...
No meio da luta, a cavalaria mequense irrompeu, de repente, pela colina, sobre a retaguarda dos muçulmanos, em cujas fileiras, então, se produziu uma inexprimível confusão: os primeiros atiraram-se aos últimos, e vários mataram-se mutuamente por engano.
O porta-estandarte muçulmano agita a bandeira do profeta, mas um mequense corta-lhe a mão direita. Ele agarra-a com a mão esquerda, esta fica decepada no mesmo instante e o estandarte cái no chão. Deixa-se cair sobre ele para cobri-lo com seu corpo gritando: - Terei cumprido o meu dever? E morreu.
A situação agrava-se para os muçulmanos, dominados pelo número. O pânico apodera-se deles e começam a fugir, deixando o vale coberto de cadáveres e de feridos. O próprio profeta foi obrigado a fugir e a custo salvou-se com vida.
Foi atingido no rosto por uma pedra com tanta violência que o fez cair com um lábio fendido. Limpando com um pano de seu manto o sangue que corria, Maomé suspirou e disse: Como pode haver gente bastante obstinada para fazer correr o sangue do profeta que os chama para Deus!...
Uma ponta de flecha atingira-o também na face, e causava-lhe grande sofrimento. Ao fugir com os seus, a pesada armadura que o livrará da morte embaraçava-lhe os movimentos e fê-lo tombar num valado.
Os companheiros levantaram-no e o carregaram para a cidade.
A batalha findara. Os Coraichitas, saciando o seu ódio, trucidaram e roubaram os cadáveres, enquanto as mulheres cortavam-lhes as orelhas e os narizes para fazerem colares.
Nessa noite, os que restavam do exército muçulmano, exaustos de fadiga, sentiram uma angústia imensa apoderar-se deles, pois, além da vergonha da derrota, nada se sabia acerca das intenções do vencedor.

* * *

Ficou um tanto abalada a fé no profeta, mas Maomé não se deu por vencido e soube levantar a moral e a coragem de suas tropas.
Na noite seguinte São Gabriel trouxe nova revelação para salvar a situação. Deus lhe disse:
É nossa vontade variar os sucessos, para que Deus conheça os crentes, e escolha entre vós os seus mártires.
Ó crentes, se dais ouvidos aos infiéis, "Ele vos arrastarão ao erro e morrereis.
Após a derrota de Ohod, os inimigos do profeta levantaram de novo a cabeça, dizendo que tal insucesso era uma prova de incapacidade de Maomé.
Se Badr era uma espécie de prova da assistência divina, Ohod era uma prova de que Maomé não era um profeta.
Este redobrou pois, de atividade, e afim de realçar a sua missão e a sua capacidade, resolveu não dar trégua ao inimigo nem às suas tropas.
Deu início à organização de corpos de cavalaria, formou regimentos de lanceiros, de fundibulários, de sagitíferos, etc.
Logo depois, novo desastre veiu perturbar-lhe a paz.
A traição de um político indignou Abon-Barra e causou um desastre nas tropas do profeta. Pediu este auxílio aos Medinenses, que o ajudaram a combater os seus inimigos e foram massacrados traiçoeiramente junto aos poços de Bis-Maonna.
O número de mortos foi maior que em Badr, e quase tanto que em Ohod. Além disso, o prestígio do profeta ficou abalado entre as tribos beduínas.
O profeta ficou muito triste e queixou-se amargamente dos traidores.
Uma guerra mais atroz se estava esboçando... Os Coraichitas aliaram-se aos judeus e aos beduínos: tal coligação era capaz de dar um golpe mortal sobre o Islam.
Maomé reuniu os seus homens e disse-lhes então : Deus é o vosso protetor!
Ele se serviu dos vossos inimigos para vos por em fuga e experimentar-vos. Não escutastes a voz do profeta que vos chamou ao combate, e Deus castigou a desobediência.
Estas palavras reanimaram os muçulmanos e os prepararam para novas expedições.
No dia seguinte Maomé, suspeitando novo ataque da parte dos Coraichitas, dirigiu-se com suas tropas para o lado de Meca, encontrando, de fato o exército adverso.
Deu provas de coragem. Não obstante seus ferimentos, cheio de audácia, ameaçou enfrentar os inimigos.
Em caminho, para iludir os inimigos e fazer acreditar que estava se preparando para a luta, deteve-se quatro dias num acampamento, acendendo, à noite, fogueiras, para significar que não renunciava.
O inimigo que não pretendia abrir nova luta, tomou enfim, o caminho de Meca e o profeta regressou a Medina.

CAPÍTULO X

ESTRATÉGIA E CRUELDADE

Faltaria uma parte importante no julgamento global da vida do nosso herói, se omitíssemos o assunto acima.
De fato, faz de sua personalidade o caráter guerreiro que ele foi.
Não fosse Maomé pessoa de um gênio todo particular, apresentando qualidades contraditórias, em si, e não teríamos de considerá-lo neste aspecto.
Dir-se-ia que o homem sensual e mole dos haréns, de vida pecaminosa e viciada, não apresentaria aspectos másculos e consistentes, próprios de indomável guerreiro.
Dir-se-ia não quadrar com um chefe de facção religiosa o emprego de métodos violentos, quando a crença devia ser feita toda. de doçura e caridade.
Mas, como aqueles imperadores de Roma, tanto era o seu vício e sua superstição, cheia de extravagâncias pagãs e ritos truncados do cristianismo, como sua audácia e impassibilidade nos perigos.
Beduíno dos desertos e vastidões sem fim, desde cedo, se acostumara ao imprevisto dos assaltos, à fereza dum assalto à espada nua, ao embate em pleno campo aberto, e à defesa renhida e mortal das caravanas árabes. Massacrar inimigos sem o mínimo remorso, decapitá-los como animais de açougue, pisar-lhes os corpos ensanguentados sob cascos dos camelos, comoviam-no tanto como o impressionavam suas proezas de amor no interior dos haréns.
Seu lema sagrado: "crê ou morre, conquistaremos o céu à sombra das espadas" demonstra muito bem a mentalidade buliçosa e belicosa do falso profeta.
Como vimos pelos últimos capítulos, ele se sobressaía pela audácia, o sangue frio e por um otimismo dominador, capaz de arrastar verdadeiras multidões após si.
Quando os acontecimentos se precipitavam, de modo a causar apreensões para as suas aguerridas hastes, trazendo quase desânimo aos seus exaltados partidários, o chefe lhes falava que Deus os via e protegia, que nada tinham a temer e que a vitória estava mais perto do que poderiam pensar.
Não se imagine Maomé um habilidoso general, possuidor invejável de segredos militares extraordinários. De certo, não possuía os dotes estratégicos marcantes dos grandes condutores militares da história. Seria ingenuidade compará-lo a Alexandre, Napoleão, Aníbal, César e outros grandes comandantes de legiões romanas.
Mas, como eles, e talvez mais do que eles, era dotado de uma incrível fome e sede de domínio, uma compenetração ilimitada de sua capacidade dominadora, e sabia como aqueles, em arroubos poéticos e brados eletrizantes, impulsionar vivamente enormes tropas fanatizadas, prontas a obedecer-lhe a um só aceno de voz e a um gesto altivo de seus braços.
Expedições arriscadíssimas, aventuras lendárias, incursões perigosas, assaltos à mão armada, saques repetidos, vinganças executadas com o maior sangue frio, defesas heroicas, fugas precipitadas, - de tantas coisas foi ele pioneiro e de tudo saiu ileso, às vezes, com poucos ferimentos.
Pode-se, sem receio de erro, afirmar que possuía em alto grau o dom de sugestionar e excitar a simpatia e a confiança nos seus subordinados, de modo a ser obedecido e lograr resultado nas arremetidas em que se expunha conjuntamente com os seus, em prol de uma causa que dizia sagrada e intangível.
O exército muçulmano se constituiu, sob o controle de Maomé, um flagelo terrível. No combate aos judeus, veio a ser um verdadeiro espantalho. Expressões como esta: "Maomé! É ele! É Maomé e seu exército!", referem os historiadores, eram uma denúncia de fuga. Não haverá clemência: fugiremos ou seremos decapitados.
Eram os brados de desespero dos surpreendidos por ele e por seu exército.
Nada teria conseguido, podemos afirmar, não fosse ele possuidor de predicados próprios de grandes capitães guerreiros.
Se aconselhou aos crentes a lealdade, não deixou de desmentir esta recomendação, fazendo-se traidor e acostumando-se aos recursos ilusionistas e indignos de uma pessoa reta. Mesmo por tal expediente é que lhe sorriram muitas vitórias.
Certa vez anunciou aos Coraichitas que iria até eles em peregrinação, de feição religiosa, e não como inimigo. Resultou disso a derrota, o aprisionamento e o massacre de todos eles, colhidos inesperadamente.
O prestígio do profeta santifica, perante os seus correligionários, suas mais abomináveis e absurdas  chacinas. A palavra do profeta se transformara em porta aberta a tudo. E o seu pensamento, seu desejo, mesmo que fosse manifesto crime, adquiria para logo foros de revelação profética, que era forçoso executar.
E este apaixonamento extremo pela causa esposada pelo célebre árabe, aliado à influência duma mística religiosa deturpada, que ele soubera muito bem difundir, como preparação de terreno, no meio do povo, nos pode explicar seu segredo de vitória e de luta.
Sua vida sensual, sua atração acentuada pelas mulheres, ares efeminados, sua vaidade exagerada, sua desmedida soberba, nenhum destes graves defeitos chegou a empanar seriamente o valor inigualável de Maomé.
"Nós te juramos fidelidade, a ti e ao lslam, ó Maomé, para sempre, enquanto formos vivos".
Expressões como esta, servem para nos dizer a solidariedade dos árabes fanatizados do grande chefe.
Digam o que quiserem, teve ele dotes de coragem, de ·audácia e perspicácia, qualidades que explorou para conseguir seus intentos.
Condenáveis que são todas as suas tramas, conquistas guerreiras e lutas partidárias, nem por isso deixamos de reconhecer aqueles predicados da personalidade de Maomé, para o juízo integral da pessoa.
Concomitantemente com a sua habilidade combativa, andava sua crueldade. Deve-se, entretanto, ver ainda aqui manifestações de alguma bondade e algum desejo de perdoar em certas ocasiões.
Não tinha, porém, limites sua insaciável sêde de desforra completa, em que agia cruel e impiedosamente.
O massacre, a morte bárbara dos prisioneiros, pelos métodos desumanos, a repartição de seus despojos, sem atender a rogos de inocentes e mulheres, transformaram-no em um fantasma negro e temeroso, para quem as traições e tocaias, eram um costumeiro recurso para alcançar o triunfo almejado.
Se no Alcorão, deixara expressos preceitos de perdão e misericórdia, no seu furor aos rabinos e aos desafetos, foi verdadeiramente implacável. Herdaram-lhe o espírito os árabes maometanos, na expansão sanguinária de sua doutrina, pondo, por muitos séculos, em polvorosa, todo o ocidente e o oriente, no tempo das cruzadas.
"Tendes de escolher entre a rendição completa e a guerra mais bárbara". Era, como se vê, um totalitário, ambicioso, cheio de si e um poço de orgulho.
Foi com esta arma indigna que ordenou em sua lei - "combatei os incrédulos, combatei-os até à morte" .
Temperamento "sui-generis", Maomé entrou na História pela porta da superstição e da violência. Lançou mão dos sinais distintivos de sua raça, para alcançar o fim que se propôs - impor o Islam. Não recuou diante de nada.
Quando a morte o surpreendeu, sua ideologia dominava toda a Arábia. Era a vitória de sua estratégia e de sua crueldade.

CAPÍTULO XI

A VIDA SENSUAL DE MAOMÉ

No começo da sua carreira, Maomé era o reformador do paganismo de seus patrícios. Tendo sido bem sucedido nesta empresa, tornou-se legislador e chefe civil, setor em que brilhou com incontestável valor . Organizando seu exército, de pilhagem no início e de conquistas depois, tornou-se o guerreiro valente e avassalador. Ainda aqui, é um homem superior, que mostra uma coragem e uma perspicácia acima do comum.
Absorvido nestas empresas de grande alcance, o profeta vivia na fidelidade à sua esposa Khadidja, sem que a história citasse escândalos notáveis de incontinência em seu proceder. Levado, porém, ao pináculo da glória e do poder, e deixando para seus auxiliares a parte ativa da guerra e das conquistas, Maomé recai sobre si mesmo, e mostra aos seus próprios correligionários e ao mundo inteiro, o que era no fundo de seu temperamento irrequieto: um sensual e um efeminado, envolto no manto da mais negra hipocrisia e do mais deslavado cinismo. Parece um outro Maomé, ou pelo menos, um Maomé degenerado...
É a página triste e sombria desta vida de grande homem; página berrante de aviltamento moral.
Parece que uma tremenda sensualidade, recalcada até então, apoderou-se dele e o lançou na vida mais vergonhosa para um grande homem.
Desde a sua chegada a Medina, Maomé havia organizado um lar, semelhante aos dos saids árabes. Tal, como os outros chefes, fez vários casamentos de amor ou de política, e não se privou, além disso, de algumas concubinas, belas escravas que lhe tinham sido dadas de presente ou que eram cativas de guerra.
Depois da morte de Khadidja, sua primeira esposa, que ele respeitara sempre durante 20 anos, embora mais velha do que ele, caiu Maomé num verdadeiro marasmo de volúpia e de mania de casamentos! Desposou Saioda, viúva de Sokarn, porque a sua primeira amante, a menina Aicha, filha de Abou-Bakr, casada com ele aos nove anos, não era de idade núbil. Casou também com Hafça, filha de Omar. Mais tarde enamorou-se de Om­ - Selma, viúva de um emigrado da Abissínia, etc.
Tudo isso era já fora da lei, ditada por ele, mas pelo menos era ainda conforme à lei pagã dos árabes, que admitiam a poligamia - porém há fatos mais graves que destoam de toda lei e de todos os costumes, até dos árabes pagãos.
Maomé tinha um filho adotivo a quem muito amava, Zeid, (o bem amado do profeta) o qual era casado com Zeinab, a mais bela moça de sua tribo.
Esta beleza foi um objeto de tentação para o profeta. Zeid descobriu furtivamente o novo namoro do seu benfeitor, e para evitar violências ou talvez a morte, resolveu transformar a necessidade em virtude, e apesar do grande amor que tinha a sua única esposa, resolveu repudiá-la para evitar de contrariar o seu mestre e permitir-lhe que a desposasse.
Comunicou a sua resolução a Maomé, e fez o repú­dio legal. Transcorrido o tempo, a bela Zeinab fê-lo saber a Maomé. Este desejava tê-la por esposa, porém envergonhou-se, porque a lei proibia a união com a mulher de um filho adotivo...
O profeta logo afastou o impedimento. No dia seguinte ele comunicou ao povo e à sua nova namorada que São Gabriel lhe havia transmitido uma revelação: Pode o profeta de Deus casar-se com qualquer mulher, ,fosse ela até a sua própria filha adotiva, pois um filho adotivo não tem os direitos de um filho natural. ( Cop. XXXIII - § 73. Os conjurados.).
O banquete das núpcias foi grande: comeu-se e bebeu-se dia e noite - mas também o escândalo não foi menor e suscitou amargas observações, no meio de seus inimigos e amigos.

* * *

Uma nova revelação iiá desta vez tirar do embaraço o profeta libidinoso.
Alguns homens, pouco acostumados com a vida efeminada do profeta, ficaram a noite inteira a beber na casa da nova esposa. O profeta ficou nervoso. Queria visitar a sua nova companheira, mas estes visitantes importunos o retinham longe dela. Resolveu, entretanto, seu aborrecimento, e com calma mandou dizer aos visitantes que se retirassem.
· No dia seguinte, nova mensagem para o profeta, chamada o versículo da cortina.. Disse a revelação: "Ó crentes, não entreis sem permissão nas casas do profeta. Quando fordes convidados a entrar, e quando tiverdes comido, retirai-vos e não vos empenheis familiarmente em conversas. O Profeta não ousa vô-lo dizer, quando isso o contraria, mas Deus não teme dizer a verdade. Se quereis pedir alguma coisa às suas mulheres, pedi-a através de uma cortina, assim se conservarão puros os vossos corações e os delas. Evitai desgostos ao enviado de Deus. Não desposeis nunca as mulheres com as quais ele tiver tido comércio!" As esposas do profeta eram "as mães dos crentes".
Não deviam casar-se após a sua morte. O harém do profeta devia ser uma espécie de família sagrada, devota e voluptuosa.

* * *

Pouco depois de seu casamento com Zeinab, Maomé mandou seu exército atacar os Banou Bakr. Após a vitória, as tropas regressavam com os despojos e o Cheik, inimigo preso.
A luta havia sido encarniçada e horripilante pela voluptuosidade dos muçulmanos, que violavam todas as mulheres prisioneiras, e passaram a noite em orgias sem nome.
A filha do Cheik, ]ou Waria, cativa, foi implorar a clemência do profeta em favor de seu pai. Maomé ao ver surgir esta bela beduína, cuja doçura e graça eram excepcionais, sentiu-se desvanecido por um ataque amoroso. Quis casar-se com a nova prisioneira, custasse o que custasse.
Houve novo escândalo... vieram-se às armas, mas logo, o profeta recebeu nova mensagem do céu, que lhe disse: O profeta deve casar com a beduína, para assim selar, com um pacto de amizade, a paz entre os vencidos e os vencedores.

* * *

Aicha, a pequena esposa preferida de Maomé, havia acompanhado um dia o profeta numa das expedições armadas, carregada por um camelo em rica liteira. Tendo saído uns instantes sem avisar os condutores do camelo, e tendo ficado adormecida à sombra das árvores, a expedição continuou a viagem, sem dar pela falta da preferida do profeta. Um dos guerreiros, seguindo à retaguarda do exército, reconheceu Aicha, fê-la montar em seu camelo e levou-a para junto do exército, onde, ao espanto de todos, constaram estar a liteira vazia.
Houve escândalo... suspeitas... ciumes...  e línguas malévolas pretendiam acusar o "jovem guerreiro e a jovem Aicha.
O profeta não sabia o que fazer, colhido entre a sua desconfiança e o seu amor.
O céu tirou de novo o profeta do embaraço e uma nova revelação veio pacificar os ânimos. Maomé ditou os novos versículos da Surata da luz que proclamaram a inocência de Aicha e repreenderam os caluniadores.
(Cap. XXIV - 64 parágrafos) Lê-se no § 12: "Neste livro encontra-se a verdade e a luz; Aicha é inocente e não merece nenhum castigo".

* * *  

Maomé desposou ainda Riana e depois Sofia, uma outra judia tomada nos despojos de Khaibas. Ensinou-lhe a responder: Aaron é meu pai, Moisés meu tio e Maomé o meu esposo! Parece que não gostou muito tempo da bela judia, pois, pouco tempo depois, a repudiou, chamando-a mulher estéril e de mau agouro.
Chegou até a se casar com uma viúva cristã, por procuração, nos estados do Negus de Abissínia. Era Ramla, filha de Abon Sofian, viúva de um hanif cristão emigrado.
Sabendo deste casamento de sua filha com o seu inimigo, o pai exclamou furioso: Não há freio que domine este camelo lascivo!
Mais tarde, Maomé casou-se ainda com Maimouna, cunhada de El Abbas, o que lhe valeu o auxílio do sobrinho desta, o valente general Khalid.
Desposou mais tarde ainda duas mulheres, das quais repudiou uma, por razão de moléstia, outra, por razão de orgulho.
Possuiu ainda várias concubinas. A sua lascividade era tão conhecida pelas mulheres, que várias se ofereceram voluntariamente, julgando uma honra ter relações com o enviado de Deus, o que excitou o ciume e a raiva de Aicha, a preferida. Como é que uma mulher se oferece assim! gritou ela um dia. Maomé lhe respondeu com calma, citando o versículo trazido por S. Gabriel, dando este privilégio ao enviado de Deus.

* * *

O ciúme reinava bastante no grande harém do profeta: daí discussões, brigas, insultos.
Às vezes o profeta irritava-se com tais disputas e exclamava: O inferno está povoado de mulheres, desconfiai das suas intrigas.
Natura!mente, replicava Aicha, a preferida, confiante em seu poder. A mulher é um cavalo difícil de domar!
Ornar Selma presente retrucava: Estou vendo, as tuas outras mulheres não têm, a teus olhos, a menor importância! E rompeu a injuriar a favorita.
Afim de evitar novas recriminações, Maomé afastava-se umas horas, dando-se por doente, o que fazia dizer a Ornar: Quando o profeta está doente, suas mulheres enxugam os olhos vermelhos de lágrimas, quando lhe volta a saúde, elas agarram-no pela garganta.

* * *

Magoado, o profeta separou-se um mês de suas mulheres. Estas suspeitavam um repúdio, porém, o profeta limitou-se em citar-lhes a nova revelação trazida por São Gabriel: "Se ele vos repudiar, Deus poderá dar-lhe novas esposas melhores que vós, mulheres muçulmanas, crentes, piedosas, desejosas de se arrependerem, submissas, observando o jejum, tanto mulheres anteriormente casadas, como virgens'' .
Para evitar novas revoltas ciumentas, por ordem de Gabriel, o profeta prometeu-lhes não desposar doravante novas mulheres legítimas, promessa essa, sancionada pelo Carão, (XXXIII-52).
Não parece duvidoso que o Islam tenha modificado a sorte da mulher na Arábia. "No tempo do paganismo, declara Ornar, nenhum valor dávamos às nossas mulheres. Este estado de coisas cessou, quando Deus fez revelações a este respeito e designou os direitos que lhe deviam ser outorgados".
Entre os fiéis, dizia o profeta, o mais perfeito é aquele que se distingue pela delicadeza para com sua mulher.

* * *

Como se vê pelos exemplos citados, o pobre do profeta, na sua idade madura, livre das grandes preocupações das conquistas, tornou-se um homem sensual, voluptuoso, todo efeminado, e servia-se das suas pretensas revelações para desculpar e autorizar a sua vida escandalosa e lasciva.

* * *

Tudo lhe era permitido. As próprias leis, ditadas por ele, para orientar e moralizar os muçulmanos, eram desprezadas e pisadas sob os pés .
E, como naturalmente se levantavam censuras e críticas, no ambiente adverso, pois toda reforma suscita uma oposição, o profeta atribuía a São Gabriel a sua lascividade e o seu feminismo, como lhe atribuía a sua doutrina e as suas leis. É o próprio Anjo, e por ele, o próprio Deus que está em contradição consigo mesmo, que proibia o mal, e depois ordenava cometê-lo.
Hoje Deus proíbe, e amanhã permite. Ele se corrige, ele muda, ele se retrata... Logo, tal doutrina não é de Deus, é uma doutrina falsa, porque Deus é um só, é imutável, não se contradiz nunca.
Bastaria a presente página, para nos convencer que Maomé não tinha recebido nenhuma missão de Deus, mas, não passava de homem obsediado por um ideal religioso, uma espécie de auto-sugestão.
Sincero, ao início de sua carreira, foi-se deixando dominar gradualmente pela ambição do poder, da dominação, e no fim pela sensualidade carnal, que, perante os séculos, o arrancou de seu trono de reformador, para assimilá-lo a um vulgar libertino.
Ele mesmo sentia a sua queda e para escondê-la, lança sobre ela o manto da hipocrisia, fingindo revelações para legitimar a sua vida dissoluta.
Fiz questão de citar estes vários exemplos, porque, melhor que outras minúcias da sua vida, indicam e formam a personalidade do pseudo-profeta, como apontam as numerosas incoerências e mudanças de sua doutrina moral.

CAPÍTULO XII

ÚLTIMOS DIAS E MORTE

Estava Maomé com 63 anos de idade. Seus últimos dias de vida ficaram envenenados pelo desespero de ver outros profetas levantarem-se, e a seu exemplo, proclamarem-se inspirados por Deus.
Um certo El-Aswad, dizendo ter revelações celestes, sublevou o sudoeste da Arábia, que, renunciando ao Islam, ia seguindo o novo enviado. Penetrou o usurpador no Nejram cristão, e até em Sanã. Os funcionários muçulmanos fugiam apressadamente para Medina.
Um outro profeta, Morcilen, surgiu das margens do golfo pérsico, no Yemen, ameaçando o sul da península.
Era a derrocada?
Os beduínos iriam abandonar o Islam para seguir os dois impostores? Um deles teve a ousadia de escrever a Maomé: Nós ambos somos enviados de Alah, dividamos o mundo entre nós!
Maomé resolveu vingar a sua honra e a sua missão.
Mandou incontinenti preparar uma grande excursão para a Síria.
No momento em que o exército ia partir sob o comando do jovem favorito Osana, filho de Zeid, o profeta sofreu um violento assalto do mal que havia muito o atacara, e cujas origens parecem remontar tanto às águas insalubres como ao veneno de Zeinab, em Coíbas. Delirava, julgava-se enfeitiçado e sofria estranhas alucinações sexuais.
No delírio de uma noite de pesadelos, dirigiu-se com uma das suas mulheres ao cemitério, e aí felicitou os mortos por terem encontrado a paz.
O mal progrediu, e o profeta pediu que o transportassem à casa da sua preferida Aicha.
Parece que o veneno devorava-lhe as entranhas.
Sofria horrivelmente. Gritava, gemia, dizendo que as veias se lhe estouravam.
No dia seguinte, o mal agravou-se ainda e, desde então, seguiu-se uma lenta agonia de quatro dias, com intervalos lúcidos e contínuas síncopes.
Uma agitação febril agitava seus membros. Uma sede abrasadora devorava-lhe a língua, enquanto dores atrozes lhe estraçalhavam as entranhas. Gritava, encolerizava-se, pedindo que lhe refrescassem as entranhas e a cabeça.
Cercado de seus amigos, das suas mulheres, de Ai­cha sobretudo que o chorava, Maomé tornava-se cada vez mais pálido... um suor gélido banhava-lhe o rosto... as mãos crispavam, procurando agarrar os objetos que o cercavam.
Era ·a morte que se aproximava... a morte causada pelo veneno ministrado pelas mãos de Zeinab que quis saber se, de fato, ele era profeta ou impostor... e o veneno atroz fez a sua obra de destruição, desmascarando o falso profeta e apresentando o impostor ao mundo e aos séculos.
Prevenido pela sua filha, Abu-Bakr chegou nesta ocasião e beijou chorando o rosto do morto. A saída cruzou-se com Omar, o qual brandindo o seu sabre, ameaçava matar quem dissesse que Maomé havia morrido.
A multidão que acorrera, recusava-se com ele a admitir o fato.
Se adorais Maomé, declarou Abu-Bakr, sabei que ele morreu. Se adorais a Deus, sabei que Deus está vivo e nunca morre.
Ornar conformou-se, havia coisas prementes a fazer.
Deixando o corpo que inchara consideravelmente pela penetração do veneno, os dois companheiros íntimos, ambos sogros de Maomé dirigiram-se à reunião dos Ançar. - Foi uma confusão geral, pois o profeta não teve tempo de regular a questão da sua sucessão temporal.
Vários partidos se enfrentavam: os Ançar, de Medina, de um lado; os Mohaproum de Meca, com Abu-Bakr e Ornar,· os Hachimitas, com Fátima, filha de Maomé, e parentes; os Omnisados patrícios, com Abu-Sofian outro sogro do profeta.
Abu-Bakr, com sangue frio e com o apoio de Omar, soube habilmente aproveitar a desunião geral e a hesitação de todos, e após um hábil discurso obteve quase de surpresa o califado ou sucessão de Maomé, como chefe temporal.
O cadáver ficou quase abandonado.
Os Achimitas levaram-no e enterraram-no envolto em três peças de tecido, ao fim de 36 horas, quando o costume era de enterrar no mesmo dia.
Abu-Bakr e Ornar não assistiram aos funerais; este último foi-se e penetrou à força, em casa de Fátima e esteve a ponto de brigar com Alí, seu marido.
Exasperada, a filha do profeta ameaçou de mostrar em público a sua cabeleira, em sinal de vergonha e de amargura. "Os profetas não deixam herdeiro" declarou Abu-Bakr, quando ela veio com Alí, reclamar a herança do pai.
A pobre mulher morreu alguns meses depois, escarrando os pulmões e declarando-se feliz por abandonar um mundo de iniquidade, onde cinicamente se tinham pisado aos pés os seus direitos.
Alí tornou a casar-se várias vezes. Reconciliou-se com Abu-Bakr, e foi mais tarde califa, depois de Ornar e de Otsman.

CAPÍTULO XIII

A PERSONALIDADE DE MAOMÉ

Conhecemos a vida e a morte do homem extraordinário que se intitulou "enviado de Deus", ou "profeta".
Deve reconhecer-se que a personalidade de Maomé sai do comum, do banal e entra num domínio psicológico de muito valor.
Não possuímos nenhum retrato, nenhuma indicação autêntica de Maomé. Conforme a tradição árabe, era de estatura média, tinha a cabeça volumosa, a pele trigueira e corada, feições acentuadas, olhos grandes e brilhantes, testa larga e proeminente, nariz aquilino, cabelos pretos como o ébano, barba farta, fisionomia majestosa e suave. Quando se encolerizava inchava-se-lhe uma veia entre os sobrolhos.
Era afável com os inferiores, alegre na convivência dos amigos, e pensativo nas horas de solidão.
Não sabia ler nem escrever, ou pelo menos fingia­ se de iletrado para inspirar maior fé nas suas pretensas revelações, que segundo dizia, lhe eram feitas por escrito, e apresentadas por S. Gabriel.
No dizer de alguns escritores árabes, Maomé avantajava-se a todos os outros homens em quatro coisas: em valor, em luta, em liberalidade e em vigor marital. Até aos 50 anos foi fiel a Khadidja, a quem se confessava devedor da sua fortuna, e respeitou-a sempre.
Colocou-a no número das quatro mulheres, espelhos de virtude, com:
Maria, irmã de Moisés,
Maria, mãe de Jesus Cristo,
Fátima, a sua filha e
Khadidja, a sua esposa.
Como a todo momento falasse de Khadidja a suas outras mulheres, Aicha, a sua preferida, interrompeu-o um dia, exclamando: "Em todo caso, era velha, e foi substituída por uma que vale mais do que ela" .
- Não, por Deus, volveu o profeta, nenhuma mulher pode ser preferida a Khadidja, que acreditou em mim, quando os homens me desprezavam e que proveu as minhas necessidades, quando eu era pobre e perseguido" .
Depois de ela morrer, desposou sucessivamente 15 mulheres, apesar de só permitir quatro no Alcorão.
Simulou até, várias vezes, ter recebido ordens do Céu, para se casar com mulher alheia. Teve também 11 concubinas, o que elevou a 26 o número de mulheres de seu harém.
A única descendência legítima que deixou foi Fátima, mulher de Alí.
Vê-se por este conjunto, que Maomé, dominado pela paixão da carne, levava uma vida sensual, efeminada, o que é bastante para desacreditar a sua missão de reformador e anular as lendas das visões e aparições do céu.

* * *

Maomé exercia um poder imenso sobre os muçulmanos, sendo a simulação da intervenção de São Gabriel o principal instrumento deste poder. Usava e abusava dele, quando e como convinha aos seus desígnios, para autorizar as próprias paixões vergonhosas, a tal ponto que a sua vida foi uma contínua exceção às regras por ele mesmo estabelecidas, regras de cujo cumprimento, o anjo Gabriel vinha a todo momento dispensá-lo.
A princípio, zeloso adversário da idolatria, recorreu depois à impostura, fingindo comunicações frequentes com Deus, a quem atribuía todas as suas resoluções, bem como a perseguição que moveu aos Judeus e Cristãos.
Condenou-se a si próprio quando escreveu em seu Alcorão: "Fazer Deus cúmplice de uma mentira, simular revelações que se não recebem, e dizer: Farei descer um livro igual ao que Deus mandou, é a pior das impiedades" .
Não se arrogou o condão de taumaturgo. Quando os inimigos lhe pediam milagres provando a sua missão, contava as vitórias ganhas com auxílio de batalhões de anjos, que combatiam, dizia ele, invisíveis entre os seus guerreiros.
Os seus crentes inventaram milagres e prodígios, porém o próprio profeta os negava, escrevendo: "Era pobre e cheguei a dominar a metade do mundo, eis o milagre que operei!"
Negociante, profeta, pregador, legislador, guerreiro, poeta, Maomé concebeu o projeto de estabelecer, no meio da luta das religiões, um dogma de maior simplicidade. Perseverou com paciência nos desígnios de  morosa. realização, suportou com coragem as oposições, as perseguições, até o seu grande intento de reunir em suas mãos o poder religioso e civil. Tudo isto é extraordinário, e supõe da parte de Maomé, uma personalidade forte, firme, perseverante, acima do comum dos homens.
Estas grandes qualidades são obscurecidas pela ambição que o dominava, pela hipocrisia tudo atribuindo a S. Gabriel, pela sensualidade que o arrastava até ao epicurismo, e pela crueldade em suas vinganças.
É uma personalidade dominadora que quer um fim, e que se serve de todos os meios, até dos mais perversos, para alcançá-lo.
A mudança que se opera nele, conforme as circunstâncias, as modalidades de seu oportunismo, demonstram que, apesar de corajoso, perspicaz, inteligente, era um alucinado, um obsesso religioso.
No meio da sua carreira, parece ter ele mesmo acreditado em sua missão reformadora, porém no fim, vê-se também que é a ambição da conquista do mundo que o domina.
Custa acreditar-se na sinceridade de Maomé, pois ele recorre a tanta simulação, a tanta hipocrisia, que é impossível que a sua consciência não proteste contra o seu procedimento.

* * *

A morte de Maomé consternou a todos os crentes.
Logo depois, suscitaram-se descontentamentos e formularam-se dúvidas.
Diziam alguns que o profeta não podia morrer, e que, como, Moisés, voltaria, passados quarenta dias, ou ressuscitaria, depois de três dias, como Jesus.
O impetuoso Ornar chegou a ameaçar com a espada a quem dissesse o contrário. O prudente Abu-Bakr, desaprovou-lhe os efeitos: Deus vive eternamente, disse ele, mas o seu profeta era mortal como nós, e terminou a sua carreira. Devemos adorar o Deus de Maomé e não Maomé!
Esta sentença, confirmada pela putrefação do corpo do profeta, serenou os espíritos e prepararam-se exéquias esplêndidas.
Não houve lágrimas, nem soluços, mas tão somente louvores conferidos ao grande homem, que reuniu ao laurel do poeta, o cetro do legislador e a espada do guerreiro.
Quando se tratou de escolher lugar para a sua sepultura, houve desinteligência.
Os Moadjerianos queriam levá-lo para Meca, sua pátria.
Os Ansarianos queriam conservá-lo em Medina, o centro do seu governo.
Outros entendiam que devia ser sepultado em Jerusalém, no meio dos profetas.
Abu-Bakr resolveu a questão, declarando que ele manifestara o desejo de ser sepultado no lugar onde morresse.
Cavou-se-lhe, pois, a sepultura mesmo debaixo do leito onde falecera. Em volta do túmulo ergueu-se depois uma suntuosa mesquita, modelada pela de Meca, em forma de torre, cercada de galerias cobertas, com um pequeno edifício no centro.
No ângulo sudeste da Mesquita está o túmulo, num quadrado de pedras negras que sustentam duas colunas.
Maomé exclama antes de morrer: "Malditos os judeus, que converteram em templos os túmulos dos seus profetas". Por uma nova contradição, ou exceção às suas leis, foi inhumado no mais esplêndido dos templos, e as visitas a este templo são um dos deveres mais sagrados do islamismo.

CAPÍTULO XIV

O LIVRO DO ALCORÃO

A doutrina, os erros, as qualidades e os vícios de Maomé estão compendiados no Alcorão, que ele destinou para código civil e religioso dos árabes, querendo reunir as suas tribos dispersas sob uma só lei, uma só crença, uma só moral reformada, um só culto próprio, entrando em seus planos, que os sucessores da sua autoridade fossem pontífices e soberanos.
Chama-se Al-Koran, isto é: o livro. Dá-se o nome de surata a cada um de seus capítulos. Estes são 114, de tamanho desigual, distinguindo-se uns dos outros, não por número de ordem, mas por títulos especiais, tirados ou de algum versículo ou da pessoa que fala, ou do capricho do compilador.
São em prosa, mas em linhas paralelas, com rimas frequentes, algumas das quais obtidas por interrupção e mesmo alteração do sentido. No alto de cada capítulo, lê-se: B'ism iilah el rohman el rakkem (Em nome de Deus, o clemente, o misericordioso) - donde a fórmula usada pelos muçulmanos para o cabeçalho de todos os seus escritos: B'ism iiJah, em nome de Deus .
Os escritores maometanos encarecem muito o estilo do Alcorão. Realmente, é ameno nas passagens em que imita as maneiras e frases poéticas. É conciso, ornado de figuras à moda oriental, e não raro aformoseado por expressões floreadas e sentenciosas. Eleva-se e torna-se magnífico, quando descreve a majestade de Deus.
Sobretudo, admira-se a forma do Alcorão. Sente-se que Maomé procurou embelezá-la com o encanto da poesia, dando-lhe um movimento harmonioso e fazendo rimar os versículos com os períodos.
O Alcorão tem por único dogma que Deus é uno, e que Maomé é seu profeta: Deus é Deus, e Maomé é o seu profeta - Alah el Alah, Mohamet ers o Alah!
Por princípios fundamentais erige a prece, a esmola, o jejum, a peregrinação.
A sua moral assenta-se na lei natural e no que convém aos habitantes dos climas quentes.
O profeta compôs o seu livro acumulando nele muitos artigos tirados da Bíblia, muitas ficções ou fábulas tiradas do Talmud e misturadas com outras que lhe inspirou a ardente imaginação. Carece, porém, de método e ligação.
Na efervescência do entusiasmo ou da vaidade, Maomé fez consistir a verdade da sua missão no mérito do livro. Repta audaciosamente homens e anjos a que imitem as belezas contidas numa só das suas páginas, e tem a presunção de asseverar que tão primorosa e incomparável obra só podia ser ditada por Deus.
Este argumento adquire força, quando dirigido a um árabe devoto, disposto para a fé, cujos ouvidos ficam encantados pela bela harmonia dos sons, e que é incapaz de comparar o pretenso primor com as outras produções do espírito humano.
Não é, portanto, de estranhar que os muçulmanos chamem ao Alcorão - "o livro glorioso", ou simplesmente o livro, como os cristãos designam: O Evangelho.
O livro do Alcorão foi terminado em 17 anos, já em Meca, já em Medina, à proporção que lhe era revelado, isto é, à proporção que o legislador precisava fazer falar a Deus.
Cada revelação dizia respeito às necessidades do momento, às exigências das paixões ou da política.
Conquanto alí se encontrem flagrantes contradições, a discussão é evitada pela máxima preliminar de o texto da escritura ser modificado pelas subsequentes explicações.
Estas supostas revelações eram escritas pelos Khodac ou secretários, em folhas de palmeira ou em pergaminho, logo que caíam dos lábios do profeta.
Os discípulos aprendiam-nas depois, e em seguida todos os fragmentos, quer em pergaminhos quer em folhas, eram encerrados ·num cofre.
O Alcorão foi posto na ordem em que atualmente se encontra pelo Califa Abu Bakr.
O que é notável no Alcorão são as referências que faz à religião cristã. Várias vezes e em termos respeitosos, o profeta menciona Jesus Cristo e Maria Santíssima. Ele é um dos mais antigos escritores que falam da Conceição da Virgem mãe de Jesus. Alude a ambos nos cap: 111, v. 37; XXI, v. 90 e LXVI, v. 12.
Vale a pena reproduzir aqui estas alusões, tão gloriosas para a pura e Imaculada Mãe de Jesus.
No Cap. 111, v. 37, ele diz: O anjo disse a Maria: Deus te escolheu, te purificou, és a eleita entre todas as mulheres, Teu Filho será digno de respeito neste e no outro mundo.
No Cap. XXI, v. 90, ele diz: Canta os louvores de Maria, que conservou a sua virgindade, ela e seu Filho foram a admiração do universo!
No Cap. LXVI, v. 12, diz: Deus ofereceu à admiração universal, Maria, filha de Amran, que conservou a virgindade. Gabriel insuflou-lhe o sopro divino. Ela acreditou na palavra do Senhor e mostrou-se obediente.
Estas passagens provam que Maomé tinha relações íntimas com judeus e cristãos e se fez instruir nos principais dogmas da fé possuída por eles, manifestando toda a sua vida, respeito e até veneração, para com as suas crenças.
Quanto ao Evangelho, não o conhecia, ou o conhecia mal. Alguns fatos que dele tirou, mostram, por muito desfigurados, terem-lhe chegado aos ouvidos por tradições, ou às mãos, por livros apócrifos.
Faz mais uso do Antigo Testamento, de que cita expressamente o Pentateuco e os Salmos. Argumenta com os Patriarcas, cuja história conta, com a intenção manifesta de restaurar o seu ensino, autorizar-se com seus exemplos e lisonjear a vaidade da nação que lhes atribuía a sua origem.
No dizer dos comentadores do Alcorão, a sabedoria de Moisés e a piedade de Jesus eram por Maomé consideradas como vindas de Deus, em preparação ao caminho de um profeta ainda mais ilustre, para as gerações futuras. A promessa evangélica do Paráclito foi antecipada figura de Maomé, último apóstolo de Deus.
Convém notar que Maomé estava rodeado de judeus e de cristãos, tendo assim ocasião de se informar da sua crença e de seus dogmas.
A criada de quarto de Khadidja era uma Abissínia cristã.
Zeid, o filho adotivo de Maomé, descendia da tribo convertida dos Banou-Kalb.
Eram cristãos o sogro e o genro de Abou Sofian, cuja mulher se casou com Maomé.
Raras eram as famílias de Meca que não contavam entre os seus membros, e especialmente entre os seis escravos, alguns cristãos.
O profeta não disfarçava as suas simpatias pelo cristianismo. No Alcorão aponta ele como modelos os mártires cristãos dos primeiros séculos e os mais recentes do Yemen.
Louva os monges e os sacerdotes, cujas virtudes o  profeta apreciara nos confins da Síria.
Rejubila-se pelo fato da vitória grega (Heráclio) ter impedido a destruição dos mosteiros e das igrejas, onde o nome de Deus é incessantemente invocado.
Nem mesmo quando rompeu com os judeus, ele desdenhou os cristãos: "Tu reconhecerás, (diz Deus) naqueles que professam mais inimizade aos crentes, os judeus e os pagãos, e verás que os que estão mais próximos do amor dos crentes, são os que dizem: Em verdade nós somos cristãos. É porque há entre eles sacerdotes e monges e porque não são orgulhosos.
O Alcorão permite que os muçulmanos se casem com cristãs e comam da comida dos cristãos.
Embora desvirtuados e mal explicados, os dogmas cristãos encontram-se no ensino de Maomé.
Pecado original de Adão, expulso do paraíso;
Solidariedade do gênero humano,
Satanás expulso do paraíso,
Livros sagrados,
Anjo da guarda,
Messias,
Anticristo,
Fim do mundo,
Ressurreição,
Juízo final, são pontos em que o Alcorão se mostra vizinho do cristianismo .
Implicitamente até encontramos no Alcorão os dogmas da Encarnação, da Redenção, da Imaculada Conceição, da missão de Jesus, da Ascensão e mesmo a Eucaristia, na Surata Mesa posta.
Para os muçulmanos, o Alcorão é a palavra de Deus.
Como no tempo dos profetas de Israel, é Deus que pretende falar aos fiéis.
Sendo, porém, escrito em prosa rimada, o texto supõe necessariamente, um certo trabalho redacional.
Várias minúcias demonstram remodelamentos pos­ teriores; por exemplo, a Surata IX interdiz aos ímpios a visita das mesquitas, quando elas ainda não existiam.
A Surata 49 fala de guerras entre nações crentes no lslam, quando, no tempo da pretensa revelação, só havia uma nação.
Se Zeid não foi o falsificador, pode muito bem· ter sido o autor que modificou estes e muitos outros versículos.
Em suma, pode-se dizer que o Alcorão contém as grandes verdades religiosas conhecidas por Maomé pelo seu contato com judeus e cristãos.
A inspiração do livro é elevada, de uma poesia abundante, de imagens empolgantes, embora a linguagem não seja erudita nem literária e, às vezes, resvale em banalidades.
As inúmeras contradições que encerra, as oposições de uma época com a outra, conforme as necessidades do momento, demonstram que é uma obra puramente humana, onde o Arcanjo Gabriel figura de nome, mas de onde sua ação acha-se completamente excluída.
Dizem que Maomé era analfabeto, não sabia ler nem escrever: e ele mesmo autoriza tal opinião. Pode-se duvidar de tal asserção, pois, inteligente como era, julgando-se chamado por Deus para reformar seu povo, deve-se admitir que, já de longe, ia ele preparando seu futuro papel: teria estudado e, em consequência, sabia ler, escrever e talvez se achasse a par de outros conhecimentos de seu tempo.
Se não lia livros existentes, os fez ler, pois tem noções sobre todos os assuntos de que trata.
É certo que o Alcorão não é obra exclusiva sua: foi completada, aperfeiçoada, remodelada, como o reconhecem os primeiros historiadores do profeta.
Se não temos a palavra certa de Maomé, temos, pelo menos as suas ideias, a sua organização, as suas leis: é quanto basta para que o reconheçamos como autor do Alcorão.

CAPÍTULO XV

OS DOGMAS ISLAMITAS

Não se deve buscar no Alcorão, e menos ainda, na tradição árabe, um corpo de doutrina bem definido.
Muitos problemas, aí, são omitidos ou ignorados, embora sejam essenciais.
Podem reduzir-se a seis as principais crenças islamitas:
1. A existência de Deus.
2. A existência dos anjos,
3. Origem divina do Alcorão,
4. A fé nos profetas.
5. A ressurreição dos corpos.
6. A predestinação.
Dois dogmas são capitais para o muçulmano: a unidade de Deus e a missão de Maomé.
O nome de Alah, assim como a ideia que inspira, provém dos judeus e cristãos, moradores dos confins da Arábia.
Maomé reconhece em Deus sete ou oito atributos ou qualidades, já expressos na Bíblia. São: o poder, a vontade, a majestade, a duração ilimitada, a ciência, a justiça, a bondade e a misericórdia.
Nada entendia o profeta, dos dogmas da Trindade e da Encarnação. Julgando-os pela forma de politeísmo, não cessara de invectivar contra aqueles que julgavam Deus capaz de gerar.
Este monoteísmo, fortemente afirmado, produziu uma profunda impressão sobre os árabes.
A principal prova da existência de Deus, é o seu poder, manifestado pela ordem e a beleza do mundo, pela providência e o profetismo e por uns pseudo-milagres, atribuídos ao profeta.
Embora livre e responsável, o homem está sob a total dependência de Deus, que conduz ou perde a quem lhe aprouver.
O problema da· predestinação está enunciado, porém não resolvido.
É indubitável que o Alcorão não admite o fatalismo moral, como geralmente se pensa. Quanto ao fatalismo físico, este está no temperamento de todos os orientais, e se revela de preferência pela forma de resignação.
O Islam tem do profetismo quase a mesma concepção que o judaísmo.
Adão, Noé, Abraão, José, Moisés, Salomão, João Batista, Jesus, são considerados como os grandes profetas que precederam a Maomé.
Abraão, Moisés e Jesus são os três maiores. Maomé considerava-se como o último chegado, anunciado já pelo Antigo e pelo Novo testamento. Julgava-se o Paráclito prometido por Jesus.
Quanto ao mecanismo do profetismo, o Islam o considera do modo mais rudimentar e mais material.
Não é em virtude de uma iluminação interior que o profeta recebe revelações, mas sim por via objetiva e externa: pela palavra do anjo Gabriel.
Se o interroga, para receber a resposta, ele é obrigado a esperar, até que tenha nova comunicação, como nós no telefone.
Na doutrina muçulmana, a morte é seguida pelo juízo particular, que se desenrola no interior do túmulo.
A alma, que, na crença popular, parece residir no túmulo até a ressurreição, sendo interrogada pelos dois anjos Mounkar e Nakir, sofre alí a pena ou recebe a felicidade merecida.
A ressurreição é um dos dogmas sobre os quais o Alcorão insiste com mais frequência. Descreve-o várias vezes, parecendo apoiar-se sobre as visões de Ezequiel.
Um juízo geral segue-se à ressurreição.
A ideia que o Alcorão dá do inferno é bastante interessante. É um aparelho transportável que se traz por ordem de Deus, como uma locomotiva, ou um monstro rugidor.
Em outra parte, o Alcorão apresenta do inferno uma descrição por assim dizer arquitetura!, como um imenso funil de sete graus, mergulhado no fundo de um abismo.
Não se pronunciando o Alcorão sobre a eternidade das penas, intervieram os comentadores, que determinaram a não-eternidade.
Quanto ao paraíso, este é descrito por Maomé sub o modelo destes jardins orientais, com terraços, onde jorram águas límpidas e frescas, e onde amadurecem frutos sazonados.
Possui assim oito terraços, dispostos em pirâmide.
Suntuosos pavilhões são construídos neles. Os prazeres experimentados aí são partilhados pelos anjos.
Sob a influência de correntes místicas, junta-se-lhe a visão beatífica.
Do purgatório propriamente dito, não se fala. Existe, porém, acima do inferno, uma ponte que as almas dos justos atravessam num abrir e fechar de olhos, enquanto as almas menos puras ficam aí longamente detidas.
Entre o céu e o inferno, existe uma outra espéc!e de barreira, onde os pecadores esperam por muito tempo a decisão da sua sorte.

* * *

O dogma é a base da piedade. O dogma islamita sendo vago, flutuante, a piedade pode revestir-se de uma forma sistematice..
Para o piedoso muçulmano existem, entretanto, cinco grandes deveres de piedade, que se chamam as cinco colunas do Islam.
Estes deveres compreendem:
1. A fé nos dogmas islamitas.
2. A adoração.
3. A esmola.
4. O jejum.
S. A peregrinação a Meca.
Visivelmente calcado sobre o modelo dos exercícios monásticos, a oração (salât) deve fazer-se cinco vezes ao dia. Reza-se onde se estiver, e não existe outra forma de culto.
Para convocar à oração, o muezzin vai devagar em redor do minarete ou torre da mesquita, as mãos abertas de cada lado do rosto, o índice fechando as orelhas, modulando o seu convite:
Deus é grande! (quatro vezes).
Atesto que não há outro deus, senão Alah! (2 vezes).
Vinde à oração (2 vezes).
Vinde à salvação (2 vezes).
Deus é o maior, só Alah é Deus!
Ouvindo este convite, o muçulmano lava o rosto, os braços até ao cotovelo, os pés até ao tornozelo. Na ausência de água, esfrega-se com areia.
Estende depois o seu tapete de oração, vira-se para o lado de Meca (indicado pela mesquita ) e ora, em pé, depois prostrado, depois acocorado sobre os calcanhares, pronunciando as curtas fórmulas consagradas, que reproduzem aproximadamente as do muezzin.
Junta-lhes o fatihah (a introdução) ou surata em que começa o Alcorão, e que é por assim dizer o Pater do muçulmano: Glória a Deus, Senhor do mundo, o clemente, o misericordioso, o mestre do dia do juízo! É a ti que servimos, é a ti que pedimos socorro. Conduze-nos pelo caminho daqueles contra os quais não te zangas, pelo caminho dos que não se transviam!
O jejum durava todo o mês de Ramadan. Há proibição absoluta de comer, fumar e aspirar perfumes antes do deitar do sol.
Torna-se obrigatório o jejum desde a idade de 14 anos, sendo isentos os doentes, viandantes e soldados em expedição.
O Ramadan vai da aurora da manhã até ao deitar do sol, sendo permitido à noite tudo o que se proíbe durante o dia.

* * *

Cada crente, pelo menos uma vez na vida, deve visitar Meca e dar sete voltas ao redor da Caaba e apertar-se contra o ângulo da mesquita onde está incrustada a pedra preta, bólide outrora honrado com um culto fetichista.
A moral social faz parte integrante dos dogmas de um povo.
O Islam, na sua gênese, devia ser um vasto agrupamento de crentes, teoricamente iguais perante Deus, o único Mestre, cujo representante era o profeta.
Os Califas, sucessores do profeta, deviam ser proclamados pela comunidade muçulmana. Conquanto absoluto o seu poder, podiam ser depostos se se afastassem do Corão.
O sucessor imediato de Maomé foi Abou Bakr, que foi proclamado pelos chefes dos crentes.
Abou-Bakr designou ele mesmo o seu sucessor, Ornar. E Ornar criou um conselho de 6 membros, entre os quais devia ser eleito o Califa. Enfim o sucessor se fez por hereditariedade.
todas as leis devem estar baseadas no Corão. A jurisprudência é uma ciência religiosa. Os jurisconsultos, no Islam, desprovido de sacerdotes, substituem por uma parte o clero. Os doutores, ou ulérnas se formam nas universidades muçulmanas.
À frente dos ulémas está o cheik-ul-xiolam, o principal chefe religioso depois do Califa.
Entre os doutores, distinguem-se os Kadis ou juízes, os muftis ou consultores, e os imans que presidem às orações.
O número das espôsas legítimas é reduzido a quatro.
Muitas outras práticas religiosas são emprestadas do judaísmo, como a proibição do vinho, da carne de porco, também dos outros animais quando não forem mortos nas formas rituais .
A circuncisão está em uso geral entre os muçulmanos, embora o Corão não o indique.

CAPÍTULO XVI

A GUERRA SANTA

De todas as prescrições islamitas, a mais original, talvez, e a mais ativa para a sua extensão, é, sem dúvida, o preceito da guerra santa.
"Combatei nos caminhos de Deus até que todo culto seja o do único Deus.
Em oposições às outras religiões universalistas, onde domina o espírito de mansidão, esta ordem revela o instinto belicoso do chefe do bando, e é sobretudo a ela que o lslam deve a sua prodigiosa expansão. O serviço militar toma-se, deste modo, um dever religioso, a conquista torna-se um apostolado, e a morte no campo de batalha é um martírio.
A guerra santa contra os infiéis é uma obrigação, em harmonia com o caráter aventuroso e sanguinário dos Árabes.
Os conselhos do profeta adaptam-se perfeitamente a estas disposições, procurando, ao mesmo tempo, excitar e abrandar os seus crentes.
"Combatei os inimigos na guerra de religião, diz ele no Corão, matai-os onde os encontrardes.. O perigo de mudar de religião é pior que o assassínio".
Combatei-os até não terdes que recear tentação e ficar consolidado o culto divino. Cesse toda inimizade, logo que eles tenham abandonado os ídolos, pois que a vossa cólera só contra os maus se deve exercer.
No vosso proceder para com eles transgredi as leis que eles não respeitarem para convosco.
O paraíso está à sombra das espadas. As fadigas da guerra são mais meritórias que o jejum e as orações e as outras práticas da religião. Os guerreiros que caem no campo de batalha sobem ao céu como mártires.
"Ó crentes, quando marchais para a guerra santa, medí as vossas ações e nunca por cobiça de presa chameis de infiel a quem vos saudar traquilamente.
Deus possui infinitas riquezas. Os fiéis que ficarem em casa, sem necessidade, não devem ser tratados como os que defendem a fé com a vida e os bens. Deus elevou estes acima daqueles. Todos possuirão o sumo bem, mas possuí-lo-ão em mais alto grau os que morrerem combatendo."
Tais foram os princípios que deviam dirigir as tremendas lutas do Islamismo. A morte para eles era uma recompensa, uma conquista, um ideal.
Compreende-se que, com tais ideais e convicções, os Califas, sucessores de Maomé, puderam organizar exércitos imensos, valorosos, prontos a vencer ou a morrer.
É o segredo das surpreendentes conquistas do Islamismo.
Maomé e seus primeiros sucessores parecem grandes àqueles que se curvam reverentes perante um êxito veloz, e se deixam deslumbrar pelas vitórias rápidas, pelas agitações violentas e pelo extermínio, sinal único com que o profeta afirmou a sua missão divina.
Houve, efetivamente, algo de prodigioso na rapidez com que os seus companheiros se espalharam por toda a parte, derrubando tudo na passagem como o Simum dos seus desertos.
Os grandes ímpetos, as violentas arrancadas são sempre de curta duração, são insustentáveis.
Há historiadores que atribuem o sucesso do Islam à sua indulgência para com os apetites sensuais. Parece que tal ideia é falsa, pois os homens inclinam-se de preferência para o que se lhes oferece sob um aspecto mais rigoroso.
A verdadeira causa deste entusiasmo é o fanatismo religioso, e a ambição do domínio. De fato, Maomé anunciava a reforma das outras religiões, para tudo submeter à nova religião.
Os países vizinhos, árabes e beberes, achavam-se fraccionados em tribos hostis, enquanto o Islamismo se apresentava como sociedade unida na fé e na administração, com um poder único, absoluto, e por isso eficacíssimo para a manutenção entre as partes.
No império, o diadema de Artaxerxes cingiu quatro frontes no espaço de quatro anos, e ficou, no fim, entregue a Yezdegar, criança de 15 anos, quando o, exército muçulmano caiu sobre eles.
A Grécia estava em luta com as mesmas dificuldades, e as vitórias alcançadas, ora por Chosroes, ora por Heráclius, debilitando-os, punham-nos fracos perante um inimigo cujas forças estavam intatas.
Os árabes, que, animados pela sêde de despojos e de sangue, ávidos pela conquista de mulheres e de um paraíso que só a vitória prometia, caíam sobre aqueles povos, estimulados por generais que lhes bradavam: "Deus vive e vos contempla!... a vitória é certa, combatei... vencendo, sereis os senhores de tudo... morrendo, ganhareis o paraíso... recuando, caireis no inferno!"
Ao início, enquanto o profeta se sentia fraco, só pregava tolerância e liberdade de consciência. Os capítulos que publicou, quando esteve refugiado em Medina, são da máxima mansidão, mas, à proporção que as forças lhe foram aumentando, a sua linguagem foi-se modificando, e o Alcorão respira ódio profundo a todas as outras crenças, votando os infiéis ao extermínio.
Era o único meio de ser ouvido por um povo guerreiro e fanático. Quem adorasse diversos deuses, ou outro deus que não fosse o de Maomé, ficava sendo para os árabes um inimigo que era forçoso riscar da superfície da terra.
Como o desespêro provocava, às vezes, resistência indomável, os Califas mostravam-se tolerantes para com os países situados fora da península.
Os Índios podiam conservar os seus pagodes e os cristãos e judeus podiam optar entre o Islam e o pagamento de um tributo.
Os vencidos que abjuravam a sua religião e se tornavam muçulmanos eram cumulados de favores, enquanto os demais eram tratados como escravos.
Sob este impulso, os exércitos muçulmanos foram penetrando todos os países vizinhos. Apoderaram-se da Síria, e depois de terem vencido os gregos, apoderaram-se da Palestina, da Fenícia e da Ásia ocidental.
Dividindo os seus exércitos, um marchou contra os Persas, enquanto outro invadiu o Egito e tomou Alexandria, queimando-lhe a esplêndida biblioteca e conquistando toda a costa africana.
No século VIII, transpôs o estreito de Gibraltar, ocupou a Espanha, derrubou os Visigodos, e penetrando os Pirineus, foi ameaçar as Gálias, a atual França, onde devia encontrar o golpe mortal de suas conquistas.
Estabelecidos na Espanha, fizeram desaparecer a dinastia dos Visigodos e, em poucos anos, a península conquistada pôde ser transformada em Califado de Córdova.
Os muçulmanos, sob o nome de Mouros, ou Sarracenos, dominaram a Espanha. Um punhado de cristãos visigodos, porém, refugiado nas montanhas das Astúrias, sob as ordens do heroico Pelágio, formou no seio da invasão um pequeno reino, que foi o berço da Espanha cristã do século XV.
Vitorioso na Espanha, o poder muçulmano ultrapassou os Pirineus e pretendeu penetrar a Gália. Foi aí que sua força encontrou a primeira derrota.
O Crescente imperava, portanto, em todos os países que se estendiam das fronteiras da China ao Oceano Atlântico, dos desertos da África à Europa, além dos Pirineus.
A potência muçulmana estava fundada, mas sobre que?
Primeiramente sobre a força. Maomé não tinha vários meios de conversão e de conquista. Apenas um: a espada. Não utiliza a palavra, mas o cemitério. Encarregava suas legiões de gravar com a espada o Alcorão, no coração da humanidade. Os portadores de sua doutrina eram seus esquadrões. Seu programa se resumia em duas palavras: Crê ou morre!
A espada precisava de um apoio. Maomé lhe dá um duplo: a ignorância e a sensualidade.
Diante deste colosso, levantado por Maomé, o mundo silenciou, porém, foi um silêncio de escravo, de vencido, que o desonrava.
A ignorância que presidiu ao islamismo, até hoje pesa sobre a terra muçulmana, que nunca progrediu nem em cultura, nem na ciência nem na invenção.
Enquanto o profeta decretava as trevas para as inteligências, proibindo estudar outra ciência a não ser o Alcorão, destruía a moralidade, permitindo aos seus crentes uma vida sem freio e esperanças eternas mais tristes que a imoralidade da terra.
O Alcorão, de fato, autoriza a poligamia e o divórcio, e abre a porta a todas as paixões ignóbeis.
O paraíso de Maomé não passa de um lugar de gozos materiais e grosseiros.
É aí, neste ponto, que os espera a eterna civilizadora, a Igreja de Jesus Cristo, para detê-los, fazê-los recuar, arrancar-lhes, país por país, a sua imensa conquista, procurando levá-los à luz do Evangelho, como à verdadeira civilização.

CAPÍTULO XVII

CIÊNCIAS E ARTES ÁRABES

Tem-se exaltado, com muito exagero, o movimento científico e artístico dos árabes.
Antes de Maomé, nada existia entre eles: era a ignorância completa. Depois do estabelecimento do Islamismo, a ciência foi penetrando por meio dos ensinamentos do Alcorão e pelos comentários que ia suscitando, como também, e mais ainda, pelo contato imediato com os povos civilizados que conquistava.
No primeiro século que ficou sob o domínio do Islamismo, nenhum movimento científico sério aparece.
Um século depois é que vão aparecendo alguns homens de inteligência mais aguda e de espírito mais acentuado.
Como sói acontecer em todas as reformas, um movimento espontâneo de contradição ao Alcorão se foi levantando e desta oposição vieram numerosas críticas, comparações, estudos, sobre os atributos de Deus e a liberdade humana.
Este primeiro movimento de reflexão foi logo estimulado pelo contato com a filosofia antiga.
Em 750, os Abassides chamaram sábios nestorianos para a côrte de Bagdad e os encarregaram de traduzir em árabe um grande número de obras científicas pertencentes à literatura grega, hebraica, siríaca, persa e indiana.
São estas obras que vão servir de base ao desenvolvimento intelectual da nação.
Al-Kendi (870) começa o movimento, inspirando-se em Aristóteles para escrever uma "Física" e um ''tratado de inteligência".
Al-Farabi (950), igualmente aristotélico, mas unindo ao ensino do mestre as ideias de Platão, formou o sincretismo platônico.
lbn-Sina (Avicena, 1036), completa e supera os seus antecessores. Dotado de uma inteligência precoce, percorreu quase todo o ciclo das ciências conhecidas.
Conta-se que havia relido quarenta vezes a Metafísica de Aristóteles e a sabia de cor. Com 20 anos de idade começou a escrever e produziu um número prodigioso de obras. É filósofo e metafísico: foi o primeiro, no oriente, que proclamou a distinção entre à essência e a existência, em todos os seres fora de Deus.
Al-Gasali (1058) é mais um destruidor, que um construtor de ciência. É o grande defensor do Alcorão, em nome da ortodoxia muçulmana. Defende o que conhece, sem levar em conta o que desconhece e que podia ser melhor. É o Kant da filosofia árabe, procurando rebaixar a ciência e a razão especulativa, para elevar as doutrinas e a moral do Alcorão. Seus escritos constituem a suma do maometismo, como a Suma Tomista é a expressão da doutrina católica.
Depois de Al-Gasali vem a decadência das ciências no oriente, enquanto toma impulso na Espanha. Aí surgem homens de certo valor, como Avempace (1138), Tofail (1185), que combateu seu correligionário Al-Ga­ sali, procurando reabilitar a especulação filosófica.
O médico Averróis (1198), de Córdova, é o último e o principal representante da ciência arábico-hispânica.
É um comentador exímio de Aristóteles. A sua doutrina é uma fusão dos peripatéticos árabes do oriente e os da Espanha.
Como escritores, pela precocidade de seus talentos e a multiplicidade de suas obras, estes sábios árabes merecem todo louvor, convindo, porém, em que nada produziram de pessoal. São comentadores, copistas, fusionistas das ideias dos outros, sem nada ajuntar nem aperfeiçoar. Os seus livros são uma fusão do panteísmo emanatista oriental, do sincronismo neo-platônico, de misticismo e espiritismo, de negação da personalidade na vida futura, etc.
Quando a filosofia árabe penetrou no ocidente latino, causou alí profunda impressão. É pelos árabes que os escolásticos conheceram a maior parte das obras de Aristóteles.
Alguns se deixaram seduzir pelo Averroismo, que consideravam a culminância do Aristotelismo. Outros souberam fazer uma escolha feliz entre estas novas doutrinas, separando a verdade do erro, o real do fictício.
Assim fez S. Tomás, tirando muitas das suas citações da Lógica e da Filosofia de Algazel, que louva Avi­cena, mas combate Averróis.
É de Averróis o princípio das duas verdades, condenado pela Igreja, segundo o qual uma proposição pode ser verdadeira em filosofia, falsa em teologia - o que é um absurdo, sendo a verdade una e indivisível, em todos os ramos do conhecimento humano. (1).
(1) Per rationem concludo unum, firmiter tamen tenco opposi­ tum per fidem.
Hoje as grandes teorias árabes estão abandonadas.
Ninguém mais admite as esferas celestes animadas ou movidas por inteligências superiores, nem o intelecto agente separado do mundo, que é a negação da imortalidade. De fato, admitindo-se que o intelecto material e individual é mortal, só a humanidade é imortal e não o indivíduo, e a imortalidade é uma fábula que a razão não pode admitir, segundo concluem os árabes.
O erro consiste em admitir a impersonalidade do intelecto, em separá-lo dos indivíduos, o que é impossível, sendo a inteligência inerente a cada indivíduo em particular, e não uma única para todos os homens.
Quanto aos demais ramos das ciências humanas, nenhum impulso, nenhuma novidade e nenhum aperfeiçoamento receberam eles dos árabes.
Os Mouros da Espanha tiveram os representantes nas ciências exatas, na Astronomia, na Álgebra e até em Medicina, depois dos estudos de Avicena e Averróis, porém, em esferas muito limitadas e durante pouco tempo.
A arquitetura, embora muito exaltada por alguns escritores, pouco lhes deve também, pois o que se chama estilo arabesco (entrelaçamento de folhagens e de frutos) não passa de uma alteração do estilo bizantino.
Convém notar que a cultura destas ciências limitou-se aos Mouros na Espanha, o que prova que este movimento científico tinha por fonte o contato imediato com os povos latinos e sua influência sobre a nova geração muçulmana. Quanto aos demais povos sob o domínio do Crescente nada produziram no terreno científico, social ou arquitetural.

CAPÍTULO XVIII

A PRIMEIRA DERROTA

O poder muçulmano havia chegado ao apogeu, não somente na Ásia, na África, mas até na Espanha, ande dominava o Crescente, e donde ameaçava a Europa inteira.
Nunca, desde Átila, uma invasão mais feroz e mais poderosa ameaçara o mundo civilizado.
Com exércitos imensos, aguerridos, destemidos, decididos a vencer ou a morrer, os muçulmanos penetraram no sul da França atual, pelos Pirineus, conquistaram a Septimônia, Narbonne, pequenos reinos do Sul, e seu chefe Abdel-Rahmon ameaçava o reino central da Aquitânia.
O rei Eudes procurou detê-los, mas viu as suas tropas aniquiladas diante de Bordéus, sendo o seu estado pilhado, devastado e os habitantes trucidados em massa.
Eudes recorreu, então, ao Rei dos Francos, reconheceu a dependência do seu reino e obteve o seu auxílio para combater o inimigo comum da cristandade.
A situação era gravíssima.
O universo inteiro ia ser dominado por Maomé, todas as nações iam ser escravizadas pela dominação brutal, conquistadora e anti-cristã. O mundo inteiro ia formar o império do Islamismo.
Carlos, rei dos Francos, levantou os seus exércitos de heróis, homens fortes, tão decididos a vencer ou a morrer quanto os muçulmanos.
Carlos reuniu suas tropas nas planícies de Poitiers, onde se encontrou com Abdel-Rahmon, em Outubro de 732.
Os destinos da humanidade iam decidir-se nesta luta.
O exército dos francos era a única barreira capaz de deter a avalanche muçulmana: aí iria decidir-se se o mundo seria cristão ou muçulmano.
Com uma habilidade estratégica que pode excitar a inveja dos guerreiros de hoje, os reis Carlos e Eudes combinaram uma batalha de surpresa, uma armadilha, em que queriam esmagar o poderoso inimigo.
Carlos dividiu os seus exércitos em duas partes. Tomou o comando supremo das tropas fortes e já aguerridas, e confiou ao rei Eudes outro exército que deveria atacar os muçulmanos pela retaguarda, na hora em que estes abrissem fogo contra os francos que tinham em frente.
A armadilha surtiu pleno efeito. Era uma tática nova para os árabes, que os prendeu de improviso.
Durante 7 dias os dois exércitos observaram-se sem entrar em luta, demora preparada por Carlos para deixar ao rei Eudes o tempo de envolver as tropas muçulmanas.
Enfim, os Mouros abriram suas alas e espalharam­ se na planície, e ao sinal de Abdel-Rahmon, a cavalaria ligeira árabe, semelhante a uma nuvem tempestuosa, lançou-se sobre as tropas francas.
Estes, imóveis, em massas cerradas, cobertos pelas suas armaduras de ferro, sobre seus grandes cavalos do norte, opuseram uma verdadeira muralha de ferro às repetidas cargas dos árabes, sem que chegassem abrir uma brecha em suas fileiras.
De repente, um brado de guerra feroz ecoou atrás do exército muçulmano: era o grito do exército de Eudes que havia cercado o inimigo e incendiara o seu campo.
O exército de Abdel-Rahmon estava cercado e tinha que fazer face a duas tropas formidáveis.
A desordem, efeito da surpresa, abriu as fileiras dos Árabes. Então, Carlos deu o sinal do ataque definitivo: o muro de ferro move-se, avança, e lança-se sobre as forças árabes. O machado de guerra e a larga espada dos francos ceifam linhas após linhas dos esquadrões, abatendo tudo com um sangue frio e uma tenacidade ferozes.
Abdel-Ramon procurou salvar soldados, mas em vão: sucumbe com a elite das suas tropas, trespassado de golpes, esmagado sob os pés dos cavalos. Os árabes recuam, fogem, procurando um refúgio em seu campo, destruído pelos soldados de Eudes.
Chegou a noite. Carlos fez parar a perseguição ao inimigo, e no dia seguinte, ao amanhecer, os francos não enxergaram mais que uma planície ensanguentada, semeada de cadáveres.
As trevas haviam protegido a fuga dos muçulmanos, mas deixaram no campo de batalha mais de 375. 000 mortos.
Esta vitória heroica salvou a cristandade, obrigou os árabes a abandonarem a França, para nunca mais penetrar nesta terra onde acabavam de sofrer a primeira derrota, e onde perderam o escol de  suas tropas.
A batalha de Poitiers ficou para sempre memorável, deixando para Carlos o nome de Carlos Martelo, porque diziam que havia martelado os Sarracenos, com o seu machado de guerra. Este nome lhe ficou e a posteridade o conservou como um título de glória, chamando-o Carlos Martelo.
O valoroso rei havia bem merecido o reconhecimento da Igreja e do Mundo. O Papa Gregório III dirigiu-lhe uma carta de felicitações.
Eis o poder do Islam vencido na Gália, repelido além dos Pirineus, mas conservado na Espanha, na África e na Ásia.
É aí que ele vai reorganizando as suas forças, é daí que vai continuando as ameaças à Europa. Não podendo penetrar pela Gália, onde o machado de Carlos Martelo e de seus Francos lhe dá arrepios, procura invadir a Europa, pela Itália, pela Grécia e pela Turquia.
É um novo perigo. Deus, porém, que protege os seus filhos, saberá na hora propícia suscitar novas forças para repeli-lo e não permitir a escravidão da Europa Cristã.

CAPÍTULO XIX

AS PRIMEIRAS CRUZADAS

É uma das páginas mais resplandecentes da história da Igreja católica, que temos a analisar aqui. É o heroísmo da fé, do valor, da coragem, do entusiasmo santo que temos a percorrer, e que é antes assunto de um poema épico, que de uma narração histórica.
A história dos cruzados é tão simples em sua origem como é sublime em sua execução, e fecunda em suas consequências mediatas.
O famoso José de Maistré, falando destas expedições longínquas, disse muito bem: "Nenhuma teve êxito feliz, mas nenhuma delas malogrou".
No início do século XI, os muçulmanos eram os dominadores de Jerusalém, onde molestavam, perseguiam e, pela mínima razão, matavam os cristãos.
Nesta época eram numerosos os peregrinos que iam à Terra Santa, por devoção pessoal, ou em cumprimento de qualquer promessa.
Um Sacerdote francês de Amiens, chamado Pedro, o Eremita, tendo feito a peregrinação à Terra Santa e visto a arrogância e crueldade dos muçulmanos, não pôde conter, a indignação.
Recebe as confidências e as lágrimas do Velho Patriarca de Jerusalém, Dom Simeão, e de volta para o Ocidente, encontra, a cada passo, cristãos, que viajam perseguidos, maltratados e mesmo assassinados pelos infiéis.
Um tal espetáculo o comove e o exalta.
Vai ter com o Papa a quem tudo conta e pede a autorização de pregar na Europa uma Cruzada, para acabar com estes abusos e crueldades.
Urbano II, então reinante, para de coração magnânimo e terno, sente-se comovido e resolve salvar a cristandade do jugo dos muçulmanos.
Era em 1094.
Urbano II, então reinante, papa de coração magnâ-de Carlos Martelo, que haviam tão heroicamente batido os muçulmanos nas planícies de Poitiers e lhes haviam fechado a porta de entrada da Gália.
O Papa convoca um grande concílio, em Clermont.
Lá estão presentes 14 arcebispos, 225 bispos, 90 embajxadores de todos os povos cristãos, guerreiros de todos os países europeus.
Ao lado do Papa, está o valente pregador da Cruzada, Pedro, o Eremita, revestido de seu burel de penitente, pés descalços, fronte descoberta.
Urbano II dirige-se à multidão: "Guerreiros, diz ele, vós que tantas vezes procurais pretextos de guerra com os vossos vizinhos inocentes, eis aqui uma guerra legítima. Virai contra os infiéis as armas que desembainhais, sem razão, uns contra os outros.
Não se trata de vingar as injúrias feitas aos homens, mas a Deus. Não se trata de conquistar uma cidade ou uma fortaleza, mas a Terra Santa.
Soldados de Deus vivo, levantai-vos".
A estas palavras, um imenso brado levanta-se desta multidão palpitante: Deus o quer! Deus o quer!
"Seja este brado o vosso lema de guerra, continua o Pontífice, e seja a Cruz o vosso estandarte"!
Adernar de Monteuil, Bispo de Puy, é o primeiro a revestir-se das insígnias da Cruzada, isto é: uma cruz vermelha de lã sobre o peito, ou sobre o frontal do capacete militar.
Estes soldados de Cristo são os Cruzados e em poucos dias o seu número é incalculável.
A Europa Cristã em peso abala-se e mobiliza-se à voz do Pontífice romano.
Entre estes ·guerreiros figuram os mais belos homens da França, da Inglaterra, da Itália: Hugue, o grande Godofredo de Bulhões, Roberto sem medo, duque da Normandia, Raimundo, conde de Tolosa, Estêvão, conde de Bloro, Bohemon, príncipe de Tarento e seu sobrinho, o Cavaleiro Tancredo.
O escol da Europa está ali, à frente de 600.000 homens, reunidos sob os estandartes da Cruzada.
O resultado desta primeira expedição, por mal dirigida, não foi o que se havia de esperar. Contudo, arrancaram das mãos dos muçulmanos as cidades de Nicéia, de Antioquia e de Jerusalém. Quando a notícia chegou a Roma, havia quatro dias que o santo Pontífice havia deixado a terra.
Esta morte cobriu de luto os louros do triunfo. Conquistada Jerusalém, Godofredo de Bulhões, duque da Lorena, foi proclamado rei, mas não quis aceitar este título, senão o de defensor e barão do Santo Sepulcro. Deus me preserve, disse ele, de cingir uma corôa de ouro, no lugar onde meu Mestre trouxe uma coroa de espinhos.
Dois patriarcas latinos foram estabelecidos, em Jerusalém e em Antioquia, formando-se ainda o novo reino de Constantinopla.
Assim terminou a primeira Cruzada. Sete outras deviam segui-la, no espaço de 200 anos, de 1095 a 1270.

* * *

A segunda Cruzada, em 1141, foi pregada por São Bernardo. Havia uns três anos que um primeiro desastre havia vitimado o reino latino de Jerusalém.
A cidade importante de Edessa havia sido retomada pelos muçulmanos e a população cristã fora exterminada por completo no meio dos mais cruéis tormentos.
Um grito de desamparo e de auxílio ecoou pela Europa, e São Bernardo, com toda a eloquência de sua virtude e de seu talento, entrou a pregar nova cruzada.
O rei de França, Luiz VII, tomou a frente da expedição, auxiliado por Conrado III, imperador da Alemanha. Houve esforços e boa vontade, porém a perfídia dos gregos, junto com certos erros dos Cruzados, fez malograr a nova expedição.
Os chefes regressaram sem nada ter podido fazer em benefício dos perseguidos e deixando a Palestina entregue aos maiores perigos.
São Bernardo sofreu imensamente com este desastre. O orgulho nacional pretendia fazer recair sobre ele os revezes sofridos, ao ponto de, para ser restabelecida e patenteada a verdade, o santo ter sido obrigado a escrever uma apologia, apontando os verdadeiros culpados deste desastre.

* * *  

Meio século depois desta frustrada expedição, em 1171, Saladino, encorajado pela dissensão dos Europeus, apoderou-se do Egito, da Síria, e fundou um vasto império muçulmano, que circundava por completo o reino de Jerusalém, desde o Eufrates até ao Nilo.
Num encontro com os Cristãos, em Tiberíades, mais de 20.000 cruzados ficaram no campo de batalha. O último rei de Jerusalém, Guy de Lusignac, foi aprisionado, sua capital retomada e o seu reino destruído.
Guilherme, Arcebispo de Tiro, pregou uma terceira Cruzada e a sua palavra eloquente abalou a Europa.
Para custear as despesas, foi levantado nas grandes nações, um novo imposto, chamado dízimos saladinos.
O rei de França, Felipe Augusto, o imperador da Alemanha Frederico Barbarroxa, e o rei de Inglaterra, Ricardo Coração de Leão, tomaram a direção da nova Cruzada, composta de 500.000 guerreiros.
Tudo começou bem e os esforços das corajosas tropas foram coroados de pleno sucesso. Conquistaram a ilha de Chipre, tomaram de assalto São João do Acre.
Infelizmente os chefes não souberam conservar a união entre si, o que paralisou os muitos sucessos, que podiam ter alcançado.

* * *

Uma quarta Cruzada, estimulada pelo Papa Inocêncio III, foi suscitada em 1200, sendo o pregador o Padre Fulques, de Neuilly.
Um bem grande e equipado exército estava de prontidão; em poucos meses, porém, os reis que haviam prometido tomar a frente, faltaram à sua palavra. Veneza, que havia prometido a sua frota para o transporte do exército, cuidou antes do seu proveito mercantil, de modo que as tropas foram obrigadas a limitar a sua conquista a Constantinopla.
Sitiaram a cidade que caiu em seu poder, sendo proclamado Balduino IX, Conde de Flandres, o primeiro Imperador do novo Império latino (1204).
Foi nesta ocasião que foi fundado o patriarcado de Constantinopla.
Esta quarta Cruzada, relativamente à luta contra os muçulmanos, teve pouco resultado, porém, aproveitou muito em relação ao cisma grego, afastando-o temporariamente, e destruindo-lhe as forças.
Era um novo fracasso da conquista da Terra Santa.
E este fracasso ecoou tão dolorosamente na França e na Alemanha que suscitou no meio das crianças, uma verdadeira indignação, e uma indignação de entusiasmo.
Os exércitos não podendo reconquistar o berço e o sepulcro de Jesus Cristo, pelas forças das armas, as crianças pretendiam vencer a resistência pela força da sua inocência e das suas súplicas.
Viu-se então, o que o mundo nunca havia contem­plado. Em 1212 um menino francês, Estêvão, na Vandéia, e um jovem Alemão, Nicolau, de Colonha, sem combinação prévia, levantaram, cada um em seu país, o estandarte da terra santa e arrastaram em seu seguimento mais de 50.000 crianças· da França e da Alemanha, decididos a libertar a Terra Santa .
Encaminharam-se para a Palestina, com um entusiasmo sem igual, mas infelizmente, com uma imprevidência não menor, própria da sua idade.
As crianças francesas, em número de umas 35.000, embarcaram em Marselha, mas, batidas por uma tempestade, e vários ataques dos muçulmanos, foram tragadas pelas ondas do mar mediterrâneo, ou caíram escravas dos corsários.
As da Alemanha em número de umas 15.000, tendo atravessado os Alpes, pereceram em caminho, pela fadiga e inanição. As que sobreviveram, chegaram até Brindise, na Itália, onde foram recolhidas e devolvidas para a sua terra natal.
Era o sangue entusiasta dos inocentes que se misturava à discórdia e à desunião dos grandes Exércitos, para dar ao mundo uma lição de fé, de valor e de entusiasmo viril.

CAPÍTULO XX

O FIM DAS CRUZADAS

Felizmente, a voz do Papa Inocêncio III e de seu sucessor, Honório III, suscitou novos entusiasmos, como provocados pelas súplicas e martírio das 50.000 crianças, imoladas pelo desejo de libertar o túmulo do Divino Mestre.
Em 1217, uma multidão de peregrinos, vindos do Baixo Reno e da Frígia, com um séquito numeroso dirigiram-se para o Oriente. Era a quinta Cruzada.
Encorajado por este novo esforço, João de Brienne, rei de Jerusalém desde 1210, conduziu os romeiros para o Egito e apoderou-se da cidade de Damieta, que era considerada a chave da região.
A esta notícia, a alegria dos cristãos não tinha igual senão a estupefacção e o desespêro dos muçulmanos.
Novas tropas acorreram da Europa. O sultão do Egito, Alkamil, em troca de Damieta, ofereceu a restituição do reino de Jerusalém, com as suas antigas fronteiras. A oferta, porém, foi recusada.
Infelizmente este triunfo foi de curta duração.
Atacados pelos exércitos infiéis, os Cruzados foram obrigados, onze anos depois, a abandonar Damieta e todo o Egito.

* * *

A sexta Cruzada foi organizada pelo Papa Gregório IX, que acabava de ser eleito Sumo Pontífice, na idade de 80 anos.
Firme e resoluto a retomar os lugares santos, o Papa lembrou ao Imperador da Alemanha, Frederico II, seu juramento de presidir à Cruzada. Após muita relutância, o hipócrita monarca tomou a frente do exército alemão, e em 1227 tomou o caminho da Palestina com 50 navios, resolvido, não a combater, mas a usar de diplomacia para reaver Jerusalém.
O momento era favorável.
O Sultão do Egito estava em guerra com o príncipe de Damasco; pediu então o apoio de Frederico, prometendo restituir Jerusalém e a Palestina.
Foi assinado o tratado de Jaffa, incluindo uma trégua de 10 anos, durante a qual, Frederico se comprometeu a não deixar os Europeus atacarem o Egito.
Jerusalém pertenceu momentaneamente aos Cristãos. O príncipe de Damasco havia destruído as fortalezas e as fortificações. Foi interdito aos Cruzados reconstruir os muros.
O Patriarca, o clero e as ordens militares puderam voltar para a cidade, mas sem obter a restituição dos bens sequestrados.
Os muçulmanos conservaram o livre exercício de seu culto e a jurisdição sobre as nacionais de Jerusalém. O sultão ficou apenas de posse das vilas em redor da cidade.
Em 1229, Frederico fez a sua entrada solene na cidade santa, proclamou-se a si próprio rei de Jerusalém, cingindo-se ele mesmo, com as próprias mãos, a coroa da realeza.
A sétima Cruzada apareceu sob uma perspectiva pouco animadora. A situação era aflitiva e exigia medidas urgentes.
O Oriente estava passando por uma revolução imensa. Os Tártaros, saídos do fundo da Ásia, arremessavam-se, a um tempo, sobre a Europa e o império muçulmano, desde Bagdad até o Egito.
Ao mesmo tempo os Turcos se insurgiam na Síria, desbaratavam o último exército cristão e se apoderavam de Jerusalém, entregando-se ao sultão do Egito .
O Papa lnocêncio IV, em vão apelava para o auxílio dos povos cristãos. Ninguém estava em condições de empreender novas expedições.
O rei de França, São Luiz, entretanto, resolveu atender ao pedido do Santo Padre, e às pressas, reuniu seu exército de valentes, porém, insuficiente em numero. Ele mesmo, com seu irmão, Carlos de Anjou e Eduardo de Inglaterra, comandavam a Cruzada.
São Luiz tencionava atacar o poder muçulmano no próprio Egito, começando pela Tunísia que lhe serviria de ponto de entrada.
Em 15 de maio de 1249, São Luiz lançou a âncora em frente de Damieta, e poucos dias depois apoderou-se dá Cidade, convertendo em Igreja Católica, a grande mesquita do lugar.
Tendo as tropas do Sultão remontado o Nilo, os Cruzados seguiram-nas até Monsourah. Era um primeiro sucesso, porém, logo seguido de revezes. O sultão chegou a interceptar as comunicações de São Luiz com Damieta, centro de abastecimento.
Breve, o rei de França foi preso e a maior parte de suas tropas feitas prisioneiras (1250). Foram abertas negociações de paz. São Luiz foi obrigado a evacuar Damieta e a pagar um milhão de pesos de ouro, pela liberdade de todos os prisioneiros cristãos do Egito.
Foi o rei com os restos de seus exércitos para S. João do Acre, com a secreta esperança de não abandonar a Síria sem ter providenciado a segurança dos cristãos. Ficou ainda quatro anos na Palestina, negociando .com os emissários egípcios para obter a libertação dos cristãos e fazendo piedosa peregrinação a Nazaré, Monte Tabor e Caná, e fortalecendo as últimas praças de guerra do reino: S. João, Cesaréia, Jaffa e Sidon.
Em 1254 recebeu cartas comunicando-lhe a morte da sua santa Mãe, Branca de Castela, que durante a ausência do rei, havia governado a França. Estava encerrada a sétima Cruzada.

* * *

Vai começar a oitava e última Cruzada.
Os muçulmanos não podiam deixar de explorar a fraqueza dos Europeus. As poucas conquistas dos Cruzados corriam um perigo iminente.
O Papado lançou um novo alarme, em 1266. O Papa Clemente dirigiu-se de novo a São Luiz. Este respondeu incontinenti aos desejos do Santo Padre, e embora encontrasse pouco entusiasmo no meio do povo, resolveu a organização da nova Cruzada, acompanhado por seus três filhos e de Eduardo, rei da Inglaterra.
Tunis foi o primeiro objetivo da Cruzada.
O sultão da Tunísia havia jurado aos muçulmanos franceses de converter-se ao cristianismo, junto com um grande número de seus súbditos. Tal compromisso, porém, foi ilusório e uma armadilha.
O príncipe muçulmano mandou envenenar as fontes. A peste acometeu o exército, e em poucos dias, foi uma mortandade enorme entre os franceses. O rei viu morrer seu filho João Tristão, e caiu ele mesmo, vítima do terrível flagelo.
O piedoso monarca mandou que o deitassem sobre a cinza, ofereceu a Deus seus sofrimentos e a sua vida e expirou como rei e como santo, no dia 25 de agosto de 1270.
Carlos de Anjou, outro filho de São Luiz, assinou um tratado honroso e voltou aos seus estados.
Com São Luiz, encerrava-se a era dos Cruzados, iniciada em 1095 e terminada em 1270.
Em vão o Papa Gregório X, no Concílio de Lião, (1274) procurava despertar o entusiasmo das nações europeias. A sua voz encontrou diminuto eco. Os cristãos do Oriente, entregues a si mesmos; perderam todas as posições conquistadas .
Trípoli lhes foi arrebatada em 1289, depois a cidade do Acre ou Ptolomai, último amparo da cristandade, e a Palestina recaiu em poder dos muçulmanos, que continuam até hoje, a dominar a Terra Santa e os grandes santuários do Cristianismo.
Vencedores na Ásia, os muçulmanos foram perdendo terreno nas possessões da Europa.
Tirou-se-lhes a Sicília, já no século XI.
Os Normandos na Itália Meridional, onde se haviam estabelecido desde 1017, conquistaram Apúlia e Calábria, acabando assim com o domínio grego e fundando um reino independente, católico, sob a soberania da Igreja Romana. Dirigiram-se depois à Sicília com o Duque Roberto Guiscardo.
Em 30 anos de combate, logrou o irmão de Roberto arrancar a ilha dos muçulmanos e governar nela como vassalo de seu irmão.
Na Espanha, embora não se tivesse podido ainda acabar com o poder e dominação dos Mouros, este ficou contido em limites muito estreitos.
Tendo-se dividido o Califado de Córdova, depois da queda dos Omíadas (1031) numa série de pequenos reinos (emirados) os príncipes cristãos puderam levar a cabo novas conquistas.
A batalha decisiva das "Navas de Tolosa" (1212) ganha pelos cristãos, fez cair em suas mãos a maior parte da Andalúzia. Só no extremo Sul, onde o emir Maomé Aben Alamar fundara o reino de Granada (1238) se manteve o poder dos Árabes até 1492, em que os Mou­ros foram expulsos, pelos reis católicos, do resto de seus domínios reconquistados.

CAPÍTULO XXI

DECADÊNCIA DO ISLAMISMO

Em vários países, o Islamismo estava se enfraquecendo, embora conservasse ainda a preponderância na Ásia Menor e na África.
Uma primeira. vez, a Igreja deteve o seu poder em Poitiers, pelo braço de Carlos Martelo.
Uma segunda vez, por um esforço de dois séculos, a Igreja organizou oito Cruzadas sucessivas, que não acabaram, mas abalaram o seu poder nos alicerces.
O Crescente continuava a dominar Jerusalém, como continuava a semear o terror no Ocidente e a oprimir os Cristãos do Oriente. Durante 10 séculos o Islamismo esteve diante dos portos da Cristandade, para castigar a revolta dos povos batizados, despertá-los do sono, estimular à virtude e provocar o heroísmo.
Deus dirige o mundo.
A Europa crente e fervorosa, vivia em paz e prosperidade. A Europa cética e comodista só encontrava guerras e extermínios. É o dedo de Deus e a mão da sua Providência.
Após o esforço titânico das Cruzadas, vemos o poder muçulmano parado em seus projetos de conquista, pela invasão dos Mongóis e de Tamerlin.
É certo que o grande sonho de Maomé, em conquistar o mundo, fervia ainda latente no peito dos seus adeptos.
As lutas continuam incessantes, inflamadas e sanguinolentas entre os Cristãos e os Turcos otomanos.
Maomé II jurou arrancar Constantinopla das mãos dos Gregos. Estes últimos eram merecedores dos castigos divinos, pelo cisma que haviam executado, separando-se de Roma, em 1054.
Chegou a hora da vingança divina.
Em 6 de abril de 1453, Maomé II chega com um exército de 300.000 homens. Cerca Constantinopla com uma formidável artilharia e lança os seus janísaros ao assalto dos baluartes.
Em vão o Papa Nicolau V implora o auxílio da Cristandade. Só os Venezianos e Genoveses prestaram ouvidos à voz do Soberano Pontífice.
No interior da cidade, os habitantes estão divididos e perseverantes no cisma. Possuem um imperador que é um herói, Constantino Paleólogo, zeloso partidário da União das duas Igrejas do Ocidente e do Oriente.
Paleólogo com um punhado de bravos, apenas 10.000 homens, passa as noites em oração, e o dia em combate.
Sob uma verdadeira chuva de fogo grego (1) que os Turcos empregavam como auxílio, ele ia e vinha, gritando a seus soldados.
Se Constantinopla perecer hoje, eu me sepulto sob as suas ruínas!
O herói, fiel a seu juramento, vendo a cidade tomada pelos Turcos, lança-se no meio das suas fileiras, onde recebe o golpe de morte.
(I) Era um fogo químico que ardia em cima da água:. Invenção do engenheiro grego Galinico.
A cidade do grande Constantino desaparece, tendo existido durante 1.123 anos. 40.000 cristãos ficaram sepultados no meio das ruínas. 50.000 foram reduzidos à escravidão. Outros puderam escapar aos fanáticos vencedores e fugir para a Itália, nos barcos venezianos, levando consigo os preciosos despojos da Pátria: manuscritos gregos, sagrados e profanos, ricos tesouros do passado, subtraídos às chamas e à ignorância dos muçulmanos.
A Grécia penetrava em Roma com seus poetas, filósofos, artistas e sábios. O Oriente transplantava-se para o Ocidente. Antes os Turcos que o Papa: haviam gritado os gregos depois do Concílio de Florença. E o seu voto insensato foi atendido. Os turcos tornaram-se os senhores de Constantinopla e a catedral de Santa Sofia foi transformada em Mesquita muçulmana.
Foi o apogeu do poder muçulmano! De então em diante, será a queda, a decadência, rápida e fatal, que penetrará em suas fileiras e organizações.
* * *
Maomé II, orgulhoso da sua vitória, toma o nome fastidioso de: Mestre e soberano das duas partes do mundo. A sua dominação estende-se à Europa, à România, à Macedônia, à Grécia, à Valáquia, à Moldávia e à Sérvia (Balkans).
Arranca as ilhas do arquipélago aos Venezianos e as suas tropas levam as incursões até ao sul da Itália.
Não puderam, contudo, apoderar-se de Belgrado, defendida por Huniade e por um religioso Franciscano, São ]oão Capistrano. Encontraram o mesmo revés diante da ilha de Rodes, onde os Cavaleiros de S. João de Jerusalém lhes infligiram perdas enormes.
Os Cavaleiros conservaram a ilha durante dois sé­ culos. Perderam-na só em 1522, tendo-a defendido tão bem e com tanta bravura, que o Sultão Solimão exclamou, vendo o grão mestre Villars: Que pena expulsar de sua casa um tão bravo cristão!
Carlos V deu-lhes, em 1530, a ilha de Malta, que conservaram até 1798, em lutas contínuas contra os infiéis, em terra e no mar.
Pela tomada de Constantinopla, o império muçulmano era onipotente. Tinha nas mãos a chave do Oriente e podia, à vontade, assolar o Ocidente.
Durante mais de um século, foi ele o terror dos cristãos e europeus; porém, a decadência começava e o império turco marchava a grandes passos, para a sua ruína definitiva, onde já o vemos, bastante tempo, debater-se miseravelmente.
A Turquia de hoje não passa de um cadáver em decomposição, que não vive mais senão pela vontade da Inglaterra e da Rússia.
A decadência começou sobretudo no golfo do Lepanto, em 1571, e sob os muros de Viena, em 1683.
O soberano mais ilustre da Turquia foi sem contradição Solimão II, o magnífico, cujo reino se estendeu entre os anos de 1520 e 1566.
Recomendou-se ao mesmo tempo, pelas guerras da Europa, da Ásia e da África, pelas suas grandes instituições administrativas, sabendo manter em tudo um equilíbrio salutar.
Depois dele os Turcos declinaram com Selim II, cuja frota marinha fora aniquilada em Lepanto.
Nesta época, estava assentado no trono pontifício o santo Padre Pio V. Para repelir Selim II, dirigiu-se a Veneza e à Espanha, e aparelharam, de acordo, uma frota formidável contra os Turcos.
D. João da Áustria, filho de Carlos V, comandou-a.
Encontrou os turcos no golfo de Lepanto, no meio do mar Jônio, entre a Grécia e a Moréia. Era no dia 7 de outubro de 1571.
Os Turcos, comandados por Selim II, perdem 600 peças de canhão, 200 navios e 30.000 homens.
O Papa recebeu do céu a revelação do triunfo, e exclamou de repente. "Vamos dar graças a Deus! A vitória é dos cristãos".
Imediatamente, em todas a basílicas de Roma, entoou-se o "Te Deum" solene e o Papa, em lembrança desta vitória, institui a festa do rosário. Os guerreiros haviam começado a luta, implorando a Maria como Estrela do Mar, e haviam içado a bandeira branca, com a imagem da Virgem, na ponta de seus mastros .
Enfim, o Crescente recuava diante da Cruz. Mais uma derrota como esta de Lepanto, e o poder muçulmano estaria aniquilado.

* * *

Tal derrota não devia demorar.
Maomé IV reinava ainda, e disse certa vez com inso­ lência: "Em breve meu cavalo irá comer milho sobre o altar de S. Pedro em Roma".
Logo seu vizir Cara Mustafa pôs-se em marcha contra a Áustria, em abril de 1683.
O Papa Inocêncio XI prescreve orações públicas, e ele mesmo, dando o exemplo, vela, trabalha, suplica e se mortifica para alcançar de Deus o triunfo das armas cristãs.
Os turcos vitoriosos dos Austríacos, preparam-se para ocupar Viena, que suportou, durante 45 dias, os mais terríveis assaltos. As chamas estavam já devorando os conventos, as igrejas e os edifícios públicos. Os arrabaldes incendiados, formavam uma cintura de fogo, em redor da cidade desesperada.
Tudo estava perdido!.
Não! O grande, o sublime, o piedoso Sobieski, rei da Polônia, aproximou-se com um exército de 20.000 Polacos, valorosos e piedosos como ele, para libertar a Áustria e a sua capital.
Era no dia 12 de setembro de 1683. O núncio apostólico celebrou a Santa Missa, a que o rei Sobieski, assistiu de braços em cruz...
Todos comungaram e depois entoaram um hino à Virgem Santíssima.
Não era um canto, era um longo soluço de comoção, de esperança e de resolução de vencer ·ou morrer.
Disposto a dar sua vida pela libertação da cristandade, Sobieski, ao pé do altar, armou o seu filho, cavaleiro, para que, em caso de morte, lhe sucedesse no comando do exército.
Uma última bênção do Núncio do Papa, uma última recomendação de Sobieski, um último brado à Virgem das Vitórias, e o exército desdobrou as suas linhas, os estandartes agitaram-se, os clarins ressoaram.. E os defensores, como leões, lançaram-se sobre o inimigo.
O sol, ao levantar-se, viu as orações dos cristãos...
E ao desaparecer no horizonte, contemplou a vitória dos heróis.
As planícies, em redor da cidade, estavam cobertas de 40 . 000 cadáveres de Turcos.
Sobieski fez presente ao Papa das bandeiras tomadas ao inimigo, com estas palavras célebres: "Vim, vi, Deus venceu!"
Júlio César, esquecendo-se de Deus, havia dito: Veni, vidi, vici. Vim, vi, venci! Porém, a César pertencia a glória da Roma pagã . A Sobieski, a glória da Roma Cristã.
Estava vencido o Islamismo. Após 10 séculos, ficará ainda exausta, agonizante, a potência muçulmana, sem vida própria, sem progresso, sem ideal, sem futuro.
E a Igreja de Jesus Cristo que ele combateu com tanto furor e tenacidade, continua mais jovem e mais viva, inaugurando sobre as ruínas do Islamismo, novos e imperecíveis destinos.

CAPÍTULO XXII

A FALSIDADE DO ISLAMISMO

Por um instante deixemos de lado, a vida, os ensinamentos e a propagação da religião de Maomé, para entrar no julgamento sereno da sua doutrina, estudando-a, por parte de seu autor, conforme os princípios de uma dedução inteligente e lógica.
Há várias religiões, porém só há uma religião verdadeira, porque havendo um só Deus, só pode haver um modo certo de servir a este Deus .
Como descobrir a religião verdadeira no meio das numerosas seitas que se dizem possuidoras da verdade?
É simples e ao alcance de todos.
1. Deus é o Criador e o Senhor do homem. Consiste a religião nas relações entre Deus e o homem e tais relações nasceram no ato mesmo da criação do homem.
Foi naquele momento sublime que, dando a vida ao homem, Deus se tornou seu pai e o homem se tornou filho de Deus.
Aquele que dá a vida, chama-se pai e aquele que recebe a vida chama-se filho.
Logo, a religião verdadeira deve ter nascido no próprio berço da humanidade, junto ao primeiro homem.
2. A religião verdadeira, sendo obra do pai para com o filho, deve necessariamente adaptar-se a todas as faculdades do homem: deve ser luz para a inteligência, amor para o coração, força para a vontade, conduzindo o homem ao seu supremo destino, que é a felicidade eterna.
3. Sendo Deus a própria verdade, a religião, feita por Ele, deve ser coerente e imutável, excluindo absolutamente toda contradição e toda mudança sucessiva.
Eis três princípios que nos permitem, sem receio de erros, descobrir a religião verdadeira.

* * *

Apliquemos agora estes três princípios ao Islamismo, e veremos logo destacar-se a sua falsidade, por não satisfazer a nenhum destes requisitos, absolutamente exigidos.
O Islamismo não nasceu no berço da humanidade, mas proveio dos ensinamentos de Maomé, que o imaginou, codificou e legou aos homens, não no começo da humanidade, mas sim, no ano 612, em Meca, organizando-o no ano 622 em Medina, onde o pseudo-profeta fixou o centro da sua reforma.
Antes desta época, não existia nem Alcorão, nem lei maometana. Começou neste ponto, e não pode passar além.
O reformador atribui a sua doutrina ao Arcanjo Gabriel. Nada, porém, tem ele com este arcanjo, pois a religião deve ser revelada pelo próprio Deus, e não pelos anjos que, sendo eles também servos de Deus, nenhum poder possuem para estabelecer uma religião divina.
O Islamismo não pode descer além de Maomé, e nenhuma relação, nenhuma ligação possui com a religião fundada por Deus, transmitida por Moisés e os patriarcas, até chegar a Jesus Cristo, que realizou em sua pessoa, todas as profecias, e encerrou pelo Apóstolo S. João, o ciclo das revelações divinas autênticas.
Não chegando até Deus a religião de Maomé, não é uma religião divina. É obra de seu fundador, uma religião humana, em contradição com a religião divina.
Logo, é uma religião falsa.

* * *

A religião verdadeira deve adaptar-se às faculdades do homem, isto é, deve ser luz, amor e força e conduzir o homem ao seu destino eterno.
Como vimos, o islamismo não realiza nenhum destes requisitos.
Não é luz.
O islamismo em nada contribuiu para o desenvolvimento do espírito humano. Pelo contrário, materializa o espírito, fecha-lhe o horizonte de uma vida pura, santa, abnegada, que termina na felicidade divina, e não numa felicidade material como ensina o Alcorão.
O céu do islamismo oferece o vício como suprema recompensa da virtude: até haverá palácios, riquezas, prazeres, mulheres e tudo o que a miséria humana pode sonhar para conhecer a si mesma e satisfazer os seus instintos humanos.
Não é amor.
O amor divino não figura no Alcorão, nele existe o medo, o terror, até a admiração das grandezas e do poder de Deus, nunca o amor. O amor espiritual, santo, sobrenatural é desconhecido na lei do pseudo-profeta. Nele figura somente a volúpia do prazer, da sensualidade, embrutecendo, aniquilando, deste modo, o amor puro, o amor ideal que Deus semeou no coração humano. Para o maometano, amar é gozar. Para o homem espiritual, amar é dar. Para o islamismo o amor está no prazer; para o cristianismo, o amor está em agradar aquele a quem se ama.
Não é fôrça.
É uma violência de guerra, de luta, de conquista pelo fanatismo da dominação, porém não é uma força de vontade pelo bem, pela virtude, pela grandeza espiritual do homem, pelo seu aperfeiçoamento, pela realização de um ideal superior.
Tudo é materializado. O espiritual, a santidade, é um ideal desconhecido para o islam.
Só conhece a força bruta da guerra. Ignora a força construtora da vontade, na virtude.
E depois, não conduz à salvação eterna. Esta salvação é a virtude, a santidade, o heroísmo espiritual, a abnegação própria, o desprezo dos bens passageiros do mundo.
Tudo isto não existe no islamismo. Logo, é uma religião falsa.
O terceiro requisito é a coerência e a imutabilidade, partes essenciais da doutrina divina.
Aqui, mais ainda do que nos pontos precedentes, a religião de Maomé está fora de toda apreciação.
Facilmente, parece que o islamismo podia evitar toda aparência de contradição, pois tomou como bagagem intelectual, apenas três dogmas simples e claros, emprestados à Filosofia: - a Unidade de Deus, a Imortalidade da alma e a Sanção na eternidade, do bem e do mal.
Infelizmente, Maomé fez o seu comentário e as aplicações da sua doutrina, e neles semeou as contradições, a mãos cheias.
Ele se apresenta como continuador de Jesus Cristo e o selo dos profetas. (1) Ora, Jesus declarou que não seria continuado nem completado por ninguém e que a sua Igreja (doutrina) permaneceria até à consumação dos séculos, até ao dia do juízo geral (2).
De outra parte salta aos olhos que a obra de Maomé, pela sua moral, sua doutrina social e religiosa, não é um progresso, mas um imenso recuo na doutrina de Jesus Cristo, como vemos claramente na exposição dos capítulos anteriores deste estudo.
E o próprio Alcorão, o livro sagrado do Islam, quantas incoerências não apresenta!
(1) Cap . III do Alcorão - V . 77 - Cap . IV - V . 161 - Cap . 33-V . 40 {2) Math . 28, 19 - 17, 17 - XXIV, .24 .
O pseudo-profeta o compôs, ou o fez compor do começo até ao fim, tendo que ser coerente consigo mesmo.
Não soube, porém, fazê-lo e ele mesmo o percebia.
Para se tirar do embaraço, atribuía a São Gabriel.
Esta frase tão admirável de incoerências e contradição, como é ofensiva e blasfema a Deus: "Se omitimos um versículo do Alcorão, ou se apagamos a sua lembrança de teu coração, nós te trazemos outro melhor ou semelhante".
Eis Deus que se corrige a si mesmo, que se completa, que se aperfeiçoa.
Como consequência, os teólogos muçulmanos retiraram do Alcorão um certo número de passagens, visivelmente esquecidas. Umas foram abrogadas quanto à letra e ao estudo; não contam mais. São lapsos divinos, distrações de Deus, falta de memória de Deus. Outras passagens foram abrogadas" quanto à letra, porém, foram substituídas, quanto ao sentido, por outras semelhantes.
Outras ainda foram completamente riscadas e canceladas: eram ignorâncias divinas. Outras, enfim, ficaram no livro, mas abrogadas, quanto ao sentido, constituindo (notem bem isso) as contradições oficialmente reconhecidas e conservadas...
Há no Alcorão, 207 versículos que sempre figuram no texto, mas que são abrogados por 93 outros.
O quinto versículo da Surata 9 abroga, ele só, 124 outros. As revelações abrogadas foram substituídas por melhores ou mais cômodas, as quais, à medida das necessidades, permitiram a Maomé violar suas próprias leis sobre o matrimônio, de continuar em nome de Alah (Deus) os seus saques, roubos, assassínios e tráficos vergonhosos. (1).
O próprio profeta se envergonha destas contradições e crimes e confessa, no Alcorão, a enormidade de seu crime.
Bossuet havia formulado este princípio seguro: "O que muda é falso: a verdade não muda".
O Islamismo mudou, se contradiz, se corrige; logo, ele é falso.
Paremos aqui; é o bastante para uma pessoa sincera, leal, à procura da verdade, verificar que o Islamismo é uma religião falsa, não é a religião divina, a única religião verdadeira.
Onde está esta religião? Já o dissemos: É a religião de Jesus Cristo, conservada intacta no ensino da Igreja Católica, Apostólica, Romana.
Só a religião católica se apoia no berço da humanidade, só ela se adapta perfeitamente às necessidades do homem; só ela é coerente em seu ensino e imutável em sua doutrina; só ela tem as promessas da vida eterna e a certeza da existência perpétua.

(1) Alcorão C . 33-V . 28-53-66, 1 -- 2 etc.

 

RESUMO E CONCLUSÃO

Todo livro exige uma conclusão.
Para nós católicos, a conclusão da vida e doutrina de Maomé é simples e curta. O maometismo é uma religião toda humana, obra do homem e não nos pode aproximar de Deus, porque só uma força divina pode elevar-nos até Deus, a qual só pode derivar de uma doutrina divina.
Ora, só Deus pode comunicar tal doutrina, e esta comunicação se chama: revelação. - A verdadeira religião deve ser, pois, uma religião revelada pelo próprio Deus. Nestas condições, entre todas as seitas religiosas, está única e exclusivamente a religião católica. Só ela pode remontar, sem interrupção, de século em século, a Jesus Cristo, que é Deus.
O protestante, percorrendo os séculos, tem que parar" diante de Lutero, seu fundador, em 1517, não podendo passar além, está desligado de Deus, pois aí começa a sua seita.
O islamismo pode chegar até o século VI, mas tem que parar diante de seu profeta Maomé, que é a origem de sua religião .
Os cismáticos gregos podem estender as suas pesquisas até Fódb, patriarca de Constantinopla, em 866, mas aí se detém a sua vista.
São olhares humanos, não são de Deus. Logo só podem produzir efeitos humanos e não divinos. São religiões falsas.

* * *

Maomé fundou o islamismo, ou religião dos Muçulmanos, em 612. De quem recebeu ele esta missão?
Diz ele que foi de S. Gabriel. Mas, nenhuma prova cita em seu favor. Como vimos, é um engano, uma esperteza, um pretexto.
E, mesmo admitindo-se tal revelação, seria ainda o islamismo uma religião falsa, pois a religião divina deve ser revelada pelo próprio Deus e não por um anjo.
Os anjos não possuem este poder, como não possuem o poder de criar. Eles são criaturas, não podem ser criadores; são mensageiros de Deus, não podem substituí-lo, mas simplesmente executar as suas ordens.
Maomé não recebeu, pois, missão alguma divina.
E, como homem, quem era ele?
No começo, um pobre órfão, sem recursos, sem instrução, sem futuro.
Depois, foi cameleiro, viajante, comerciante, ganhando o pão de cada dia pelo seu trabalho.
Tornou-se homem de fortuna, pelo seu casamento com Khadidja, uma viúva rica.
Tomado de obsessão religiosa, movido por uma ambição imensa, quis reunir em suas mãos o poder espiritual e civil de seu povo: fingiu ter aparições do anjo S. Gabriel, que nunca teve, e pretendeu receber do anjo uma nova lei, para reformar o povo árabe.
Enfim, expulso de sua pátria como visionário e sedicioso, retirou-se para Medina, onde a reputação de homem inspirado o acompanhou, e onde formou definitivamente a sua sorte.
Político hábil e ambicioso, guerreiro intrépido e empreendedor, déspota venerado e temido, árbitro supremo do trono e do altar, ele executou então o projeto já concebido de dominar o mundo pelas armas e pela religião.
Para este fim, tomou da religião dos Cristãos, dos judeus e dos árabes, os dogmas e as práticas religiosas que lhe pareciam mais aptas para ele granjear partidários e sequazes, no meio das nações que professavam tais religiões.
Destes dogmas e destes usos das religiões alí existentes, formou a base da nova religião, que pretendia praticada pelos seus.
Enganados pelas aparências e cegos pela ignorância, os árabes julgavam encontrar na nova seita a religião de Abraão e de Ismael, seus antepassados. O judeu julgava ter a religião de Moisés e dos profetas, e o cristão mal instruído em sua crença pensava encontrar a substância da religião de Jesus Cristo.
O cálculo foi bem feito, embora pecasse pela base, faltando à verdade e à sinceridade.
Em seu Alcorão, Maomé, para melhor iludir a todos, reconhece por divinas as diferentes revelações feitas, sucessivamente, aos patriarcas, aos profetas, e sobretudo as feitas por Jesus Cristo, que considera grande profeta e grande taumaturgo. Ele se dá a si mesmo como sendo o maior dos profetas e assegura que as revelações que pretende ter recebido de S. Gabriel são as mais perfeitas de todas, que é preciso adotar, como sendo as mais modernas e mais certas.
Publicou o código especulativo e prático desta nova religião na absurda mistura, contraditória, sem nexo e sem ideal, que é o Alcorão, que dividiu e redigiu em vários capítulos, anunciando que cada capítulo lhe havia­ sido invisivelmente trazido do Céu pelo Arcanjo São Gabriel, porém sem nunca dar uma prova sensível ou autêntica de tal afirmação.
Persuadia e obrigava a adotar esta doutrina a golpe de espada, fazendo matar a quem suscitasse qualquer dúvida, e decretando o extermínio dos povos que se opusessem à sua doutrina.
Tal é o autor e a origem do Islamismo.
Examinemos um instante esta doutrina. Uma parte do Alcorão é conforme à lei natural, e, por isso mesmo, à religião dos patriarcas, profetas e Jesus Cristo.
Maomé reconhece a existência e a unidade de Deus, a necessidade de um culto e de uma lei, a verdade de uma outra vida, a obrigação de praticar a justiça e a beneficência para com todos os homens.
É por este lado que ele a apresentava de início, pretendendo atrair sem forçar.
Uma outra parte da religião do pseudo-profeta, a parte que a caracteriza e faz dela uma religião nova é uma acumulação ridícula de dogmas desprezíveis e absurdos, de fábulas indignas e impertinentes, de erros grosseiros, de imposturas mal concertadas, que só o fanatismo ou um medo servil tem podido fazer adotar.
É possível, talvez, que durante certo tempo, um maometano, a quem é proibido pelo seu profeta, estudar outras religiões, nada encontre em sua seita que lhe faça sentir a sua falsidade, conservando-se, deste modo, numa ignorância invencível a respeito. É possível, sim, porém, neste caso, este muçulmano está na mesma situação de qualquer infiel que ignora invencivelmente a religião cristã: está fora do caminho da salvação, porém poderia não se tomar indigno das luzes e graças que lhe tornem possível a salvação, conduzindo-o, pouco a pouco, ao conhecimento da verdade.
Se, porém, este maometano, fazendo uso da sua razão, da boa fé, da retidão de seu espírito e de seu coração, procurar instruir-se sobre a natureza e o estabelecimento de sua religião, ser-lhe-á fácil descobrir grande número de razões sensíveis e plausíveis que provarão não somente que a religião de Maomé não merece nenhuma fé, mas que é evidente e positivamente falsa.
Que deve ele pensar, refletindo sobre o que lhe conservaram a história e a tradição a respeito da vida, caráter, moral e ambição do famoso chefe Maomé?
Que pensará ele do Alcorão, vendo que nada de racional e de sensato inclui, afora o pequeno número de dogmas especulativos e práticos, tirados da religião natural, ou emprestados da religião de Moisés ou de Jesus Cristo?
Que pensará ele, sobretudo, descobrindo vários capítulos compostos. propositalmente pelo pseudo-profeta para justificar ações criminosas e vergonhosas, praticadas por ele, no fogo das paixões, e por ele mesmo proibidas em outros capítulos anteriores?
Que pensará ele de uma religião nascida na corrupção e no saque, estabelecida pela força e pela violência e perpetuada pela ignorância e pelo fanatismo?
É evidente que, para dar ao mundo uma religião nova, que se diz emanada de Deus, é preciso ter recebido uma missão divina; bem notória e bem autêntica.
Ora, qual é a missão recebida por Maomé?
Não foi, de certo, uma missão ordinária, emanada dos ministros de uma religião já estabelecida, aprovada por Deus.
Não foi, tão pouco uma missão extraordinária, autorizada por milagres resplandecentes e autênticos, como era a missão de Moisés, ou a de Jesus Cristo!
Consta pela vida de Maomé, pela tradição, pelas próprias palavras dele e pelo texto do Alcorão, que o pseudo-profeta nunca operou um milagre, nem em público, nem em segredo.
A religião fundada por Maomé, o Islamismo, é, pois, uma religião falsa, uma religião inventada por ele, e não é uma religião divina, que possa trazer-nos a salvação eterna.
O muçulmano de boa fé deve examinar a sua religião, compará-la com a religião de Jesus Cristo, o Catolicismo e deste confronto nascerá em seu espírito a luz para ver o erro e a verdade. E Deus, que nunca recusa a sua graça às almas de boa vontade, lhe dará a força necessária para renunciar ao erro e abraçar a verdade, a única verdade, que está encerrada na religião fundada por Jesus Cristo e conservada pura e intacta na Igreja também fundada por Ele: A Igreja Católica, Apostólica, Romana.

P. J. M.

* * * 

Neste 1.o centenário da proclamação do "Dogma da Imaculada Conceição" não parece descabido, ao fechar o livro, citar o cap. XXI, v. 90, do Alcorão, passagem verdadeiramente gloriosa e reverencial: "Canta os louvores de Maria, que conservou a sua virgindade; ela e seu Filho foram a admiração do universo".
(Cf. este livro, cap. XIV, página 103).