Santo Agostinho - O santo da inteligência

espiritualidade

Um grande pecador que se tornou um grande santo!

RENÉ FULOP-MILLER

OS SANTOS QUE ABALARAM O MUNDO

SANTO AGOSTINHO, O SANTO DA INTELIGENCIA

Tradução de Oscar Mendes
oitava edição

1976

 

LIVRARIA JOSÉ OLYMPIO EDITORA

TÍTULO DA EDIÇÃO NORTE AMERICANA:
THE SAINTS THAT MOVED THE WORLD
Translated by Alexander Gode and Erika Filóp-Miller
Copyright by René Filóp Miller

Direitos para a língua portuguesa reservados à
LIVRARIA JOSE OLYMPIO EDITORA S.A.

Rio de Janeiro, Brasil
SANTO AGOSTINHO, O SANTO DA INTELIGENCIA

 

AO LEITOR MODERNO
“Uma filosofia superficial inclina o pensamento do homem para o ateísmo, mas uma filosofia profunda conduz as mentes humanas à religião.” Assim escrevia Lorde Bacon, cuja obra marca uma mudança decisiva na história do pensamento ocidental, a mudança da Idade Média com sua aceitação do dogma e da doutrina para a era moderna da prova científica e da experimentação.
Os grandes filósofos precursores do racionalismo do século XVIII eram bastante humildes para reconhecer os limites da experiência perceptiva. Curvavam-se respeitosos e reverentes diante das coisas para além da esfera da investigação racional.
Pedro Bayle, com sua filosofia cética, forneceu as bases do racionalismo esclarecido, mas admitia francamente que a razão basta quando muito para revelar erros e não para descobrir verdades.
João Locke, o primeiro grande empírico britânico, fundador duma filosofia do “senso comum”, via contudo na razão apenas uma “função de revelação” e lembrava a seus leitores “quão restrito é o domínio, simplesmente um ponto, um quase nada, que nossos pensamentos podem abranger, em comparação com a vasta extensão que transcende nossas faculdades de pensar.”
Alexandre Pope, o poeta desta nova tendência filosófica, sugeriu, com delicioso sarcasmo, que deveríamos — desde que é razoável principiar duvidando de todas as coisas — reservar a força principal de nossa dúvida para duvidar da própria razão, aquela força que se aventura a provar as coisas de que devemos duvidar.
Entrementes, porém, as ciências empíricas, na sua busca das leis naturais, fizeram, uma após outra, assombrosas descobertas, induzindo, consequentemente, a razão a tirar a falaciosa conclusão de que somente ela possui a chave do verdadeiro conhecimento. Com crescente liberdade e ousadia, foi proclamada a teoria de que para a ciência nada poderia haver de sobrenatural e de incompreensível, e de que, pelo contrário, cada fenômeno, cada ocorrência, poderiam ser explicados por meio de causas naturais, jacentes inteiramente dentro dos limites da investigação empírica. Cada vez que uma nova lei da natureza era descoberta e formulada, a humilde modéstia, que tinha até então caracterizado os pais do empirismo, tornava-se mais fraca, enquanto que a arrogância confiada da razão humana continuava a crescer.
Até mesmo Kant, destinado a tornar-se um dos mais severos críticos da razão, definiu certa vez “o conhecimento como uma revolta contra os preconceitos e a intolerância da infância”, e Hegel, o apóstolo da razão absoluta, saudou o esforço intelectual, “quando o homem firmou sua posição na cabeça, isto é, no pensamento e moldou a realidade em concordância com o mesmo”, como o começo de uma era de novas glórias.
Mas a razão desapontou aqueles que tinham fé na sua soberania e olhavam o conhecimento como “a aurora duma nova humanidade”. A era da ilustração tinha começado como uma revolta contra os preceitos e a intolerância da Igreja, mas tão logo estabeleceu sua reivindicação de liberdade intelectual, ultimou sua emancipação e alcançou o poder com seu próprio direito, assumiu a mesma atitude de intolerância reacionária que havia combatido nos seus adversários de outrora. Esqueceu-se de que havia começado rebelando-se contra a tutela do dogmatismo escolástico e utilizou seu êxito simplesmente para substituir seus próprios preconceitos pelos preconceitos do pensamento escolástico. Um dogma da razão tomou o lugar do dogma da fé. A chamada “negra Idade Média” abriu caminho a uma “Ilustração mais negra”.
Foi uma verdadeira ditadura da razão empírica que usurpou o poder, no correr do século XVIII. Declarou, com autoritarismo arbitrário, que os resultados da percepção sensorial eram a única forma segura de verdade. Tudo quanto estivesse fora do reino dos cinco sentidos, tudo quanto excedesse os poderes humanos da compreensão racional, era estigmatizado como herético. O universo — incluindo o homem e todos os assuntos intelectuais e espirituais do homem — assumiu o aspecto dum reino totalitário governado pela razão, por meio duma administração de pesos e medidas de leis mecânicas da natureza.
Os cientistas do século XVII estavam preparados para completar as bases desta arrogante regra de razão. Eles próprios foram ainda capazes de visualizar as leis da natureza em harmonia. com um plano divino de criação; para eles, saber e fé não tinham entrado em choque. João Kepler, por exemplo, o descobridor das três importantes leis do movimento planetário, sentira-se tão certo da presença de Deus no universo, como em sua própria alma. Sir Isaac Newton não admitia que a ideia da gravitação universal, por ele concebida, pudesse estar em conflito com sua fé em Deus. Renato Descartes — o primeiro a proclamar a supremacia universal da razão, o pensador que postulou a dúvida como o começo da busca humana da verdade e procura explicar em termos mecânicos os movimentos das estrelas e a pulsação do coração do homem e do animal — estava contudo preparado para reconhecer Deus como a mais firme e a mais perfeita realidade, como a causa primeira e mais geral de todos os fenômenos. Blaise Pascal, a quem as matemáticas e a física devem a descoberta de princípios e leis de fundamental importância, combinou seu conhecimento das leis da natutureza com sua fé nas leis de Deus. O mesmo é verdade, no que se refere a Leibniz, o homem por intermédio de cuja obra a biologia progrediu até a posição duma ciência exata. E até mesmo Voltaire, o grande livre pensador do século XVIII, escreveu como derradeira confissão: “Morro adorando a Deus.”
Depois a Revolução Francesa sentiu-se designada para depor Deus, como havia deposto os Bourbons. Pedro Gaspar Chaumette, procurador da Comuna de Paris, prestou homenagem à nova “Deusa Razão”, em discurso proferido em 10 de novembro de 1793, na catedral de Notre Dame. “A fé tem que ceder lugar à razão”, disse ele.
“O povo de Paris reuniu-se neste templo gótico, em que a voz do erro por tanto tempo ressoou, e onde hoje, pela, primeira vez, os trombetas da verdade estão soando. Abaixo os padres! Não mais deuses, senão aqueles que a natureza nos oferece!” E na Convenção o cidadão Jacques Duport exclamou dramaticamente: “Natureza e Razão — são estes os meus deuses!”
A sistematização racionalista de todos os fenômenos da vida e da natureza, característica da ilustração do século XVIII, foi levada ao extremo pelas tendências materialistas e positivistas do século XIX.
Cada nova conquista da ciência era superiormente encarada pelos agentes e propagandistas do racionalismo como mais um simples passo na direção do estabelecimento final de um Terceiro Reich universal de verdade empírica. O homem — sua consciência e sua alma — foi reduzido a um complexo de reações mecânicas, fisiológicas, bioquímicas, reflexológicas, psicanalíticas ou lá que sejam.
Os valores culturais eram olhados exclusivamente como o produto de uma interação mecânica de causa e efeito. Ética, arte, ideais humanitários, todo o curso, enfim, da história humana, era concebido como sujeito às leis da “física social”, da “biologia social”, do “principio de seleção”, da “sobrevivência do mais apto” e do “materialismo histórico.” Todos os fenômenos supra-sensíveis, que não estivessem em acordo com esta concepção mecanicista de um mundo de matéria, eram rejeitados como contrários ao senso comum. A fé era sabotagem contra a razão onipotente; a religião um “ópio para o povo” ou o “regresso ao primitivismo infantil”; a ideia de Deus era simplesmente um sintoma de “desordens funcionais do cérebro.”
Os espíritos criadores desta era, porém, os poetas e artistas, os que deviam pouco à razão e tudo à graça, recusaram submeter-se à ditadura da razão. A igual de seus grandes antepassados, a igual do que Dante, Petrarca, Miguel Ângelo, Durer, El Greco e Bach haviam feito, continuaram a professar sua fé em Deus e na verdade maior das certezas supra-sensíveis. “Só Vós podeis inspirar-me”, escrevia Beethoven em seu diário, “Vós, meu Deus, minha salvação, meu rochedo, meu tudo; em Vós somente porei minha confiança” Balzac e Baudelaire rejeitaram com soberano desprezo a mesquinha vara da razão e reafirmaram a suprema realidade da fé. Feodor Dostoiéuski, Nicolau Gogol, Francis Thompson, Gerard Manley Hopkins todos estes derivaram a força de sua criação poética de sua crença em Deus. Até mesmo o cético Heine escreveu, num pós escrito ao seu ROMANCEIRO: “Sim, voltei a Deus. Sou o filho pródigo... A nostalgia do céu me dominou.” Confessou: “Há, afinal de tudo, uma centelha divina em cada alma humana”
William Blake, gênio ao mesmo tempo na arte e na poesia, falava do senso físico da visão como de um meio de atingir para além dos limites dos sentidos. “Não interrogo meu olho corpóreo ou vegetativo mais do que interrogaria”, escrevia ele, “uma janela sobre uma paisagem qualquer. Eu olho através dele e não com ele.” Acreditava na realidade das visões supra-sensíveis, porque ele mesmo as tivera. Para Blake “os tesouros do céu não são meras realidades do intelecto, são reais entidades celestiais! Uma visão não é uma nuvem de vapor ou um nada. Está organizada e minudentemente articulada para além de tudo quanto a natureza mortal e perecível pode produzir. Afirmo que todas as minhas visões me parecem infinitamente mais perfeitas e mais organizadas do que qualquer coisa vista pelos mortais”.
Van Gogh, depois de passar toda a vida pintando camponeses, macieiras e girassóis, confessou, das profundezas de sua convicção religiosa que, se lhe tivesse sido dado fazê-lo, gostaria de ter pintado as figuras dos santos. “Ter-se-iam transformado em homens e mulheres semelhantes aos primeiros cristãos.”
“Estou quite com a vida”, disse Strindberg, num balanço final, “e o saldo mostra que a palavra de Deus é a única certa” Paulo Claudel, finalmente, referiu-se à poesia como uma forma de oração, pois na sua pureza é criação divina e dá testemunho perante Deus.
Poesia e oração são apenas duas expressões de um único anseio da alma humana.
Entretanto, mesmo dentro das fileiras do exército da razão foram percebidos sintomas, frequentemente crescentes, de baixo moral e falta de disciplina. Houve bom número de mornos partidários, irresolutos, profanos, derrotistas. A linguagem de Schopenhauer foi a de um traidor e desertor. Falava da razão, dizendo ser ela “uma função parcial do pensamento” e insistia na afirmação de que “a esfera de existência própria do espírito humano” jaz para além do domínio dos sentidos. “O mundo físico não é mãe, mas simplesmente a ama do espirito vivo de Deus dentro de nós.”
O golpe mais fatal contra a ditadura da razão, porém, foi preparado dentro do sacrário íntimo do próprio racionalismo, isto é, nos laboratórios e observatórios, onde a ciência exata, comissionada pela razão, estava ocupada na tentativa de provar com escalas e balanças, tábuas e fórmulas, que as leis mecânicas da natureza são universalmente válidas. À medida que os métodos de investigação se tornavam mais e mais refinados, os resultados por eles produzidos se revelavam mais e mais incompreensíveis, em termos puramente racionais. O físico austríaco Ernst Mach viu-se obrigado a afirmar que um exame mais crítico dos dogmas filosóficos da “ilustração” não podia encontrar neles outra coisa senão uma nova mitologia concebida em termos mecânicos. Exprimiu suas dúvidas quanto à aplicabilidade da razão no domínio da ciência natural e escreveu: “Quando pensamos ter logrado êxito na compreensão dum processo, o que aconteceu de fato foi ligarmos incompreensibilidades desconhecidas e incompreensibilidades conhecidas.”
A semelhantes conclusões chegaram trabalhadores nos mais diversos ramos da pesquisa moderna. Para o estudante da astrofísica os corpos do espaço estelar não mais apareciam como um sistema de estrelas, movendo-se, como num mecanismo de relojoaria, por caminhos perfeitamente calculáveis e permanentemente imutáveis.
Pelo contrário, tomou-se evidente que o universo está padecendo mudança continua, que se dilata e se contrai, sem que sejamos capazes de dizer por quais razões e em concordância com quais leis.
Mas se a razão desiludiu o homem quando este contemplou o universo estelar, domínio do infinitamente grande, não menos o desiludiu no domínio do infinitamente pequeno, na região das entidades mais minúsculas, mal discerníveis pelo mais poderoso microscópio. No mundo das moléculas e dos átomos, verificou-se que o método da razão de pesar, de medir e de formular leis naturais, não era mais aplicável, a muitos respeitos.
Os cientistas chegaram à conclusão de que o que havia sido interpretado como leis da natureza não era nada mais, na realidade, senão resultados do cálculo das probabilidades. Este cálculo das probabilidades, com suas médias estatísticas, aplicava-se somente a enorme números de exemplos, a quase inumeráveis repetições de um e mesmo processo. No domínio do infinitamente pequeno, no mundo dos átomos e eléctrons, porém, estes grandes números não mais podiam ser encontrados. Aqui prevalecia o poder que chamamos acaso: um destino microcósmico que zomba do cálculo da razão, De modo que se tornou de todo discutível se quaisquer leis, referentes aos processos moleculares individuais, poderiam ser racionalmente formuladas, ou se as forças humanas do conhecimento não enfrentavam aqui barreiras intransponíveis.
Quanto mais avançava a biologia, mais impossível achavam os biologistas reduzir a uma fórmula racional a vida até mesmo das plantas mais minúsculas. Eram obrigados a constatar que “o Newton da folha de erva ainda não aparecera e jamais apareceria.”
Em suma, tornou-se cada vez mais evidente que a expansão do domínio da ciência corria paralelamente com uma contração da esfera dos fenômenos que a razão e o cálculo podiam explicar. A profecia materialista de que o fim do século XIX veria o fim das crenças religiosas reduzira-se a zero. À regra do pensamento puramente causalístico, que se esperava viesse durar mil anos, via-se forçada — precisamente pela expansão das descobertas cientificas-a reconhecer sua posição verdadeira de nada mais do que um governo provisório. A profecia de Lorde Bacon de que “uma filosofia profunda conduz as mentes humanas à religião” revelava-se verdadeira.
A mova tendência na história do pensamento humano mostra-se claramente aparente nas obras do grande filósofo e psicólogo americano William James. Sua doutrina pragmática aceitou os dados da experiência como critério de toda a realidade. Sobre esta base, via ele nas experiências religiosas a corroboração pragmática da realidade de um princípio divino e nos fenômenos visionários a demonstração pragmática de um reino de fatos supra-sensíveis. James foi também o primeiro a chegar à conclusão de que os fundamentos do espirito de religião não são incompatíveis com a ciência moderna e seus métodos de pensar. Como verdadeiro campeão duma crítica sem preconceitos, sustentou o direito do homem, e até mesmo sua necessidade de crer. Assim sua filosofia tornou-se a carta duma tendência liberal e livre de pensamento que manteve a luta contra os preconceitos da razão dogmática. Durante um século a fé estivera enclausurada no campo de concentração do materialismo racionalista. Descera ao subsolo e continuara a trabalhar nos domínios da poesia e do pensamento romântico, mas agora — graças à James era libertada e restaurada em todos os seus direitos e honras.
E então-pouco mais de um século e um quarto depois que a Revolução Francesa havia estabelecido a ditadura da razão, com seu objetivo do domínio universal — outra revolução francesa explodia — desta vez uma revolução de pensamento. Nova tendência filosófica, sob a influência e liderança de Emilio Boutroux e Henrique Bergson, começou a minar a regra absoluta do racionalismo e a lutar pela restauração da validez das verdades metafísicas. Com William James, as verdades metafísicas tinham gozado de iguais direitos às verdades da razão e da percepção sensível, mas agora eram restauradas em sua antiga posição de poder soberano. Deus, a quem a Convenção Nacional havia exilado, podia voltar à França.
Esta nova fase do pensamento francês não concebia a religião como um vestígio do pensamento primitivo ou simples produto acessório de condições econômicas atrasadas, mas antes como uma categoria na vida espiritual do homem à qual a razão deveria ser subordinada.
À luz desta nova filosofia, Deus aparecia como uma raison profonde; o espírito que é o universo era a action suprême; a fé em Deus significava conhecimento do acte de vivre; a experiência mística constituía uma participação na nature fondamentale e os esforços éticos do homem significavam uma restitution de Dieu dans la nature.
A doutrina anti-religiosa do racionalismo e da ilustração partira da França, na sua correria pela conquista do mundo. À mesma coisa fez a nova tendência da filosofia pró-religiosa.
Foi dotada duma base científica quando os resultados da pesquisa moderna tornaram possível reconhecer, para além dos limites da observação física, um princípio espiritual como o primeiro motor de toda a criação.
Kant afirmava que era seu dever “abandonar o saber para dar lugar à fé.” Mas em contraste com ele, que assim estipulava radical separação entre ciência e religião, número sempre crescentagose de importantes físicos, astrofísicos, matemáticos e biologistas é agora de opinião que ciência e religião não são somente inimigas uma da outra, mas constituem na sua intima inter-relação um quadro completo do mundo.

Aqui estão homens que lograram, graças aos mais modernos métodos de pensamento e de pesquisa, penetrar as ilimitadas distancias do espaço imaterial, medir a velocidade imaterial da luz, sondar o mundo do infinitamente pequeno, dos átomos e eléctrons, aplicar princípios matemáticos aos problemas do tempo, do espaço e da relatividade, desvendar as mais ocultos segredos das células vivas e dos desenvolvimentos orgânicos. E no curso de seu trabalho, uma concepção inteiramente nova do universo desdobrou-se diante deles, conduzindo-os cada vez mais distante da primitiva hipótese artificial e mecanicista do materialismo até à ideia de que o universo está modelado segundo uma ordem viva, concebida por um Criador divino.
Estes cientistas modernos pensam de novo — como fizeram seus grandes precursores Kepler, Newton, Pascal — a respeito do Criador e da Criação, da lei física e da imanência divina, dos “dados sensoriais” e dos “dados de valor”, como uma entidade harmônica.
Apoiados por suas penetrantes investigações científicas, proclamam não somente suas descobertas factuais, mas também a validade eterna da verdade da fé.
“Com espantosa rapidez, dentro dos passados vinte anos o homem estendeu sua visão", escreveu, o grande fico americano Roberto Andrews Millikan. “Lançou o olhar para o íntimo do átomo, corpo com a milionésima parte do diâmetro duma cabeça de alfinete, e descobriu um núcleo infinitamente menor. Lançou depois o olhar para dentro deste núcleo e observou o entrejogo da irradiação sobre os eléctrons, ao mesmo tempo dentro do núcleo e fora dele, e por toda parte encontrou maravilhosa ordem e sistematização. Mais uma vez o homem voltou seu microscópio sobre a célula viva e achou-a mesmo mais complexa do que o átomo, com muitas partes, cada uma exercendo sua função necessária à vida do todo. E mais uma vez, voltou seu grande telescópio para a nébula espiral, distante um milhão de anos-luz, e ali também encontrou sistema e ordem.”
Considerando tudo isto, Millikan exclamou: “Haverá ainda alguém que fale a respeito do materialismo da ciência? Pelo contrário, o cientista se ajunta ao salmista de mil anos passados, ao testemunhar, reverentemente, que os Céus proclamam a glória de Deus e o Firmamento manifesta a Sua obra. O Deus da Ciência é o espírito da ordem racional e do desenvolvimento ordenado, o fator integrante no mundo dos átomos, do éter, das ideias, dos deveres e da inteligência” Millikan, que investigou o poder penetrante dos raios cósmicos, que conseguiu isolar o elétron e medir-lhe a carga, concluiu, baseado mas suas descobertas científicas, que “há uma inter-relação, uma unidade, uma unicidade, em toda natureza e que, todavia, é ainda um mistério maravilhoso... a moderna ciência da realidade”, escreveu Milikan, “está pouco à pouco aprendendo a caminhar humildemente com seu Deus, e ao aprender esta lição, está contribuindo de algum modo para a religião.”
Sir Artur Stanley Eddington, um dos principais astrofísicos ingleses dos tempos modernos, derivou de suas pesquisas sobre o movimento das estrelas, da evolução estelar e da relatividade, a conclusão de que uma investigação puramente física da natureza é limitada e necessita ser complementada por observações dum ponto de vista religioso.
“O objetivo da ciência”, escreveu Eddington, “até onde alcança sua esfera de ação, é descobrir a estrutura fundamental subjacente ao mundo; mas a ciência tem também de explicar, se puder, ou mesmo humildemente aceitar, o fato de que deste mundo ergueram-se espíritos capazes de transmudar a mera estrutura na riqueza de nossa experiência. Se o mundo espiritual tem sido transmudado por uma cor religiosa para algo além do que está implícito em suas meras qualidades exteriores, pode ser permitido asseverar com igual convicção que isto não é uma interpretação errada, mas a ação dum elemento divino na natureza humana”. Nas suas famosas conferências em Gifford, Eddington chegou à derradeira conclusão: *Donc Dieu Existe!”
A frase de Galileu de que a natureza é um documento escrito na linguagem das matemáticas foi aceita, por todos os séculos passados, como um axioma das ciências “clássicas” da natureza. Matemáticos modernos, depois de terem estudado todas as sutilezas sintáticas e gramaticais desse idioma espiritual da natureza, dão às matemáticas a denominação de “linguagem da divindade” Sir James Hopwood Jeans, o astrônomo e físico inglês, é de opinião que o mu universo é governado por leis matemáticas, inventadas e aplicadas por Deus. À concepção do universo, que Jeans derivou de suas pesquisas na cosmogonia e na dinâmica estelar, revela a mesquinha inadequação da ideia “esclarecida” de um universo-mecanismo de relógio e designa-lhe o lugar devido na pilha de ferro velho dos pensamentos fora de uso.
“O universo”, escreveu Jeans, “começa a assemelhar-se mais a um grande pensamento do que a uma grande máquina. O pensamento não aparece mais como um intruso ocasional no reino da matéria; estamos começando a suspeitar que, pelo contrário, devemos aclamá-lo como o criador e governador do reino dá matéria — não, sem divida, nossos pensamentos individuais, mas o pensamento no qual os átomos, dos quais nossos pensamentos individuais brotaram, existe como pensamento.”
Deus é a verdade derradeira da ciência moderna — quer se relacione ela com a extrema pequenez dos eléctrons, quer com a grandeza extrema do universo.
Olhando através do buraco de rato espiritual do passado materialista, aparece o mundo estreito e escuro. Acima dele não existem alturas radiosas desdobrando-se. Os materialistas cientificistas de anos passados exibiam diante de todos os valores superiores uma atitude de indiferença cínica. Fossem eles Deus, alma, fé, arte, amor, coragem ou devoção, — devia o materialista tipico tentar “desbancá-los”, ou pelo menos degradá-los e demonstrar sua dependência funcional de algum mecanismo de causa e efeito.
Na sua mais moderna fase, as ciências naturais foram capazes de libertar-se da filosofia falida do materialismo e dela afastar-se, de seu cinismo vazio diante da ideia de “valores”. Graças às descobertas da ciência moderna, Deus voltou ao universo e dirige de novo os movimentos dos astros, a velocidade da luz, os giros de átomos e eléctrons, bem como a sorte das almas individuais e o destino dos povos. E as leis de acordo com as quais Ele assim age são valores eternos — para toda a criação e para cada homem individualmente.
“No universo”, escreveu Alfredo North Whitehead, o eminente filósofo contemporâneo e professor de matemáticas aplicadas, “há uma unidade gozando de valor e, por sua eminência, repartindo valer. Chamamos a esta unidade Deus, Deus é aquele por meio do qual existe importância, valor e ideal para além do real; Ele é Aquele que mantém a mira diante da experiência viva... O universo exibe uma criatividade com infinita liberdade, e um reino de formas com infinitas possibilidades; mas esta criatividade e estas formas são inteiramente impotentes para aparar a realidade da completa harmonia ideal, que é Deus.”
Tais pontos de vista marcam o matemático Whitehead como um grande filósofo de orientação religiosa. “É a intuição teológica da religião”, escreveu ele, “que dá à nossa visão da natureza a necessária completação. O caráter peculiar da verdade religiosa é a sua relação explicita com os valores. Traz para dentro de nossa consciência aquele lado permanente do universo pelo qual podemos interessarmos.
“Mas os valores têm paixão pela realização no mundo da ação e quando, por meio do processo criativo, entram neste mundo, dotam o momento transitório com a significação do permanente. Separada da visão religiosa, a vida humana é apenas um clarão de prazeres ocasionais, iluminando uma massa de cor e de miséria, uma bagatela de experiência passageira...
“Quando consideramos o que a religião é para a humanidade, e o que a ciência é, não haverá exagero em dizer que O futuro curso da História depende da decisão desta geração no que tange às reações entre elas. Temos aqui as duas forças gerais mais poderosas que influenciam o homem, a força de nossas intuições religiosas e a força do nosso impulso para a observação acurada e a dedução lógica. Há verdades mais amplas e perspectivas mais belas dentro das quais será encontrada uma reconciliação duma religião mais profunda é duma ciência mais sutil.”
A perda de prestígio que o materialismo antimetafísico sofreu no domínio da natureza inorgânica foi bastante ruim; mas os resultados de sua tentativa de ganhar pé também nos domínios da vida e da consciência — em biologia, genética, psicologia e sociologia foram completamente grotescos na perfeição de seu fracasso grosseiro. Pois aqui o materialismo veio a encamar a realidade vigorosa das formas sempre mutáveis e dos acontecimentos que nunca se repetem. E quanto mais atrevidamente tentou ele atacar os problemas da vida, — para deduzir fenômenos vivos de mortas leis mecânicas — tanto mais inadequadas se mostravam as coisas que ele tinha de apresentar à guisa de resultado.
Nas mesas de trabalho de seus laboratórios, nos fichários de seus estúdios, tinham os materialistas pilhas e mais pilhas de relatórios de fatos, de fórmulas físico-químicas, de testes psicológicos e de resumos estatísticos; a massa era impressionante, mas o significado desprezível. Os segredos da forma, dos acontecimentos espontâneos, do caráter e da personalidade, não podiam ser descobertos com a adição de somas é compilação de fatos. À atarefada colmeia da ciência materialista não podia deixar de desprezar a coisa mais importante: o divino espírito, único a poder explicar a multiplicidade sempre variante das formas orgânicas emergindo de moldes imutáveis.
Confrontada com os milagres da realidade viva, a técnica do materialismo racional verificou-se, em última análise, não passar justamente de “um erro que apenas 'macaqueava Deus”, sendo simplesmente capaz de imitar o que já tinha sido criado, ou reduzir a pedaços o que já está dado a conhecer.”
A Darwin, de cuja teoria da evolução a filosofia materialista tirou a coragem de adentrar-se mais e mais no reino dos fenômenos vivos, aconteceu certa vez que veio a perder, por um instante, diante do espetáculo duma floresta tropical, o fio de seus princípios mecânicos e exclamou: “Nenhum homem pode permanecer aqui sem sentir que estas matas são templos cheios dos vários produtos do Deus da natureza e que há no homem mais alguma coisa do que o hálito de seu corpo.”
Desde os tempos de Darwin nosso conhecimento das coisas vivas, e na verdade nossa concepção de toda a natureza, sofreu mudança fundamental. O falecido físico e fisiologista botânico Sir Jagadis Bose — fazendo uso de instrumentos especialmente construídos para dar com rigor medidas duma precisão de um milionésimo de polegada, — chegou à estupefaciente descoberta de que as árvores e as Plantas são criaturas sensíveis. “As plantas têm corações e emoções e até mesmo o aço e outros metais podem sentir.” Sir Jagadis não precisou de ir a uma floresta tropical para sentir o espírito de Deus na natureza.
Pela mesma ocasião, mas trabalhando em campo inteiramente verso, o anatomista do cérebro Constantino von Monakoff investigava, no seu laboratório na Suíça, a estrutura celular do tecido nervoso do cérebro e do cordão espinal e verificou que os fenômenos mentais e espirituais não podem ser explicados pelos processos físico-químicas dentro do sistema nervoso, mas forçam o estudioso a voltar à suposição dum princípio divino como sua causa derradeira.
Quanto mais progride a ciência na sua investigação dos acontecimentos biogenéticos, quanto mais os toscos princípios duma aproximação meramente quantitativa dos problemas psicológicos são deixados para trás, dando lugar à aproximação qualitativa dos métodos genéticos e dinâmicos, tanto mais aparente se toma que ela simplesmente não conceberá o homem como “aquela parte do mecanismo da natureza em que as funções de consciência e sensitividade têm sido condicionadas a um grau relativamente alto de eficiência” Muito pelo contrário! Devemos ter novamente a c de conceber o homem como a realização dum pensamento divino e compreender que crescimento e evolução significam o desenrolar dum plano traçado por Deus.
A certeza de Deus que teve Darwin foi uma sensação momentânea. Nas décadas que se seguiram, uma reorientação notável tem levado a ciência do homem — tanto nos seus ramos psicológicos como sociológicos — a se aproximar cada vez mais da aceitação dum princípio divino. O discípulo de Darwin, Herbert Spencer, interpretou a vida, o pensamento e a sociedade ainda em termos de matéria, movimento e força; mas comparadas com os relatos, nos dias atuais, que de suas pesquisas apresentam as cientistas, as obras de Spencer não são muito mais do que os penosos esforços de um primário, colocado lado a lado com o manuscrito de um escritor treinado, que domina a arte de exprimir novos pensamentos por meio do mesmo grupo de letras.
A lição que o eminente biologista oxfordiano Sir John Scott Haldane deduziu de suas investigações expressa-se da seguinte forma:
“O mundo da Natureza que nos cerca não é um simples mundo físico-químico ou biológico, mas um mundo no qual a personalidade está justamente tão encarnada como em nossos próprios corpos. Para certos propósitos práticos, podemos encará-lo como simples mundo físico-químico ou biológico, mas como o mundo de nossa experiência é não somente um mundo de personalidade, mas também de divina personalidade... Não somente se manifesta a personalidade de Deus em nosso mundo universo, mas nós mesmos, até onde lutamos em busca do que é divino. somos partícipes, embora imperfeitamente, da personalidade divina... O universo visível e tangível é muito mais do que o que pode ser interpretado em termos da ciência física tradicional. A derradeira interpretação é a interpretação espiritual pela qual tudo quanto é claramente definível no mundo visível e tangível é a manifestação de Deus...
Separada da existência de Deus, vivo e ativo, a realidade não tem significação última... Devemos aceitar os resultados da ciência física como uma interpretação parcial, "e então a religião é não somente compatível com as legítimas conclusões da ciência natural, mas a persecução intrépida e cheia de fé da ciência natural torna-se uma contribuição à verdade relativa — uma parte da própria religião.”
Por mais de um século o materialismo racional tem estado a litigar com a fé. Seus advogados apresentaram considerável número de testemunhas, — físicos, matemáticos e biologistas, cujos depoimentos tinham por fim demonstrar que materialismo significa progresso, que ele possui qualificações excepcionais para chefiar e que a fé deveria ser acusada como uma retrógrada criminosa.
Nos tempos atuais as coisas estão tomando um aspecto decidida mente diferente. As vantagens estão claramente contra a razão.
Cada vez mais os testemunhos recolhidos nos laboratórios e gabinetes da ciência exata mudam-se em provas para a defesa, e contra o materialismo têm sido ditas muitas coisas desagradáveis pelos seus própios peritos e autoridades.
“A ciência”, diz a testemunha Millikan, “é muitas vezes acusada de induzir a uma filosofia materialista. Mas O materialismo não é seguramente um pecado da ciência moderna. Se alguma coisa há que o progresso da física moderna haja ensinado, é que uma assertiva dogmática a respeito de tudo quanto existe ou não existe no universo, tal como foi descrito pelo materialismo do século XIX, não é científica, não é verdadeira. O físico tem tido o argumento de suas generalizações tão completamente inutilizado que aprendeu com Jó que é loucura multiplicar palavras sem conhecimento, como fizeram todos aqueles que outrora afirmaram que o universo deveria ser interpretado em termos de átomos inflexíveis, sólidos, desalmados, e de seus movimentos. A filosofia mecanicista abriu falência.”
Mas a testemunha Sir John Scott Haldane vai até mais além, quando declara que “o materialismo, outrora teoria científica, e agora credo fatalista de milhares, nada mais é do que uma superstição..."
O júri, composto de mulheres e homens modernos, inteligentes e liberais, baseia seu veredicto nos pontos de vista expressos pelos testemunhas Millikan, Eddington, Jeans, Whitehead, Haldane. Anula-se o processo contra a fé. À razão, autora da queixa, passa agora a ser suspeitada como realmente culpada de atraso reacionário, mas o processo não é levado a rigor, pois parece que o novo réu está honestamente desejoso de corrigir seus erros.
O leitor moderno que abriu este livro sobre os santos e encontrou suas primeiras páginas devotadas a um exame geral das atitudes filosóficas e dos resultados da moderna pesquisa científica, receberá de boa vontade a seguinte explicação:
O exame geral, que acabamos de completar, pareceu indispensável para definir a posição filosófica e científica do autor e a base sobre a qual ele assenta esta nova apreciação dos santos, a descrição de suas vidas, a narrativa de seus feitos e a análise de sua importância cultural e sociológica no passado, no presente e conseguentemente no futuro.
Ao escrever este livro sobre os santos, desejou o autor ao mesmo tempo reconhecer a sua divida e responder a uma evidente necessidade das tendências verdadeiramente progressistas do pensamento nos tempos modernos.
A maior parte dos livros de História à mão são meras repetições de seus predecessores dos séculos XVIII e XIX, cujos erros e conclusões cheias de preconceitos parece terem tido eles grande trabalho em conservar. Em consequência, mais obstruem do que esclarecem as vistas do leitor. Exaurem-se numa enumeração pedantesca e confusa de datas; tentam pintar como ideais de heroísmo e como grandes condutores da humanidade os que foram realmente torniquetes políticos e glorificados assassinos de povos; ou — pior de tudo —assumem ares científicos registrando, fiéis ao estilo do materialismo histórico, dados sobre produção, preços e índices de oferta e procura. Em consequência, as histórias de santos, de seus pensamentos e de suas ações, permaneceram como o domínio especial, ou dos escritores de tratados agradavelmente edificantes ou dos monomaníacos da psicanálise, que não ficaram sabendo que o século XIX já terminou e misturam as vidas dos santos dos séculos passados com histórias judiciárias de seus pacientes de Viena, Berlim e Nova Iorque.
Todavia o mais moderno credo científico levou a cabo completa justificação dos valores supra-sensíveis na vida e na natureza. Nova época do pensamento humano começou. Nowa “reforma” se processa que tenta reformar a fé ortodoxa na razão. Estamos sendo testemunhas duma nova “renascença”, que se ocupa em fazer voltar a apreciação do homem à sabedoria construtiva e à beleza da fé. Uma mova “ilustração” conduzirá à vitória, emancipará nosso pensamento da intolerância dogmática do materialismo, restaurará nosso privilégio duma avaliação verdadeiramente sem preconceito da História e nos capacitará a avaliar plena e livremente os tesouras do passado.
Nós, homens e mulheres do século XX, sentimo-nos orgulhosos de nossa adesão ao ideal de justiça social, de nosso credo democrático, de nossos princípios humanos, de nosso desprezo por todas as formas de preconceito racial, de nossa compreensão de problemas econômicos, de nossos interesses e de nossas organizações de âmbito universal. Mas todas estas realizações são, em última análise, uma herança a nós confiada por um passado embebido na fé divina, e se reconhecemos que como guardas e curadores do passado  estamos lutando por preservar e desenvolver os valores que nos foram transmitidos por uma antiga tradição, estamos também pagando tributo aos santos do passado que criaram aqueles valores e deram testemunho de sua excelência em tudo quanto praticaram.
Entre os santos contam-se os primeiros proclamadores dos ideais humanitários, os primeiros combatentes pela justiça social, os primeiros campeões do pobre. Consideravam todas as nações e raças iguais; o horizonte deles era verdadeiramente global; foram os primeiros libertadores dos escravos. Estabeleceram a santidade do trabalho e foram os primeiros a insistir na sua categoria ética. Elevaram a mulher à posição de companheira do homem e determinaram nova importância às suas funções na estrutura social. Foram os conselheiros espirituais da humanidade, os protagonistas da liberdade intelectual, os primeiros educadores e os fundadores dos primeiros institutos científicos. Quer estudemos a História dum ponto de vista político ou econômico, quer consideremos os domínios da cultura ou da ciência e da técnica, em toda parte vamos descobrir que os santos a proclamaram e por ela combateram, por essa espécie de cultura que hoje estamos lutando por preservar.
Além disto, as vidas dos santos contém uma mensagem de beleza e de esperança. Todos os nossos tesouros culturais, os valores eternos e ideais do progresso moral, de caridade, de amor e de justiça, nossa apreciação da arte e o sentimento que temos da grandeza do mundo natural, são expressões duma forma de energia criadora que tem seu fogo nas vidas dos santos e delas se irradia.
Mas se em troca perguntarmos o que foi que deu aos santos tais poderes criativos, capacitando-os a exercer decisiva influência sobre o curso cultural de séculos, subsequentes até ao presente e, sem cessar, até ao futuro, a resposta é simplesmente que foi sua fé numa realidade sobrenatural que se situa acima da realidade dos sentidos sua fé numa lei divina que é mais forte do que as misérias e necessidades da vida na terra; numa eternidade que é mais verdadeira do que o momento; numa ordem e numa beleza de que a confusão desenfreada da ordem e da beleza da existência terrena é apenas uma noção errônea. Acreditavam que o homem é capaz de entender as ordens de Deus, de harmonizar com elas as exigências da vida sobre a terra, de dar ao momento valor duradouro, e de ir no encalço de seus ideais até à sua definitiva realização.
Os santos acreditavam em Cristo, cujo reino, que “não era deste mundo”, tornava-se uma realidade neste mundo.
Cristo, a quem os santos lutavam por imitar, empreendeu Sua divina missão na terra como um homem entre homens; sofreu e morreu sob as leis deste mundo e, contudo, n'Ele as exigências éticas, o amor e a beleza do princípio divino lograram plena realização na terra. Foi isto que encorajou os santos, que começaram suas vidas como homens é mulheres comuns, a seguir a Cristo; que os convenceu de que seriam capazes de alcançá-Lo se tivessem o cuidado, em todas as suas andanças, de nunca perder de vista Suas pegadas.
O que os elevou ao estado de santidade foi o fato de haverem eles logrado êxito em desembaraçar-se de seus baixos começos e de suas ligações mundanas, em dominar sua fraqueza inata de atingir as derradeiras alturas da existência humana.
É esta tentativa da parte dos santos que constituía a grande mensagem que as vidas que eles viveram e os exemplos que deram continuarão a apresentar a todos os tempos. Suas lutas e seus problemas, seus pensamentos e atos, refutam o pessimismo cultural, corolário natural de todas as formas de descrença materialista. Sua mensagem de otimismo é a simples verdade que o homem não é um brinquedo nas mãos de forças cegas, que não está condenado para todo o sempre a sustentar “uma guerra fratricida de todos contra todos”, que não é o produto de condições materiais de produção e a vitima de irremediáveis males econômicos; que é uma criatura de Deus, um ser livre, o senhor e não o escravo de sua raça, de seu tempo e de seu meio, — que está destinado a viver sobre a terra até que o germe da perfeição divina que nele permanece possa crescer é tornar-se forte.
A mensagem dos começos humanos e dos feitos divinos dos santos é uma mensagem de consolação e de confiança.
Ao escritor francês Maurício Barrês certa vez perguntaram: “Para que servem os santos?” Respondeu: “Eles deleitam a alma!”
Dentre os vinte e cinco mil santos reconhecidos pela Igreja, cinco foram escolhidos para constar deste livro. São os cinco a quem a renúncia, a inteligência, o amor, a vontade e o êxtase habilitaram a dedicar-se a imitar a Cristo e a servir de guias no caminho para a perfeição humana.

R. F.M.
Croton-on-Hudson, setembro de 1945.

O autor agradece a Mrs. Steffi Kiesler, da Biblioteca Pública de Nova Iorque, e a Mrs, Catherine Clark por tudo o que fizeram a fim de auxiliá-lo na sua tarefa.

NOTA SOBRE RENÉ FULÓP-MILLER
Nasceu em 1891, na região Banat da Hungria, mais tarde cedida à Romênia. Seu pai era um emigrante alsaciano, sua mãe originária da Sérvia. A amplitude de seus backgrounds está em harmonia com a versatilidade de seu gênio. Como jornalista, editor e escritor criador, ele residiu em Viena, Paris, Budapeste, Moscou, Londres, Los Angeles, Nova Iorque e muitos outros lugares. Firmou seu nome de escritor com a obra The Mind and Face of Bolshevism e as biografias de Lenine e Gândi, Tolstói, Dostoiéuski e do Papa Leão XIII. Escreveu também livros sobre o teatro russo e americano, e sobre ciência médica — como, por exemplo, seu recente bestseller, O Triunfo sobre a Dor — e muitos outras assuntos de importância histórica e cultural.
Nos Estados Unidos, ele é mais conhecido como o autor de Rasputin, the Holy Devil e The Power and Secret of the Jesuits. Nestes livros, Fúlop-Miller revela as mesmas qualidades que avultam no presente volume da história dos santos: uma compreensão apaixonada, quase mística, dos problemas e experiências religiosas, aliada a um conhecimento claro e científico de todas as facetas da psicologia humana.
O homem que escreveu este livro foi discípulo dos famosos psiquiatras Babinski, Forel e Freud. Submeteu-se também, de livre e espontânea vontade, ao treinamento mental e espiritual dos “Exercícios” de Inácio de Loyola, e viveu como um eremita na curiosa república de monges na ilha grega de Matos, da qual retornou ao mundo — como pouquíssimos outros fizeram — para continuar sua carreira de grande escritor, abordando tópicos de eterno interesse humano.


SANTO AGOSTINHO
O SANTO DA INTELIGÊNCIA

NO TEMPO EM QUE MORREU S. ANTÃO, na idade de cento e cinco anos, no Monte Colzin, no deserto, S. Agostinho mal tinha ultrapassado à primeira infância. Nascido no ano 354, na pequena cidade de Tagasta, na parte oriental da província africana da Numídia, estava este santo destinado a exercer, por meio de suas obras teológicas e filosóficas, decisiva influência sobre o desenvolvimento cultural do mundo ocidental.
O extremo alvo perseguido por estes dois santos era o mesmo. Tanto Antão como Agostinho lutavam por aproximar-se de Deus. Mas os caminhos que seguiram para atingir o alvo comum eram basilarmente diversos. Todos os seus problemas, todas as suas lutas e experiências, todos os seus esforços e atitudes, suas vidas inteiras, tanto interna quanto externamente, foram diferentes, como o dia e a noite.
Antão atravessou os anos da sua primeira infância, quase exatamente um século antes de Agostinho, quase exatamente cem anos mais perto do tempo da vida de Cristo na terra. Antão cresceu no Egito, região cristã de antigas tradições religiosas, Agostinho, na Numídia, a moderna Argélia, colônia romana sem tradição.
A aldeia natal de Antão, Coma, estava localizada às margens do Nilo e sua existência inteira dependia dos benefícios do grande rio.
O lugar de nascimento de Agostinho, a cidade provincial de Tagasta, estava localizada no ponto de junção de várias estradas militares e devia sua prosperidade ao dinheiro que soldados e viajantes gastavam em seus bazares e banhos, em seus circos, teatros e outros lugares de diversão.

As primeiras impressões que Antão, a criança do Nilo, recebeu de seu meio foram inspiradas pela presença de Deus na natureza; para o menino citadino, Agostinho, as primeiras impressões estavam ligadas à busca mundana dos negócios e do prazer.
“Tende fé nas coisas eternas e renunciai às coisas passageiras”, era a mensagem do Nilo ao jovem Antão; e o deserto convidava-o, chamava-o: “Aqui onde o túmulo da ociosidade humana não tem lugar, vereis o Senhor face a face. Abandonai-vos à oração e sereis abençoado.”
“Tende fé nas coisas do momento e gozai-as para contentamento de vosso coração”, era a lição que o jovem Agostinho aprendia nas ruas de Tagasta. Os bazares e lugares de prazer seduziam-no: “Entrai! Aqui há prazer, aqui há alegria! Tudo quanto necessitais é de dinheiro, se quiserdes conhecer a delícia da vida.”
Quão diferente também era a atmosfera nos lares de seus pais e a primeira educação que moldou os caracteres desses dois santos.
Os pais de Antão eram coptas ortodoxos e todas as suas ações e reações eram determinadas pelas exigências de seu credo.
Os pais de Agostinho não partilhavam a mesma fé. Seu pai, Patrício, era pagão, e sua mãe, Mônica, cristã. Disputas dogmáticas foram a primeira impressão que Agostinho recebeu em assuntos de religião humana.
Disputas e falta de harmonia constituíam quase que inteiramente a primitiva e básica experiência que Agostinho teve na casa de seus pais. Patrício e Mônica, na realidade não viviam um com o outro, mas antes contra e separados um do outro.
O exemplo que o pai de Antão dava a seu filho era o de um lavrador industrioso. O pai de Agostinho era um funcionário inferior da administração provincial, descuidado e indolente. À família de Antão vivia sob a disciplina dum homem austero e de princípios puritanos. No caso de Agostinho, o chefe da família era um libertino sem princípios, que não levava muito a sério seus votos maritais.
Não eram apenas as relações de Patrício com Mônica que o tornavam um modelo extremamente desaconselhável para seu filho.
Seu caráter desigual, seu temperamento desenfreado, desqualificavam-no completamente para o papel de educador. Era complacente quando acontecia estar de bom humor, mas quando se achava nos transes de um de seus subitâneos acessos de cólera, repartia castigos sem razão ou discriminação. Sua violência irascível e sua arbitrariedade desarrazoada causavam mais duradora impressão sobre Agostinho que sua indulgência bem-humorada. Para Antão, a disciplina de seu pai significava guia e adestramento; para Agostinho, uma injustiça e um infortúnio. Antão admirava seu pai. Obedecia-lhe, amava-o. O pai de Agostinho só merecia de seu filho desprezo, temor, ódio.
A contenção de Mônica, que formava tão chocante contraste com o caráter de seu marido, só podia servir para intensificar a falta de respeito de Agostinho a seu pai Como devota cristã Mônica ensinava a seu filho que existe um Deus, todo justiça, todo bondade, a quem devemos considerar como nosso pai verdadeiro e que é a Ele, acima de todos os outros, que devemos obediência e respeito.
Quando o pai de Antão morreu, teve ele simplesmente de transferir seu amor, respeito e obediência, de seu procriador para o Criador.
Na mente juvenil de Agostinho, sua dupla dependência de seu pai na terra e do Pai celeste a princípio produziu apenas confusão, resultando disto rejeitar ele tanto a autoridade paterna de Patrício como a de Deus.
Na mocidade de Antão, a educação formal não desempenhou papel algum. Para o desenvolvimento de Agostinho foi de decisiva importância. Os primeiros anos na escola não foram, é verdade, de valor saliente para a inculcação de modelos morais e éticos na mente do jovem Agostinho. A vara era o símbolo da autoridade nas mãos dos professores e o progresso na leitura, na escrita, na aritmética e no bom procedimento era apressado pela aplicação de surras periódicas. Deste modo Agostinho veio a considerar a educação como sinônimo de coação e castigo. Suas lições e estudos eram um tormento penoso.
As primeiras recordações de Agostinho são pecados caracteristicamente pueris de comissão e omissão. Não gostava de estudar, escreveu ele nas Confissões. “Aquelas primeiras lições de leitura, escrita e aritmética, considerava-as eu uma grande carga e castigo, como o grego, mais tarde. Preferia muito mais brincar do que estudar. E por meio de inúmeras mentiras enganava meu preceptor, meus mestres, meus pais, a respeito de meu gosto pelo brinquedo, de minha avidez de ver espetáculos vãos e da impaciência em imitá-los.”
Para satisfazer esse irresistível anseio por jogos e diversões, Agostinho não recuava diante da trapaça e da falsidade. “No jogo”, admite ele, "buscava muitas vezes a luta desleal, sendo eu mesmo dominado, entretanto, pelo vão desejo da preeminência.” E seu desejo de ser vitorioso em todas as disputas era tão forte, que não podia suportar a ideia de ter de admitir derrotas e preferia antes fraudar que ceder. "Roubava igualmente da adega de meus pais”, escreveu ele, “para poder ter coisas que desse aos meninos que me vendiam o gosto de jogar comigo.”
Mônica tudo tentou para levar seu filho ao caminho direito.
Como devota cristã, enaltecia-lhe a glória de Deus e admoestava-o para que fosse constante na oração. Agostinho, contudo, só rezava quando estivera a fazer alguma travessura e desejava escapar ao castigo, Então rezava fervorosamente, “quebrando as cadeias de sua língua”, na esperança de que Deus o livrasse da cólera dos mais velhos. Quando suas faltas eram descobertas e o ardor de sua oração se verificava incapaz de escudá-lo contra a punição, imediatamente abandonava sua fé em Deus.
Embora Agostinho tivesse sido educado por sua mãe na fé cristã, não fora batizado. Era costume da época não administrar o batismo a crianças, mas apenas a adultos, bastante amadurecidos para apreciar a significação e responsabilidade do sacramento batismal.
Certa vez o menino Agostinho pediu para ser batizado. O motivo, porém, de desejar confessar sua fé em Deus não era menos egoísta do que a finalidade de suas anteriores orações. Tinha sido derrubado por um severo ataque de febre gástrica. Quando as dores se tornaram muito fortes, foi ele dominado pelo terror da morte. De repente lembrou-se de que sua mãe tinha louvado o Senhor, como o único auxílio no perigo e na dor, Pediu para ser batizado. Sua aflita mãe estava a ponto de satisfazer-lhe o pedido, quando ele recuperou a saúde, inesperadamente, de um dia para outro. Seu temor da morte passou e com ele... seus pensamentos de Deus.
O que Agostinho veio a ser mais tarde realizou-o em oposição ao que fora a princípio.
Isto é particularmente verdadeiro, se se considera seu desenvolvimento, além dos anos de infância, através de sua adolescência e primeiros tempos da virilidade até à época de sua mudança e conversão, Pois o mau menino cresceu para ser um rapaz dissipador e um homem inconstante e volúvel Apesar de todos seus desacordos, tanto o displicente pai de Agostinho como sua mãe, de espírito prático, eram de opinião que seu filho deveria seguir uma carreira proveitosa. Para ajudá-lo nisso, nenhum sacrifício seria demasiado grande para eles.
Patrício, a quem Agostinho descreveu como “um pobre cidadão de Tagasta”, vivia dum modesto rendimento e nada tinha em seu nome, à não ser uma casinha e uma vinha. Nunca estava livre de apertos financeiros, mas ainda assim cada vintém que podia poupar punha de parte para a educação de seu filho, a fim de assegurar-lhe um futuro de êxito e de prosperidade.

Na idade de treze anos foi Agostinho enviado à próxima cidade de Madauros, Na escola de lá teria de preparar-se para tornar-se professor de Retórica que naquele tempo era, do porto de visa financeiro, uma profissão bastante promissora.
Em Madauros, o preguiçoso aluno de Tagasta tornou-se de repente um esforçado jovem estudante. Contudo esta inesperada sede de saber confinou-se inteiramente aos valores intelectuais da tradição pagã. Em casa, havia Agostinho falado quase que exclusivamente o dialeto púnico da Numídia, mas agora sentiu-se cativado pelo brilhante encanto do latim, a linguagem da sociedade polida, é com ele pela rica tradição da literatura pagã de Roma. Foi particularmente impressionado por Virgílio, cuja influência pode ser vista no estilo de seus posteriores escritos em prosa. De modo que aconteceu que Agostinho, que iria ser um dos mais importantes autores da Igreja Cristã, recebeu sua primeira inspiração da literatura pagã.
Agostinho progrediu rapidamente em seus estudos. Mas no fim de dois anos, teve de voltar de Madauros a Tagasta porque seu pai não podia mais sustentá-lo nos estudos. O período de ociosidade que se seguiu, coincidente com toda a confusão e intranquilidade da puberdade, serviu somente para acentuar seus instintos mais baixos.
Criança e não mais criança, homem porém não inteiramente homem, neste período de transição entre duas fases de seu desenvolvimento sexual, a malignidade dum menino misturou-se turbulentamente com os excessos desenfreados dum rapaz. As más companhias que frequentava não deixavam tampouco de influir nele.
Como criança, havia saqueado a adega e a copa de seus pais, para poder subornar seus companheiros de joga. Agora ele furtava por encontrar estranho deleite no malfazer.
Encontra-se viva descrição disto nas Confissões de Agostinho. “Havia uma pereira perto de nossa vinha, carregada de frutos, que não eram tentadores nem pela cor, nem pelo gosto. Para roubar isto, alguns nossos companheiros perversos foram tarde da noite e tiraram pesadas cargas de peras, não para comê-las, mas para lançá-las, de fato, aos porcos. Era abominável aquilo, mas me aprazia. É uma vez que o prazer que eu sentia não estava nas peras, provinha ele da própria ofensa, que a companhia de camaradas pecadores ocasionava”
Foi nesse tempo que, como uma tempestade violenta, a herança da sensualidade africana paterna irrompeu nele. Patrício olhava para isso com alegria e orgulho. Mônica, com horror e medo.
O próprio Agostinho relata como ele e seu pai foram certa ver a um dos banhos romanos de Tagasta. Aqueles banhos públicos eram muitas vezes visitados em virtude de razões puramente sociais e não somente por pessoas que queriam fazer exercícios físicos ou tomar parte em jogos e disputas atléticas. Em certas seções, homens e mulheres podiam banhar-se juntos. Foi ali que Patrício teve a primeira prova da virilidade de seu filho. “O rapazinho está ficando um homem completo”, disse ele consigo mesmo, deleitadamente. E quando voltou para casa, falou com a mulher a respeito, meio divertido e meio orgulhoso, pois saboreava a ideia de ver-se cercado de todo um bando de netos. Mônica, porém, ficou profundamente aflita, pois reconhecia, instintivamente, que agora sua influência sobre o filho iria ficar cada vez mais reduzida. É, de fato, o período da puberdade marcou o tempo em que Agostinho se emancipou completamente da autoridade de sua mãe.
Com impiedosa autocrítica, admite Agostinho nas suas, Confissões as eróticas aberrações de sua adolescência; acusa-se de "corrução carnal” e lamenta que “as sarças de desejos impuros crescessem viçosas sobre minha cabeça e não houvesse mãos capazes de arrancá-las.” Tinha igualmente de censurar-se por ter “manchado a fonte da amizade com a imundície da concupiscência” e continuou a dizer: “Não respeitava a medida do amor, de espírito a espírito, brilhantes limites da amizade, não podendo discernir a clareza cristalina do amor do nevoeiro da luxúria. Ambos ferviam confusamente dentro de mim e impeliam minha inconstante juventude para o precipício de desejos ímpios e mergulhavam-na num abismo de perversidade. Naquele décimo sexto ano de idade de minha carne, a loucura da luxúria dominou-me e eu resignei-me inteiramente a ela”
Quando Mônica o intimava a desistir de sua conduta licenciosa, considerava-lhe as palavras como "tagarelice de mulher”. Escreveu ele: "Seguir-lhe os conselhos seria para mim uma vergonha, pois eu tinha vergonha de não ser sem-vergonha. Meus depravados companheiros poderiam rir-se de mim.” Igualá-los ou mesmo ultrapassá-los na depravação era naquele tempo sua maior ambição. Assim agia o homem que estava destinado a tornar-se o mais austero censor de si mesmo e dos outros, que iria seguir o rastro do mal até sua verdadeira fonte no pecado original e na corrução da humana grei.
Depois de um ano de grande economia e graças ao auxílio dum amigo rico, chamado Romaniano, Patrício conseguiu juntar o dinheiro necessário para que seu filho continuasse os estudos. Na idade de dezessete anos, Agostinho foi, assim, enviado para um curso adiantado na escola de Retórica de Cartago.

Naquele tempo era Cartago a metrópole da África e estava localizada nas vizinhanças da moderna Túnis. Para um moço do tipo de Agostinho, aquela grande cidade colonial, com sua população sensual e amante do prazer, era um paraíso e um sonho tornado realidade. Sua estada ali marcou o zênite de sua carreira de complacência, o nadir de sua moralidade, a mais impia estação ao longo de seu caminho para a santidade.
Cortesãs do Egito e volutuosas raparigas da Numídia passeavam convidativamente pelas ruas. Lugares de prazer ofereciam a perspectiva de orgias desregradas. E palhaços de toda espécie trombeteavam a promessa das mais cruas qualidades de diversão. À tentação do goso desenfreado da vida, que havia sido mantida em freio pelo provincianismo de Tagasta, achou liberdade na vulgaridade sem peias duma grande metrópole. “Segui para Cartago”, escreveu Agostinho nas Confissões, “onde ressoava aos meus ouvidos um referver de amores.” E depois explicou: “Eu não amava ainda, mas amava o amor. Buscava o que podia amar, em amor com o amor, odiava a minha própria segurança. Pois ardia por saciar-me com coisas baixas e ousava tornar-me de novo desregrado, com estes vários e tenebrosos amores. E a despeito de minha imoralidade desbriada, graças a uma excessiva vaidade, esforçava-me por ser elegante e cortês.”
Foi em Cartago também que Agostinho veio à sentir-se enfeitiçado pelo teatro. Não era apenas um espectador entusiasmado, que nunca perdia um espetáculo. Era escritor teatral e abrasava-o à ambição ardente de lograr fama como ator.
Contudo, o que o atraía para o palco não era tanto a arte do drama, mas antes a representação semi-sentimental, semicínica da vida social sem moralidade, com a qual ele mesmo se comprazia.
Cortesãs, libertinos, devassos, impostores, bobos e parasitas, alco-viteiros e proxenetas eram os heróis e heroínas; adultério, sedução de donzelas inocentes, traições de irmãos e amigos, desprezo pela ética e pela moral, e zombarias e chacotas aos deuses, eram os temas de todas aquelas peças.
Mais tarde $. Agostinho descreveu, de coração penitente, o efeito que o teatro tivera sobre ele na mocidade: “As peças de teatro arrebatavam-me, cheias de imagens de minhas misérias e de nova lenha para minha fogueira... Regozijava-me com amantes, quando eles gozavam um do outro corrutamente e participava de seus perniciosos prazeres, embora fossem estes imaginários e só se realizassem no palco. E quando um perdia o outro, entristecia-me com eles, como se aquilo houvesse realmente acontecido comigo.”
Às vezes o jovem amante do prazer lembrava-se da advertência de sua mãe para que não se esquecesse de Deus, e mais por causa dela do que por causa da salvação de sua alma, ia assistir, uma ou outra vez, à cerimônia religiosa. Mas durante a missa, o filho de Patrício tratava logo de descobrir alguma bela mulher, cuja cabeça, curvada em oração, e cujo rosto, cheio de solene reverência, ateasse seu desejo apaixonado. Durante as cerimônias sagradas, Agostinho mantinha-se a imaginar como poderia conseguir atrair a atenção da bela adorada, e enquanto os fiéis uniam suas vozes em orações, ele cochichava palavras sedutoras aos ouvidos da jovem ajoelhada a seu lado.
Finalmente cansou-se das constantes flutuações de suas “paixões tenebrosas” e decidiu formar uma daquelas uniões de mancebia, naquele tempo consideradas toleráveis, mesmo entre cristãos. Melânia era uma moça crisá das classes mais baixas, fato que pode explicar por que nunca legalizou ele suas relações com ela. Sua vida com ela, portanto, não era satisfatória apenas porque não fora consagrada pelo sacramento do matrimônio. Nenhuma relação profundamente humana podia ligar aquele homem àquela mulher, pois Agostinho não era feliz em seu amor, atormentava-o o ciúme e sofria por ser um escravo de sua concupiscência carnal. “Meu Deus Misericórdia”, exclamava ele, “quanto fel misturastes à minha concupiscência! Entrava às ocultas na prisão do gozo e era logo agrilhoado por cadeias de supervenientes amarguras, para que pudesse ser castigado com as barras de ferro ardente do ciúme e da suspeita, dos temores, das cóleras e querelas. Tornei-me experiente da diferença que existe entre a autocontenção do casamento ajustado e a troca de amor luxurioso.”
Depois de haverem vivido juntos um ano, a concubina de Agostinho deu à luz um menino. Deram-lhe o nome de Adeodato, dádiva de Deus. Patrício, porém, teve negada a alegria de ver seu neto.
Morreu no ano do nascimento de Adeodato. A pedido de Mônica, consentiu, no leito de morte, em receber o sacramento do batismo.
Agostinho contava agora dezoito anos de idade.
Como um pai duma família, que tinha a seu cargo uma mulher e uma criança, Agostinho estava ansioso por terminar seus estudos o mais depressa possível, a fim de poder ganhar a vida, ensinando Retórica. Estava bem qualificado para esta espécie de trabalho, pois tinha um dom natural de eloquência.
Aqui de novo o paradoxo característico da vida deste santo tornava-se evidente Tudo quanto fazia nos seus anos juvenis parecia levá-lo para longe de seu destino final, e até mesmo seu talento qualificava-o para tudo menos uma carreira de santidade.
De modo que seus esforços naquele tempo tenderam para aquisição de habilidade profissional que o capacitasse a destacar-se nos tribunais de justiça, onde sua tarefa deveria ser a de dar ao torto a aparência de direito. Esforçou-se por tornar-se um mestre numa arte "que atrai a glória para os astutos” e era fundamentalmente uma arte de enganar.
Quando afinal obteve o grau que lhe dava o direito de estabelecer-se como retórico diplomado, foi dominado pela cobiça da riqueza e do dinheiro. “Naqueles anos” escreveu ele, “ensinava Retórica, e, dominado pela cobiça, vendia a minha loquacidade àqueles que amavam a vaidade e buscavam a ilusão.”
Nesse tempo em que Agostinho estava ainda completamente emaranhado na sensualidade, na cupidez e em vãos empenhos, experimentou ele contudo, pela primeira vez, uma funda necessidade de introspecção. Foi isto ocasionado pela leitura dum livro, que o estadista e filósofo pagão Cicero tinha escrito, quase um século antes de Cristo.
Exigia-se a leitura de Cicero aos estudantes de Retórica, nos tempos de Agostinho. Três de suas obras tratam da arte retórica e discutem as regras que governam o uso mais eficiente dos planos e ardis da eloquência. À prosa de Cicero foi considerada um modelo de perfeição em estilo latino. Como ambicioso jovem, que desejava sobressair-se, Agostinho iniciou o estudo deste autor e indo além dos limites determinados, leu também Hortênsio, ensaio sobre o valor da Filosofia.
Este ensaio de Cicero não foi conservado e dele só conhecemos citações fragmentárias, Nele o famoso retórico Hortênsio mantinha aparentemente uma discussão com três filósofos, um dos quais era o próprio Cicero, Hortênsio falava em louvor da Retórica e dava-lhe valor muito mais alto do que a qualquer outra realização humana.
Os filósofos, porém, embora cada um representasse escolas diferentes de pensamentos, estavam de acordo em que o amor da sabedoria, que é à Filosofia, eleva o homem acima do nível da existência comum e proporciona-lhe incomparável superioridade e felicidade.
Esta obra causou duradoura impressão em Agostinho. “Pois, “como ele mesmo disse,—não para aguçar minha língua empreguei eu aquele livro, nem infundiu ele em mim seu estilo, mas sim seu assunto, Não como ele dizia, mas o que tinha ele a dizer, atraiu-me para seu lado.” Reconheceu subitamente a baixeza de sua vida e à vaidade das coisas que ele até então considerava seu alvo mais glorioso. “Este livro - escreveu ele - alterou minha mente e fez-me ter outros propósitos e desejos. Aspirava eu, com desejo incrivelmente ardente, por uma imortalidade de sabedoria.”
A impetuosa decisão de Agostinho de levar dali por diante uma vida de maior dignidade e mérito permaneceu, porém, como um piedoso desejo. Sua busca da verdade foi cedo de novo desviada pelo chamariz das vaidades mundanas.

A verdade das deduções filosóficas não podia levar a cabo uma transformação do ser interior de Agostinho. Para isto, seria preciso um choque mais poderoso, mais profundo e mais ativo. Contudo, à intranquilidade e a insatisfação que o Hortênsio de Cicero plantou na alma de Agostinho marcaram pelo menos o primeiro passo preparatório na sua conversão final.
Até aqui Agostinho havia sido um jovem leviano, que se abandonou completamente a seus instintos e anseios carnais. Mas agora estava ele de repente dividido em dois. Uma metade continuava na sua velha vida, enquanto que à outra olhava para ela com desprezo. Agostinho era empuxado para trás e para diante, entre suas naturais inclinações e suas aspirações espirituais. Sofria com este conflito em sua alma e vivia profundamente descontente consigo mesmo.
No seu desamparo, pegou da Bíblia que sua mãe Mônica lhe havia dado quando ele partira e que ela havia enaltecido como à fonte de toda sabedoria. A linguagem de Virgílio e de Cicero, porém, havia desenvolvido nele um gosto bastante exigente e o latim tosco da primeira tradução da Bíblia, a chamada Versão Itálica ou fala, era-lhe de todo desagradável. Além disso o conteúdo da Bíblia não podia atraí-lo. Havia algo de repulsivo em todas aquelas histórias, cujo significado simbólico lhe escapava, naquelas eternas exortações à castidade e à pureza, naquela insistência a respeito da humildade e da renúncia, que ele era incapaz de praticar, e a ameaça de que cada pecador acabaria no inferno.
“A Santa Bíblia é uma coisa de baixo acesso”, concluía ele. “Para nela penetrar seria preciso não ser maior do que uma criança, ou então curvar bem a cabeça e o pescoço.” E mais adiante, explicava: “Não era eu tal que pudesse entrar nela ou curvar meu pescoço.
Contudo necessário era o tornar-se pequeno. Mas eu desdenhava ser pequeno e, cheio de orgulho, considerava-me um grande.” Desta forma, ficou desapontado, e pôs a Bíblia à parte. Durante treze anos completos não haveria de abri-la de novo.
Começou a andar em busca de outra doutrina de salvação, que pudesse ajudá-lo à lançar uma ponte sobre o abismo entre sua vida tal como era e tal como deveria ter sido. Tentando caracterizar sua fútil procura, disse de si mesmo: “Naqueles anos era eu um espírito transviado. Por isso caía entre homens orgulhosamente cegos, excessivamente carnais e loquazes. Não obstante gritavam eles: Verdade!
Verdade!.... e falavam-me muito disto, mas a verdade não estava neles. Falavam e ensinavam falsidade.” Nestes termos falou o grande Padre da Igreja mais tarde a respeito da seita dos maniqueus, em cujas doutrinas havia outrora esperado encontrar a resposta à sua busca da verdade.
O fundador do maniqueísmo era um pintor persa, chamado Manes. Nascera pelo ano 215, depois de e acordo com sua doutrina, era ele a mais perfeita encarnação de Cristo, espécie de personificação do Espírito Santo. Ensinava uma estranha mistura de elementos tirados do dualismo místico da doutrina da luz e da treva de Zoroastro, de regras de conduta budistas, de profecias cristãs e especulações gnósticas.
Todos estes ingredientes heterogêneos, que um pensador claro e lógico jamais teria tentado combinar, misturavam-se uniformemente na imaginação artística do pintor Manes. Para seu espírito nada havia de estranho na justaposição de mitos cosmológicos com os mandamentos bíblicos e passagens de especulação filosófica. O resultado desta mistura colorida de elementos contraditórios era uma doutrina de salvação, que correspondia perfeitamente ao caráter contraditório da vida íntima do jovem Agostinho.
O dualismo maniqueísta, com seu princípio de luta perene entre os poderes da luz e da treva, exerceu a maior das atrações sobre Agostinho. De acordo com Manes, era uma luta que regredia ao começo dos tempos, quando o Deus Chefe se fracionou no Deus da retidão e da luz e em Seu adversário Satanás, representante da treva e do mal. O Universo inteiro tomou parte na luta - o mundo da matéria bem como o homem que foi formado de luz e treva - e constituiu um campo de batalha para as forças do bem e do mal,
Em tudo isto via Agostinho uma explicação da discórdia de sua alma, que lhe causava tantos e tão implacáveis sofrimentos. Além de que, - me isto era mesmo mais importante - Manes libertava-o da responsabilidade de todas as suas fraquezas e pecados. Suas mais elevadas aspirações correspondiam simplesmente à parte de luz de sua Alma é às coisas que o arrastavam para baixo eram culpa da treva que fazia parte de sua existência, como de todas as mais coisas do mundo.
A aplicação prática que os maniqueístas faziam de sua doutrina era igualmente bem adaptada ao estado mental de Agostinho naquela época. Manes rejeitava a “força brutal de mandamentos”, que Agostinho achara tão passível de objeções na Bíblia. Estava pronto a fazer concessões à inata fragilidade da natureza humana e dividia os fiéis em duas classes: os “escolhidos”, que eram obrigados a praticar a mais estrita penitência, e os “ouvintes”, de quem nada se esperava que pudesse ir além de suas forças. Tal doutrina de ética acomodatícia tornava possível ao mais fraco dos fracos obter a salvação de sua alma.
Como aderente ao maniqueísmo Agostinho voltou à sua cidade natal, planejando abrir uma escola para retóricos. Por natureza não era destituído de amor próprio. Voltava agora para casa com um diploma de retórico; havia-se distinguido entre seus companheiros, na grande cidade de Cartago e, acima de tudo, chegara com a convicção de que, como maniqueísta, mantinha o monopólio de todas as formas de verdade. Esta convicção veio a tornar-se nele arrogância chapada.
Um vaidoso professor de Retórica e um grande proselitista da verdade maniqueísta - eis o que era Agostinho quando se estabeleceu de novo em Tagasta. Sua conduta grave e a pretensiosa exibição de saber em tudo quanto dizia impressionavam muitos de seus conhecidos, que se haviam mostrado antes prontos a predizer o pior dos futuros para o filho de Patrício. Quase todos os seus antigos companheiros de classe tornaram-se agora seus alunos e muitos deles, que estavam prontos para receber o batismo cristão, fizeram-se maniqueístas, graças à sua influência. Não havia argumento que aquele retórico de inteligência aguda não pudesse refutar; não havia dúvida que o convicto advogado do maniqueísmo não fosse capaz de dissipar.
Todos de Tagasta prestavam-lhe homenagem! Todos menos uma única pessoa: Mônica! Como mãe amorável havia-lhe perdoado todos os pecados da juventude. Mas agora, quando seu filho se pavoneava pela sua cidade natal, como arrogante apóstolo da heresia de Manes, seu zelo cristão prevalecia sobre seu amor materno. Quando Agostinho chegou tão longe, a ponto de tentar convertê-la à sua doutrina, sua paciência esgotou-se e mostrou-lhe ela a porta da rua.
Agostinho foi obrigado a mudar-se para a casa de seu rico protetor Romaniano.
Todos em Tagasa ouviam as conferências de seu famoso filho, mas Mônica permanecia em casa, afligindo-se por conta daquele filho transviado. No seu desespero, foi a Madauros, a mais próxima sede episcopal, e, em pranto, implorou do bispo um conselho que lhe indicasse a maneira de reconduzir seu tresmalhado filho ao caminho direito da verdadeira fé. O velho bispo ouviu-lhe os lamentos e, tentando consolá-a, disse-lhe: “Volte para casa, e Deus a abençoe, pois não é possível que o filho de tais prantos venha a perecer: Mônica tomou estas palavras como uma profecia. E, na verdade, embora a princípio duma maneira quase imperceptível sua realização começou a efetuar-se pouco depois disso.
O acontecimento que colocou Agostinho na predestinada estrada que o afastaria da heresia maniqueísta foi um choque espiritual: a dolorosa perda de seu amigo favorito, que havia brincado e ido à escola com ele e que o havia acompanhado também nas suas aberrações maniqueístas. “De verdadeira fé cristã”, confessou Agostinho, “havia-o eu desviado para aquelas fábulas perniciosas e supersticiosas, por causa das quais minha mãe tanto me lamentava. Comigo ele agora pecava em espírito, nem podia minha alma estar sem ele.”
Um dia este amigo caiu gravemente enfermo. Durante uma crise, enquanto parecia estar semiconsciente apenas do que se passava em redor dele, recebeu o batismo cristão. Pouco depois seu estado melhorou.
“Tão logo pude falar com ele”, relata Agostinho nas suas Confissões, “(e pude fazê-lo tão logo esteve ele em condições, pois raramente deixava-o, dada a extrema afeição que nos ligava) tentei brincar com ele a respeito daquele batismo que recebera; enquanto se achava semi-inconsciente, Mas ele recuou tremendo de mim, como de um inimigo, e ordenou-me, se quisesse continuar seu amigo, que evitasse tal linguagem. Fiquei desanimado, mas não disse nada, pois desejava esperar até que ele recuperasse inteiramente a saúde. Poucos dias mais tarde, na minha ausência, foi ele atacado de novo pela febre e morreu.”
A perda de seu amigo mergulhou Agostinho num “delírio de dor” Com subitaneidade de relâmpago, percebeu a terrível verdade: que uma pessoa a quem a gente amou pode morrer, que a vida é efêmera. “Sentia que minha alma e a alma dele eram uma só alma em dois corpos. E em consequência, minha vida tornou-se para mim um horror, porque eu não poderia viver dividido.”
Até aqui o jovem Agostinho havia vivido para os prazeres da vida, mas agora, pela primeira vez, graças ao pesar que o dominou, quando seu mais querido amigo foi-lhe arrebatado, experimentava a verdadeira essência do sofrimento. Com a fúria de uma força elementar, a dor cravou suas garras em sua alma, privou-o, ao fanático apóstolo da heresia, de toda a sua dogmática confiança e deixou-o devastado e na mais extrema confusão.
“Diante deste pesar”, escreveu ele, “meu coração entenebreceu-se de todo: tudo quanto via diante de mim era morte. Meu país natal era um tormento para mim, e a casa de meu pai uma estranha infelicidade; tudo quanto havia eu partilhado com meu querido amigo tornou-se tortura insuportável sem ele. Meus olhos buscavam-no por toda parte, mas não lhes era concedida a graça de vê-lo; odiava todos os lugares, porque neles eu não o via.”
“Agostinho abandonou sua profissão de professor em Tagasta. Fugiu para Cartago e buscou alívio nas turbulentas distrações da grande cidade, Mas não encontrou. “Para onde”, perguntava ele, “fugiria meu coração de meu coração? Para onde fugiria eu de mim mesmo? Para onde não acompanhar a mim mesmo?”
A violência de sua dor ensinou a Agostinho uma verdade que até então nunca lhe havia entrado na mente: a verdade de que há no homem alguma coisa que a simples razão não pode apreender, um ego inconsciente, possuído de tal poder, que pode dar em terra dum só golpe com todas as conclusões da razão, com todas as aspirações e com toda a segurança laboriosamente adquirida.
Cheio de confusão e de extremo desespero, encarava ele este fenômeno do poder desconhecido de seu próprio eu, de sua própria alma. “Eu então tornei-me um grande enigma para mim mesmo”, escreveu ele. “E perguntava à minha alma por que estava ela tão triste, mas não sabia ela o que responder-me.
Durante algum tempo, procurou encontrar lenitivo nos ensinamentos de Manes. O maniqueísmo, porém, este sistema de pensamento em que todo o Universo, da matéria a Deus, era explicado, que tinha uma resposta para cada pergunta, uma réplica para cada argumento, fracassou miseravelmente em face do fenômeno vivo duma alma humana em desespero, não conhecia explicação alguma para o mistério do ego e do ser, nem consolação para a inexprimível tristeza causada pela morte dum amigo muito amado.
O tempo abrandou o pesar de Agostinho; mas a questão que havia surgido permanecia sem resposta. O enigma que ele viera à ser para si mesmo exigia uma solução. Seu próprio eu era agora o problema fundamental de todos os seus pensamentos e esforços.
Seu pensamento inquieto começou a lançar vistas para outros sistemas, em busca duma solução para o problema que lhe não dava sossego. Mergulhou no estudo dos mais diversos sistemas da filosofia antiga. Não encontrava aquilo que havia decidido encontrar, mas no correr de seus estudos cruzou com várias ideias novas e deduções lógicas, que serviram para abalar sua fé na resistência de boa quantidade dos princípios maniqueístas.
Aconteceu que, justamente naquela ocasião, o famoso bispo maniqueísta Fausto fosse a Cartago, realizando um giro de conferências. Agostinho esperava que uma discussão com Fausto esclarecesse as contradições que ameaçavam minar sua fé maniqueísta.
Fausto era um retórico confiante em si mesmo, de grande habilidade, enquanto podia acompanhar sua própria linha de pensamento, mas a impaciência apaixonada das indagações de Agostinho causou-lhe não pequenos embaraços. Sentiu-se atenazado por aquele jovem, com sua insaciável sede de saber e seus desconcertantes “se” e “mas”, e finalmente teve de admitir que não podia responder às perguntas apresentadas, porque a doutrina de Manes não tinha respostas para elas.
“Pelo que todos os meus esforços tendentes a progredir naquela seita chegaram definitivamente a cabo”, escreveu Agostinho depois desta entrevista altamente insatisfatória. Tinha Agostinho naquela ocasião vinte e nove anos de idade.
Começou nova fase em seu desenvolvimento. Voltou aos ensinamentos da Academia, que naquele tempo tinha atingido um estágio de completo ceticismo. Os Acadêmicos eram herdeiros espirituais dos velhos cínicos, que haviam afirmado que se devia duvidar de todas as coisas e que a mente humana é incapaz de apreender a verdade. Negavam que uma doutrina filosófica ou um sistema de crenças pudesse estar de posse da chave do saber verdadeiro.
Agostinho havia abandonado a ideia de descobrir um apoio espiritual em qualquer dos sistemas estabelecidos de pensamento. Nada tinha sobre que assentar senão seu próprio pensamento. Como cético, tinha que voltar ao seu próprio eu como base de todas as suas deduções. E como começasse a analisar seu próprio ser, logo descobriu em si mesmo a fonte do bem e do mal, que tinha tentado descobrir com tão apaixonado zelo.
Enquanto tinha acreditado na doutrina dualística de Manes, de acordo com a qual o mal é obra de um deus das trevas, Agostinho havia raciocinado, como e mesmo se expressou, que “não somos nós que pecamos, mas alguma força estranha dentro de nós. Minha arrogância rejubilava-se com estar livre de culpa. Preferia desculpar-me e acusar alguma outra coisa. E justamente este era meu incurável pecado, o pensar que eu não era um pecador. Mas agora verificava que, na verdade, era eu, somente eu quem pecava.”
Isto, contudo, foi apenas um primeiro passo, O que se seguiu foi a comprovação de que a livre escolha da vontade do homem torna-o um agente independente, na decisão entre o bem e o mal.
“O que me ergueu até a luz”, escreveu Agostinho, “foi saber muito bem que tinha uma vontade livre, como sabia que vivia. De modo que, quando eu queria ou não queria uma coisa, estava bastante certo de que nenhum outro, senão eu mesmo, queria ou não queria, e verificava sempre mais claramente que ali estava a causa do pecado.
conhecimento de que a origem do bem e do mal jaz na alma humana era o começo do que chamamos consciência. No desenvolvimento de Agostinho marcou o passo mais importante para diante.
Em completo contraste com $. Antão, para quem o bem e o mal eram forças externas que assumiam a forma de anjos e demônios, Agostinho sabia agora que tanto o bem como o mal, tanto o certo como o errado, tinham suas raízes no próprio homem. No caso de Antão, a luta contra o poder das trevas tinha lugar em túmulos e cavernas, — no caso de Agostinho, no reino invisível da alma humana. Antão combatia o mal exorcizando o demônio; a arma de Agostinho eram a sabedoria e o conhecimento!
Nem um século separava os dois santos. E contudo, que tremenda mudança se operava na luta do homem pela perfeição! O que parecera ser um problema no mundo exterior, era agora um problema na própria alma do homem.
Nos primeiros séculos da era cristã, as tendências espirituais eram largamente determinadas pelo pensamento e pelos atos dos santos.
A transição de Antão para Agostinho significa assim uma transição definitiva na história espiritual do Ocidente: dum estado de inconsciência a alma humana havia despertado para a plena certeza de sua própria realidade.
A vida de S. Antão - a despeito de seu estranho cenário de cavernas e túmulos do deserto, a despeito de aparições demoníacas e excessivo ascetismo-apresenta-se com contornos perfeitamente claros ao pensamento moderno. À vida de S. Agostinho, por outro lado, permanece estranhamente problemática, embora seu ambiente seja muito mais familiar e embora suas dificuldades e complicações sejam duma espécie tão geralmente humana. O curso da vida de Agostinho é marcado por insolúveis contradições. Seus acontecimentos exteriores são uma série de incompatibilidades, aparentemente sem objetivo. Contudo, o fato que exerce a mais completa pressão sobre a confusão da carteira de Agostinho é a natureza extraordinária de seu desenvolvimento mental, que se ergue em claro contraste com suas experiências e sua conduta, nisto que segue uma linha perfeitamente reta e clara, que o leva-a despeito de ocasionais passos em falso-aos mais altos picos do pensamento humano.
Aos trinta e três anos de idade, o desenvolvimento mental de Agostinho e sua vida exterior progrediram em dois planos diferentes, que nada tinham em comum. Seu pensamento acompanhava sua tendência para o alto, como se estivesse plenamente certo de seu objetivo final e, durante todo este tempo, os acontecimentos externos de sua carreira moviam-se ao longo da linha sinuosa da mais baixa mediocridade. Embora no curso de seu desenvolvimento espiritual alcançasse as mais decisivas conclusões de ética e moralidade, sua própria vida, sua conduta e suas ações permaneciam totalmente livres de sua influência. Durante décadas a alma indagadora de Agostinho, e Agostinho, o vanglorioso retórico, viveram como dois seres separados sem interesse um pelo outro ou mesmo em declarada hostilidade.
Depois de sua conversação com Fausto, Agostinho reconheceu que o maniqueísmo era uma ilusão fútil. Contudo, não tirou consequências deste conhecimento para suas próprias ações. Durante anos continuou como membro da seita dos maniqueus. Comparecia às suas reuniões, utilizava-se de seus amigos maniqueus, quando podiam servir-lhe de auxílio na sua carreira.
Encorajado pelos seus amigos maniqueus, que lhe podiam fornecer excelentes cartas de apresentação, decidiu ele agora deixar a Africa e tentar a sorte na capital do império. O maior obstáculo à atravessar-se no caminho deste plano era Mônica, a mãe de Agostinho, cujos temores pelo seu filho transviado tinham-na feito acompanhá-lo a Cartago. Quando soube de sua decisão, implorou-lhe que ficasse com ela em Cartago, pois não podia suportar à ideia de que, na distante Roma, pudesse ele viver inteiramente fora da sua influência materna.
Indiferente a suas lágrimas e a seu desespero, Agostinho resolveu enganá-la. Na noite de sua partida, ela acompanhou-o até ao porto, mas ele garantiu-lhe que tinha de ir a bordo somente a fim de despedir-se de um amigo que partia para Roma. Conseguiu convencê-la de que deveria esperar por ele na igreja de S. Cipriano, ali perto. Passou ela a noite ali em oração, esperando desesperadamente por seu filho, cujo navio, enquanto isso, havia deixado a África, dirigindo-se, a toda a força das velas, para o continente europeu. Pela manhã Mônica deixou a igreja e seguiu para o porto para verificar quão cruelmente a havia seu filho iludido.
Em Roma a caça de fortuna por Agostinho continuou, em condições mudadas, mas sem maior êxito. Suas altas esperanças, por causa das quais havia enganado sua mãe, não se realizaram. Toda a sua aventura em Roma permanecia sob o signo duma má estrela. Pouco depois de sua chegada, caiu doente dum mal que parece ter sido uma espécie de malária. Durante semanas, bordejou entre a vida e a morte, Desamparado e sem meios financeiros, ficou sob a completa dependência da caridade dum maniqueu, que o havia recebido como confrade de sua seita religiosa. Depois de haver recuperado a saúde, Agostinho abriu uma escola de Retórica, mas foi um completo fracasso. Conseguiu matricular numerosos estudantes, mas quando chegou a hora do pagamento, todos haviam desaparecido.
Naquele tempo era Roma uma cidade rica. As ruas estavam orladas de palácios de mármore e um portão dourado se erguia junto ao outro. Agostinho, porém, professor de Retórica, vivia nos bairros pobres, perto do monte Aventino.
Depois de bem pouco tempo, começou a pensar ele de novo em mudar-se para alguma parte. Pensou em Milão, como o campo mais promissor para seu trabalho. Roma, na verdade, era a capital do império, mas o ponto focal da vida social do Ocidente era Milão, pois era ali que o imperador tinha sua residência.
Inesperadamente circunstâncias favoráveis tornaram possível a Agostinho realizar seu plano, mais cedo do que tinha esperado.
Aconteceu que o prefeito romano Símaco, chefe de poderosa facção pagã, tivesse chegado da corte em Milão, com ordem de procurar cm Roma um bom retórico, qualificado para assumir o magistério da Retórica na residência imperial.

Quão pouco estivessem os protetores maniqueístas de Agostinho cientes de sua apostasia íntima, pode-se deduzir do fato de terem feito pesar toda a sua influência sobre Símaco, para induzi-lo a dar o lugar em Milão a seu correligionário de Tagasta.
Símaco, chefe do partido pagão, mostrava boa disposição em favor de todas as seitas anticristãs. Mandou chamar o jovem retórico e ficou tão impressionado e satisfeito com sua familiaridade com a literatura pagã, que o despachou imediatamente para Milão, com as mais calorosas recomendações e à custa do Estado.
Como protegido do prefeito romano, foi Agostinho recebido de braços abertos pela alta sociedade e cordialmente acolhido na corte imperial. Milão parecia realmente abrir para ele a gloriosa carreira que há muito vinha sonhando.
Referindo-se a este período de sua vida, escreveu Agostinho em suas Confissões: “Minha miserável e pecaminosa juventude tinha passado e entrei na maturidade, contudo, quanto mais longe avançava em anos, maior se tornava minha vergonhosa nulidade.”
Mas era ali em Milão que a conversão de Agostinho ao Cristianismo iria por fim realizar-se. Foi em Milão que recebeu o batismo cristão de S. Ambrósio, bispo daquela diocese.
Os nomes de S. Agostinho e de S. Ambrósio estavam destinados a brilhar na História como os nomes dos primeiros grandes “Doutores da Igreja”. Seu primeiro encontro, contudo, foi inteiramente frio e impessoal.
O motivo que induziu Agostinho a visitar Ambrósio não foi de modo algum seu interesse pelos ensinamentos cristãos, mas antes a tentativa de estabelecer-se nas boas graças do mais poderoso homem de Milão, se não de todo o império do Ocidente. Ambrósio, primeiro homem de Estado entre os bispos do Ocidente cristão, tinha sido, desde o começo do governo de Graciano, o conselheiro dos imperadores cristãos e ocupado a posição mais influente na corte de Milão.
O bispo recebeu seu visitante com cordialidade e benevolência.
Mas a cordialidade e a benevolência eram simples manifestações da natureza de Ambrósio. Seu gabinete episcopal era acessível a todos.
Quem quer que tivesse um pedido a fazer podia entrar sem ser anunciado. Por mais opressiva que pudesse ser a carga de seu trabalho, este dignitário da Igreja sempre achava tempo para ouvir os pedidos e queixas de seus numerosos visitantes, No caso de Agostinho deixou transparecer, contudo, certa reserva inconfundível. Esse inquieto jovem africano, que chegara como protegido do chefe pagão Simaco, e que, além do mais, tinha reputação de ser maniqueu, não impressionou muito favoravelmente o bispo. Quando as visitas de Agostinho se foram tornando mais e mais frequentes, veio a considerá-las mesmo como uma grande maçada. As vezes, quando Agostinho entrava, estava o bispo absorvido na sua leitura. Então não permitia a si mesmo qualquer interrupção e continuava o que estava fazendo, sem dar a menor atenção ao seu visitante. Agostinho ficava por ali, no maior embaraço. Tentava dizer alguma coisa, mas nada havia que o encorajasse. Ambrósio nem mesmo a vista erguia e por fim Agostinho ia saindo à sorrelfa, sem que parecesse ter sido pelo menos notado.
A despeito da frieza de Ambrósio, Agostinho sentia-se cada vez mais fortemente atraído pelo santo bispo. Era o romano típico que em Ambrósio o fascinava, pois durante toda a sua carreira, que o tirara do posto de prefeito consular para fazê-lo pastor da Cristandade, Ambrósio tinha mantido a atitude imponente, a liberdade e a segurança natural de um romano de nobre estirpe. Nada podia ter impressionado mais profundamente o inquieto e desordenado jovem africano do que o equilíbrio sereno daquele patrício.
"Comecei a gostar dele”, escreveu Agostinho, referindo-se a Ambrósio, “a princípio, não como mestre da verdade, pois naquele tempo não procurava eu a verdade na Igreja”. Encarava o bispo como um ideal digno de emulação. Só uma coisa o espantava. O fato de levar Ambrósio vida de celibatário chocava-o, escreveu ele, como um “método penoso”.
Todos os domingos, Ambrósio pregava um sermão na basílica de Milão. Sua reputação e o poder de sua eloquência faziam daqueles sermões um dos acontecimentos importantes na vida da cidade. To- dos os domingos ia Agostinho ouvir a prédica do bispo. Ambrósio falava como um bispo cristão, mas a clareza de seu pensamento e à precisão de sua linguagem demonstravam que seguira ele a escola de Cícero, Teofrasto e de todos os outros grandes escritores da antiguidade eclesiástica. Como poucos outros, dominava ele os recursos retóricos da descrição realística, da interpretação alegórica e mesmo da sátira cáustica.
“Eu escutava avidamente”, explicou Agostinho, “não com a veneração que lhe devia, mas simplesmente para julgar-lhe a eloquência. E assim abeberava-me no seu modo de expressão, mas não prestava atenção ao que ele dizia e até mesmo não ligava importância aquilo. Mas afinal, juntamente com as palavras que mergulhavam em mim, penetraram em meu pensamento seu conteúdo e seu significado”. Suá experiência foi de novo a que tinha sido no caso do Hortênsio de Cicero. A beleza formal induziu-o a prestar atenção também ao significado que ela continha.
Na interpretação de Ambrósio, as mais contraditórias passagens da Bíblia impressionavam tão clara e belamente Agostinho, porque aprendera a tomá-las, não literalmente, mas a apreender-lhes a verdade alegórica.
E contudo disse, referindo-se à este período, que a verdade cristã “estava dentro e eu fora. Estava para além do espaço, mas eu ainda me aferrava a coisas no espaço. E assim as coisas mais baixas erguiam-se acima de mim e arrastavam-me para baixo”.
Antes de ir pra Milão, Agostinho havia devotado toda a sua vida à vaidade, à ambição e ao prazer. Agora, quando a fama e o sucesso pareciam estardefinitivamente dentro de seu alcance, perdeu todo o constrangimento e senso da vergonha. Lisonjeava quem quer que tivesse ele razão de considerar um patrono de influência em potencial, Como retórico, produzia panegíricos de encomenda e misturava o direito e o torto, com grande habilidade, para servir aos objetivos de seus clientes.
“Tinha agora rendas belamente gordas. Todavia não estava sozinho em companhia de sua concubina e de seu filho Adeodato. Também moravam com ele sua mãe Mônica e seu irmão mais moço, Navígio. De modo que tinha a seu cargo cinco pessoas e isto, juntamente com suas pomposas ambições sociais, requeria boa quantidade de dinheiro.
Cada menor ou maior êxito acrescentava combustível à sua ardente ambição. Sonhava com uma grande fortuna e posição influente.
Aquilo a que aspirava era nada menos do que o lugar de juíz presidente em Milão, com honorários suficientes para lhe permitirem a aquisição e manutenção duma grande propriedade no campo.
Para facilitar sua carreira pensou que seria desejável o casamento com uma moça duma família rica e nobre. O único obstáculo no caminho de tal plano era a presença de sua concubina, moça de parentesco pobre e baixo. Tinha sido companheira fiel dele durante mais de dezesseis anos, tinha lhe dado um filho, mas agora, aguilhoado pela sua desordenada ambição, despachou-a simplesmente de volta à sua casa na África, não lhe consentindo nem mesmo a consolação da companhia do filho. Pouco tempo depois, tratou casamento com uma moça de uma das melhores famílias de Milão.
Tinha razão para esperar dela um belo dote.
A moça tinha apenas doze anos de idade e a cerimônia nupcial teria de ser adiada por dois anos, Desde, porém, como confessava ele a seus amigos, que era incapaz de passar uma noite que fosse sem mulher, tomou outra amante imediatamente depois da partida de Melânia.
Era agora o mais procurado retórico de Milão e, no tempo devido, a mais alta honra lhe seria concedida. O camareiro-mor, de acordo com o chefe do exército, encarregou-o de escrever o panegírico do Imperador Valentiniano II, no dia do seu décimo terceiro aniversário, o qual deveria ele ler em pessoa, como parte dum programa de cerimônias na corte. Agostinho sabia, tão bem como qualquer outra pessoa do império, que o jovem imperador era um rapazola totalmente insignificante, mero boneco nas mãos de sua dominadora mãe Justina. Mas isto não era bastante para impedi-lo de compor um elogio magistral.
Sentiu-se completamente delirante de orgulho e deleite. Contudo sua exuberância foi interrompida, por um breve instante, por uma experiência séria e bastante significativa: o espetáculo de outro ser humano em estado de embriaguez. Acompanhado de seus amigos, estava ele a caminho do paládo imperial, onde iria pronunciar seu discurso, quando encontrou, em uma viela escusa, um mendigo inteiramente bêbado e que, na sua embriaguez, parecia estar gozando da mais completa satisfação. Agostinho parou um instante e observando a louca conduta do feliz mendigo, disse a seus amigos: “Olhem para ele e vejam como se rejubila descuidadamente. Não queremos nós somente atingir aquele completo regozijo a que chegou antes de nós aquele mendigo? E talvez jamais o alcancemos, pois o que ele obteve, graças a umas poucas moedas mendigadas, eu mesmo estou planejando lograr, por meio de rodeios e meandros bastante enfadonhos. Decerto sou mais instruído do que ele, mas o saber não me proporciona a alegria que ele descobre no vinho, e que faço eu com meu saber? Utilizo-me dele para instruir os homens ou simplesmente para agradar aos poderosos e às multidões, para ganhar dinheiro e honrarias extremamente tolas? Mesmo agora estou publicamente a caminho de aparecer como elogiador pago.
Esta mesma noite curtirá o mendigo à sua bebedeira e despertará de cabeça clara. Eu, porém, bêbedo de vanglórias, irei dormir com ela e levantar-me ei com ela dias seguidos.”
Que pungente auto-análise! Contudo exauriu-se nesta tirada dirigida a seus amigos e não excedeu a duração dum momento. Agostinho não voltou para trás. Caminhou diretamente para o palácio e principiou seu elogio, “cheio de mentiras, de modo que o mentiroso pudesse conquistar o favor daqueles que lhe conheciam as mentiras.
Assim continuaram as coisas, durante muito tempo. Com sua inteligência, reconhecia Agostinho a sombria vileza de sua vida mas a despeito deste conhecimento não interrompia sua existência vã e inútil, “Muitas vezes”, escreveu ele mais tarde, a respeito dessa época, “presava atenção ao que me havia eu tornado e descobria que estava num mau caminho, Isto entristecia meu coração, mas apenas me faria redobrar minha iniquidade e minha vergonha.”
E contudo, afinal, conseguiu erguer-se das profundezas da iniquidade e da vergonha aos píncaros da glória e da perfeição. À introspecção, o conhecimento da sua própria alma, levaram-no ao conhecimento da existência inteira e elevaram-no, não apenas ao plano da santidade, mas fizeram dele um dos mais importantes pensadores do mundo ocidental. Antão, seu ascético precursor, atingiu a santidade por meio da renúncia; Agostinho alcançava por meio da força de sua inteligência. No caso de Antão, Deus revelou-se a uma alma forte na fé; no caso de Agostinho, Ele finalmente respondeu à busca de um homem que estivera a buscá-Lo, muito tempo antes de conhecê-lo ou mesmo de encontrar a entrada que conduz a Seu reino.
Porque Agostinho, o “mercador de palavras”, o desenfreado caçador de fortuna de Milão, estava possuído do mais profundo e do mais incorrutível poder de introspecção. Sua profunda perspicácia estivera demasiadas vezes e por demasiado tempo escravizada pelos mais baixos instintos de sua natureza, mas a despeito de tudo isto a busca apaixonada da verdadeira compreensão persistia, intata e impávida, no seu espírito. E mesmo mais do que isto! Sua paixão pelo entendimento tirava forças de seus fracassos e da fragilidade de sua natureza física. A força misteriosa que podia induzir Agostinho à agir mal, em face do que ele sabia ser melhor, tornou-se para ele um, problema que, jamais lhe daria novamente sossego.
“Já sabia”, escreveu ele, “que temos a liberdade de escolha entre o bem e o mal”, e continuava a descrever a desesperada luta que tinha de travar dentro de sua alma. “Procurando arrancar a vista do espírito daquele poço, era eu nele mergulhado de novo, e quantas vezes mais o tentasse, outras tantas nele seria de novo mergulhado. Mas quando me erguia altivamente, as coisas inferiores estavam colocadas acima de mim e exerciam pressão sobre mim e em parte alguma havia alívio ou espaço para respirar. Acometiam minha vista por todos os lados, em multidões e hordas, e, em pensamento, as imagens de corpos intrometiam-se, quando eu me estava voltando para Ti, como se me quisessem dizer: “Para onde vais, indigna e baixa criatura? E estas coisas haviam brotado de meu pensamento. E isto me erguia para Tua luz, que eu conhecia tão ter uma vontade, quanto ter vida. Quando, portanto, estava querendo ou não querendo fazer alguma coisa, estava eu mais do que certo de que não era ninguém, senão eu mesmo, quem estava querendo e não querendo; mas daquilo que eu fazia contra a minha vontade, estava eu igualmente certo, sofria antes de fazê-lo e julgava que não seria falta minha, porém meu castigo, e rapidamente confessava a mim mesmo que a minha punição não seria injusta. Mas dizia de novo: “Donde me vem esta vontade de fazer o mal e esta recusa de fazer o bem? Quem pós isto dentro de mim e plantou em mim a raiz da amargura?” Com estas reflexões era eu de novo derrubado e sufocado.”
Os amigos de Agostinho desempenharam papel decisivo no seu desenvolvimento. O pesar, que a perda dum amigo querido lhe causara, fora o ponto de partida de sua introspecção. Agora de novo uma experiência, na qual amigos seus desempenharam à parte principal, capacitou-o a alargar seu conhecimento da própria alma e a avançar na direção duma forma mais alta de sabedoria, Porque na troca de ideias com seus amigos, Agostinho veio à reconhecer que o problema da origem do mal, que tanto o preocupava, era um problema da humanidade em geral, o maior problema humano de todos os tempos.

"Vivíamos juntos como amigos e muitas vezes tínhamos ocasião de trocar nossas sombrias ideias sobre a origem do mal”, escreveu Agostinho, referindo-se, em particular, a seus companheiros Alípio e Nebrídio, Estes dois tinham-lhe sido fiéis, desde o começo de sua carreira. Alípio juntara-se a ele em Tagasta e Nebrídio em Cartago.
Sua superioridade intelectual havia-os fascinado a tal ponto que o haviamacompanhado em todas as coisas, através de todos os seus erros tortuosos, até suas mais recentes análises éticas. Cada palavra de seu ídolo tinha para eles o valor duma revelação. Contudo, enquanto Agostinho parecia ficar satisfeito com a simples detenção intelectual da solução de seus problemas eles, por sua parte, faziam o melhor que podiam para adotar-lhe a sabedoria, como modelo para suas ações e conduta na vida quotidiana. Este procedimento deles mostrava a Agostinho o vasto abismo que separa o saber do homem de sua conduta. Aqui via ele dois jovens que tentavam ser bons e fazer bem no máximo de suas possibilidades e que, não obstante, vacilavam e eram de vez em quando remergulhados no mal.
Algo que aconteceu à Alípio mostrou a Agostinho, com cegante claridade, de que é capaz a força do mal. Alípio fora um apaixonado apreciador do circo. Seu maior deleite tinham sido as lutas de gladiadores, Mas agora, sob a influência de Agostinho, tentou combater sua paixão pelo circo e evitava tudo quanto pudesse reacendê-la de novo na sua alma. Depois um dia sucedeu, como descreveu Agostinho o acontecimento em suas Confissões, “que Alípio encontrou por acaso certos conhecidos seus e companheiros de estudos que voltavam dum jantar. E eles com familiar violência levaram-no, apesar de sua recusa e de sua resistência, para o anfiteatro, durante o desenrolar daqueles mortíferos entretenimentos. Repetidas vezes protestava ele “Embora arrastem vocês meu corpo para ali e ali me sentem, não podem forçar-me a voltar a vista ou o pensamento para aqueles horrores. Estarei pois ausente, ainda que presente em corpo, e assim triunfarei tanto de vocês como deles.” Ouvindo isto, carregaram-no não obstante para lá. Mas ele, fechando os olhos, impedia que seu espírito escapasse... e bom seria que tivesse também tapado os ouvidos, pois quando na luta alguém caiu, um estrondoso clamor da multidão abalou-o tão fortemente que, dominado pela curiosidade, abriu os olhos E tão logo viu aquele sangue, imediatamente embriagou-se de ferocidade, não se voltou, mas fixou os olhos nele, estremeceu repentinamente, e sentiu-se deleitado com a execrável luta, embriagado pela sangrenta diversão.”
Descrevendo suas discussões com seus dois devotados amigos, Agostinho escreveu: “Éramos três mendigos que se juntaram para ouvir as lamentações uns dos outros. E à medida que ficávamos a indagar do propósito e significado das coisas, a despeito do amargor que resultava de nossos atos mundanos, encontrávamos a treva sem luz alguma. Por quanto mais tempo permaneceríamos presos ali dentro?
Fazíamos muitas vezes esta pergunta, mas isto não mudava nossas vidas, porque não tínhamos encontrado segurança a que nos agarrássemos, abandonando nossa confiança em tudo mais.”
O que mantinha Agostinho neste estado de confusão era o fato de continuar seu pensamento a vaguear ocioso, dentro dos estreitos limites de pontos de vista materialistas, Isto tornava impossível para ele conceber a existência de um mundo puramente espiritual. “Eu não podia”, diria ele “pensar em qualquer coisa como real a, não ser o que meus olhos mortais percebiam. Mesmo a respeito de Deus não podia eu pensar de outro modo, senão em forma humana, ainda como um ser físico, infinito em extensão e enchendo o espaço do mundo. Tão pesado era meu espírito, tão falto de claridade e luz, que eu estimava ocioso e vão o que não tinha extensão no espaço e não podia ser visto em um corpo. Por consequência, a natureza do mal permanecia oculta para mim.”
Agostinho deveu sua emancipação das garras do materialismo aos escritos dos neoplatonistas, que lhe foram recomendados por alguns de seus amigos filósofos de Milão. A mais fonte impressão foi a que recebeu das Enéadas de Plotino, livro acessível na tradução latina do famoso Mário Vitoriano. A doutrina neoplatônica do “logos”, a “eterna palavra” que é Deus, ensinou-o a aceitar a verdade que não está incorporada na matéria; tornou-lhe possível a compreensão da essência espiritual de todas as coisas criadas. À luz desta visão neoplatônica, reconhecia ele também a divina homogeneidade do bem e do mal; compreendia que o mal não é uma força independente, que não tem existência por si mesmo, mas é produto erro de volição, o resultado de uma vontade que se desviou do Ser supremo.
Mas se a doutrina neoplatônica ensinou-lhe a realidade duma verdade espiritual eterna, não lhe deu contudo ainda à energia para mudar seu modo de vida. Suanegação teorética do mal não era uma estrada reta que ele pudesse seguir. O que estava faltando nos escritos dos neoplatonistas era o conselho prático sobre o que um fraco ser humano deveria fazer, a fim de dominar sua fragilidade.
Comentando este ponto, escreveu Agostinho: “Em todas aquelas páginas nada se dizia a respeito do sacrifício de um coração contrito, de um espírito conturbado, da salvação do povo e do cálice de nossa redenção. Ninguém ouvia ali a chamar: “Vinde a mim todos quantos laborais. Pois uma coisa é do cume arborizado da montanha ver à terra de paz e não encontrar o caminho para ela, embalde tentar caminhos intransitáveis, e outra manter-se no caminho que à ela conduz, guardado pelas hostes do general celeste Assim buscava eu o caminho mas não o encontrei, senão quando abracei aquele “Mediador entre Deus e o homem, o homem Cristo Jesus', chamando-me e dizendo-me: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida.
O que o neoplatonismo apresentava simplesmente como uma doutrina sublime assumia no Cristianismo a forma duma realidade viva e ativa. O “logos”, a “eterna palavra”, tinha-se em Cristo tomado carne. Aquele que pudesse acreditar nEle, que pudesse acompanhá-Lo e ver nEle à corporificação tangível duma essência puramente espiritual, tinha alcançado um ponto em que a obtenção do puro espírito e de Deus era possível.
O neoplatonismo mostrou a Agostinho o caminho que conduz à “pátria da bem-aventurança”, mas foi o Cristianismo que lhe ensinou a “habitar nela”. Aquele que tinha, em certa ocasião, falado tão desdenhosamente da Sagrada Escritura, que havia chamado de livro para crianças, reconhecia agora que ela continha a mais alta verdade, que “Deus tinha conservado oculta dos sábios e revelado aos simples e inocentes.”
As epístolas de S. Paulo foram finalmente a chave que abriu à compreensão de Agostinho as verdades da doutrina cristã. Mergulhou ele no estudo daquelas cartas e descobriu que eram escritas por um homem que conhecia, por experiência real, a força transformadora do espírito.
Depois disto, acontecimentos de importância interna e externa ocorreram, em rápida sucessão, arrasando o pensador Agostinho, profundamente mergulhado nos escritos de Paulo, cada vez mais fortemente para a órbita dos ensinamentos cristãos.parei aqui
Foi principalmente devido à influência do bispo Ambrósio que a atenção de Agostinho focalizou-se mais plenamente sobre os valores positivos do Cristianismo. Até aqui Agostinho havia admirado em Ambrósio as virtudes romanas de um dignitário influente da Igreja e a suprema habilidade retórica, mas a heroica atitude de Ambrósio, em face das renovadas perseguições cristãs, iniciadas por Justina, mãe do imperador, demonstrou-lhe a irresistível força que a verdadeira fé cristã pode comunicar a seus fiéis. À luta que se acendeu entre a imperatriz ariana e o bispo ortodoxo foi um acontecimento que, durante dias, trouxe toda Milão numa excitação ofegante. O fato de Mônica, de pleno coração ao lado do bispo, ter sido envolvida no conflito, aumentou naturalmente o interesse de Agostinho pelo que estava acontecendo.
À imperatriz tinha caído completamente sob a influência dos arianos e exigiu que uma igreja de Milão fosse reservada para uso de sua seita favorita. O bispo Ambrósio, como representante do Cristianismo ortodoxo, recusou firmemente satisfazer o pedido da imperatriz, Confiante na sua autoridade imperial, Justina decidiu resolver o caso, publicando um decreto em nome do imperador. Ambrósio recusou-se a obedecer, pois sentia que representava um poder maior do que o Império Romano. Era o representante do reino de Deus. Na sua cólera, a imperatriz recorreu à força e mandou um destacamento de soldados contra o renitente bispo.
Na crítica manhã em que os soldados imperiais tiveram ordem de apoderar-se da igreja para os arianos, o bispo ordenou a seu rebanho que comparecesse a uma missa cedo na basílica. Mônica, um dos mais fiéis partidários de Ambrósio, estava presente e foi ela quem relatou à Agostinho o que aconteceu na basílica.
A igreja estava repleta. O bispo, de pé no púlpito, lia uma lição da Bíblia. De repente, um homem entrou correndo e gritou excitado: “Os soldados vêm aí!” Agora ouviam-se claramente os passos em marcha dos soldados. Mas Ambrósio não se perturbou. Continuou com seu sermão. Estava lendo um trecho do livro de Jó, explicando o grande sofrimento que o Senhor impusera ao homem Teto, para experimentar a força de resistência de sua fé.
Os soldados tinham tido ordem de pôr cerco à basílica, até que o bispo e seu rebanho capitulassem. Mas Ambrósio preferia morrer a abandonar a casa do Senhor aos heréticos. Permaneceu no seu posto.
Os fiéis tinham ido simplesmente assistir à missa cedo. Não tinham levado alimento e a basílica estava tão superlotada que não havia lugar onde alguém pudesse deitar-se e descansar, Passou o dia e quando a noite caiu, não somente os corpos dos fiéis, mas também suas orações tinham-se fatigado. Somente graças à um grande esforço podiam os fiéis manter-se. Alguma coisa deveria ser feita para confortá-los. Então a voz do bispo fez-se ouvir num hino. A aflitiva situação dele e de seus fieis, a chegada da noite, a basílica fracamente iluminada, os soldados lá fora e os fiéis lá dentro, a crença de que a verdade de Cristo estava em jogo, tudo isto, mas acima de tudo a crença da verdade de Cristo, ascendeu nos ritmos do hino de Ambrósio. Era sublimemente solene e contudo simples e familiar, como uma canção popular de rua, e todos na basílica, homem, mulher ou criança, foram capazes de cantá-lo em coro:
“Deus, que criaste tudo quanto existe,
que os" céus governas e que os dias vestes de luz,
e à noite dás o Benefício do sono,
que os sentidos fracos torna capazes de empreender novos esforços,
de angústias aliviando o pensamento e acalmando o tumulto dos pesares,
Permite, quando a sombra em nossa volta rasteja e envolve tudo em densa treva, que a fé não tenho noite nem tristeza e de seu brilho nova luz irrompa.
Vontade e firme coração, não durmas,
dormi vós, pensamentos de impiedade,
Venha a fé dominar as seduções ardentes do torpor e da lascívia.
Liberta-me, Senhor, das armadilhas dos sentidos,
e faze com que eu sonhe,
dentro do coração, Contigo apenas
Que o ocioso inimigo mão consiga perturbar com receios meu repouso."

Toda a igreja retumbava ao som do hino. Perigo e privação foram esquecidos. A fadiga do corpo e da alma desapareceu. Nada mais havia na basílica senão a crença firme na divindade de Cristo, e esta crença, esta fé inabalável continuou a cantar a noite inteira.
Ao romper do dia seguinte, os soldados mantinham ainda cercada a basílica, mas os primeiros raios de sol nascente, caindo obliquamente através das estreitas janelas da igreja, inspiraram ao bispo um novo hino da manhã. Era um canto que dava aos fiéis a força de persistir na oração e na sua constância:
“O esplendor da glória cintilante de Deus,
Tu, cuja luz a luz assombra,
luz da luz, que és da luz a fonte viva,
dia que os dias todos iluminas...
Chega a manhã no seu rosado carro.
Venhao Senhor, nossa manhã perfeita.
Venha o Verbo de Deus, único Pai,
é louvemos, no Filho, o Pai perfeito."

Então dividiu Ambrósio seus fiéis em vários coros e teve-os a cantar seus hinos em alternadas vozes masculinas e femininas. E todos os fiéis eram como se fossem um só, no seu desejo de cantar os louvores de Deus, o mais perfeitamente, o mais belamente que pudessem. E à medida que o dia avançava, quatro dos melhores hinos de Ambrósio, quatro dos mais magníficos hinos da Igreja Cristã, foram compostos pelo bispo e aprendidos e cantados repetidas vezes pelos fieis, dentro da basílica de Milão, que os soldados imperiais mantinham em cerco. Tais foram os começos das grandes dádivas à cultura do mundo ocidental, que veio a ser conhecida como hinologia ambrosiana.
Dois dias e duas noites se passaram. Na manhã do terceiro dia, quando o bispo e seu rebanho ainda se recusavam a submeter-se às exigências da imperatriz, Justina ordenou a seus soldados que tomassem a basílica de assalto. As portasforam forçadas, justamente quando os fiéis estavam cantando outro hino antifonal, que Ambrósio havia composto para eles. O coro de vozes profundas masculinas respondia ao tema dado pelas vozes suaves das mulheres e crianças. Quando os soldados viram e ouviram o rebanho de fiéis de Ambrósio, contra os quais tinham eles vindo para expulsá-los de sua Igreja, pararam, depuseram suas espadas, cujo tilintar poderia perturbar a solenidade do hino e, como um só homem, caíram de joelhos cantando os louvores de Cristo em quem Deus tinha assumido a forma humana, como era ensinado por Ambrósio e negado por Justina.
O poder das espadas havia perdido para o poder da canção. Ao mesmo tempo, porém, a Igreja Cristã do mundo ocidental tinha conquistado uma nova arma, o evangelho dos hinos, cujo poder de melodia e de ritmo se exerceu sobre as almas de homens e mulheres por toda parte, ganhando-as para a causa de Cristo. Destes começos da hinologia ambrosiana desenvolveram-se, séculos mais tarde, a grandeza e a força da música sacra gregoriana.
Na cristologia de S. Paulo, o espírito indagador de Agostinho havia afinal descoberto à resposta à sua busca da verdade. Agora o filho pródigo estava pronto a voltar à sua mãe, pois suas palavras inspiradas de fé não mais o impressionavam como “tagarelice de mulher”. A profecia do velho bispo de Madauros iria tornar-se verdadeira. “O filho de tais lágrimas não poderá perecer.”
Como rapaz desobediente e, mais tarde, como o conceituado retórico, tinha-se Agostinho em tão elevada conta que não prestava atenção ao que sua mãe dizia. Agora, homem maduro, adquirira a humildade infantil, para escutá-la, Profundamente abalado ficou ele, ao ouvir de Mônica a narração do que sentira, durante aqueles três dias passados com o rebanho de Ambrósio, na basílica assediada. É o coração de Agostinho uniu-se ao dela, numa flamejante admiração peio heroico bispo, possuidor duma fé firme, capaz de instilar a mais alta forma de coragem e de confiança ao coração humano.
Os hinos, que deviam sua existência aos dias atribulados do cerco, deram força maior à união de Agostinho na fé com sua mãe. O que havia impedido Agostinho por tanto tempo de simpatizar com o espírito do Cristianismo era, acima de tudo, a rigidez de suas exigências éticas. Nos hinos de Ambrósio ele ouvia pela primeira vez à suavidade conciliatória duma confiança simples e fervorosa em Deus. Estes hinos, além disso, afagavam-lhe o senso de perfeição formal e de beleza clássica, pelo ritmo e pela melodia. Contudo, se estava verdadeiramente dominado pela sua solene grandeza, antes de tudo era porque sentia neles um elemento ausente das mais perfeitas obras dos antigos, não somente de sua música, mas de sua arte em geral e mesmo das maiores realizações de seus filósofos. Não tinha um termo claro para designar aquilo, mas era algo que podia falar diretamente à alma humana, que podia consolar os desconsolados e tinha poder de prometer redenção para os mergulhados no mais profundo desespero. Era função desta arte dar conforto à alma do homem, aliviar e cicatrizar as feridas de seu coração.
Nas suas Confissões, descreveu Agostinho a impressão que os hinos de Ambrósio causaram nele quando os ouviu pela primeira vez, ao lado de Mônica, na basílica de Milão. “Quantas vezes não chorei”, escreveu ele, “ouvindo aqueles hinos e cânticos, tocado até ao mais fundo da minha alma pelo doce coro das vozes! Fluíam dentro de meus ouvidos e a verdade, instilada em meu peito, despertava em mim o amor da devoção.
A decisão de começar nova vida em Cristo estava amadurecida na alma de Agostinho. Dar-lhe execução, porém, implicava a pronta realização de grandes sacrifícios. Teria de dominar o seu velho eu, praticar a castidade, esquecer o sucesso e a fama e abandonar todas as doces complacências duma vida de conforto e de facilidades. Fraqueza de coração e temor impediram-no de dar o passo decisivo.
Como mestre de exposição psicológica, Agostinho descreveu a luta que seu espírito teve de travar contra “a inércia de seu coração”, contra "a relutância da carne” e contra “a resistência de seus hábitos”, Escreveu ele: “Sentia me doente e atormentado, acusando-me bem mais severamente do que era costume meu, agitando-me e torcendo-me nas minhas cadeias, até me sentir inteiramente arrebatado, cadeias aquelas pelas quais, agora apenas levemente, estava ainda ligado. E dizia mentalmente: “Ah! que se faça agora, que se faça agora!” E ao falar, quase chegava a tomar uma resolução. Quase a tomava mas não a tomava. Contudo não recaía na minha antiga condição, mas dela me colocava perto e tomava fôlego. E de novo tentava e pouco me faltava para alcançá-a e um tanto menos e de- pois quase a tocava e agarrava; e contudo não chegava até ela, nem a tocava, nem a pegava, hesitando morrer na morte de viver na vida; e o pior, a que eu estivera habituado, prevalecia amais comigo do que o melhor, que eu não tinha tentado. E no mesmo instante em que eu estava a ponto de tornar-me outro homem quanto mais perto de mim se aproximava, maior o horror que me penetrava; mas não me forçava a recusar, nem a desviar-me, mas mantinha-me em suspenso.”
“Todas as bagatelas de bagatelas, e vaidades de vaidades, minhas velhas amantes, ainda me arrastavam; sacudiam minhas vestes carnais e murmuravam baixinho: “Vais separar-te de nós? E desde esse instante não estaremos mais contigo para sempre? E desde esse momento isto ou aquilo não mais será lícito, a teu ver, para sempre? E que sugeriam elas com as palavras “isto ou aquilo? Que mundo de impurezas sugeriam elas! Quanta vergonha! E agora eu as ouvia já bem pouco, não se mostrando abertamente e contradizendo-me, mas murmurando, por assim dizer, por trás de minhas costas e furtivamente puxando-me, à medida que me afastava, para me forçar à voltar a vista para elas, Contudo retardavam-me de modo que hesitava em romper e despojar-me delas e saltar para onde era chamado, ouvindo um desenfreado hábito dizer-me: “Pensas que podes viver sem elas” Mas agora dizia isto fracamente, pois daquele lado para o qual tinha eu o rosto voltado e para o qual receava ir, a casta dignidade da Continência me aparecia, prazenteira, mas não dissolutamente alegre, honestamente convidando-me a segui-la, sem duvidar de nada, e estendendo suas santas mãos, cheias duma multiplicidade de bons exemplos, para receber-me e abraçar-me. E ela sorria para mim, com uma encorajadora zombaria, como se dissesse: “Não podes fazer o que aqueles outros podem? Ou pode um ou outro fazê-lo por si mesmo e não antes no Senhor seu Deus? O Senhor seu Deus a eles me entregou. Por que confias em tua própria força e dessa forma não consegues manter-te? Lançaste sobre Eles; não temas que Ele te retire Seu apoio e te faça assim cair; repousa sobre Ele sem temor, Ele te receberá e te curará” E eu corava, além da medida, pois ainda ouvia o murmúrio daquelas bagatelas e permanecia em suspenso.”
Por suas próprias energias não teria sido ele capaz de encontrar um caminho que o tirasse daquele beco sem saída. Necessitava duma mão guiadora que o conduzisse para fora do seu estado de vacilação incerta. Com isto no pensamento, foi ver um velho padre chamado Simpliciano, que há muitos anos havia iniciado o prefeito romano Ambrósio nos dogmas da fé cristã. A ele confessou Agostinho suas aberrações carnais e seus conflitos espirituais, pedindo-lhe conselho e ajuda.
É observação freguente que um pormenor, aparentemente sem importância, uma alusão fortuita, uma frase casual, podem muitas vezes determinar todo o futuro curso duma vida humana. Foi isto o que aconteceu no caso de Agostinho. No decorrer de sua conversação com Simpliciano, falou a respeito dos livros que lhe tinham influenciado o pensamento e entre outros mencionou a tradução das Encadas de Plotino, por Vitoriano.
"Vitoriano, Mário Vitoriano-interrompeu o velho padre — Conheço-o muito bem! Batizei-o!
E contou a Agostinho a história da conversão de Vitoriano à fé cristã.
Era um homem de parentesco africano. Um dos mais célebres autores pagãos e retóricos de seu tempo. A cidade de Roma honrou-o, erigindo-lhe a estátua no Forum de Trajano, ainda em vida.
No apogeu de sua carreira, encetou o estudo da Bíblia Cristã, somente porque desejava refutar seus princípios em outro de seus brilhantes ensaios. Mas o que aconteceu foi que as coisas que ele se dispusera a refutar lançaram seu fascínio sobre ele, até que não pôde mais resistir ao ardente desejo de tomar-se ele próprio cristão e combater, com todas as suas forças, pela causa da verdade cristã Foi ter com Simpliciano e pediu-lhe que o batizasse. De acordo com os costumes da o batismo era uma cerimônia pública e tinha de ser precedido pelaabjuração do candidato de sua velha religião, fazendo ele solene confissão de seu novo credo, Simpliciano estava pronto para dispensar o famoso retórico, orgulho da filosofia contemporânea pagã, desta embaraçosa confissão pública. Mas Vitoriano não quis aceitar tais favores especiais. “Proferi tantas palavras vazias e falsas em público”, declarou ele, “que não há motivo para que me esconda agora que professo a verdade” E corajosamente confessou sua nova fé, diante de imensa multidão de povo.
Agostinho ficou profundamente afetado por esta história. Soava-lhe aos ouvidos como uma exortação. Um retórico pagão, cujo saber pagão lhe havia proporcionado as mais altas honras e distinções, tendo chegado à conclusão de que o que ensinava era falso, de que a verdade real jazia na fé em Cristo, não havia hesitado em abandonar a maior glória que um retórico pode atingir durante sua vida. Ele, Agostinho, chegara à mesma conclusão, mas não tinha tido a coragem de tirar dela a mesma consequência. Seu êxito como retórico era nada, em comparação com aquilo que Vitoriano tinha sido chamado a sacrificar. É contudo continuava ele a vacilar!
Pouco tempo depois, estava Agostinho, uma tarde, a conversar com seu amigo Alípio, quando recebeu a inesperada visita de seu compatriota Ponticiano, que ocupava importante posição na corte.
Ao entrar na sala, viu Ponticiano, com grande admiração, em cima da mesa de jogo em que Agostinho e seus amigos iam começar uma partida de dados, uma cópia das epístolas de S. Paulo. Ponticiano era cristão e assim nada mais natural que a conversa se voltasse para o assunto do credo cristão. No correr do debate, Ponticiano veio a falar da vida do estranho eremita, S. Antão do Egito.
“Agostinho sentiu-se fascinado pela história do filho do modesto lavrador, a quem uma simples citação da Bíblia, ouvida por acaso na igreja, induzira a abandonar todos os seus bens terrestres, dominar seus apetites carnais e passar a inteira vida futura na austeridade e na renúncia, a fim de obedecerparei aqui às leis de Cristo. Sentiu-se profundamente envergonhado. O filho dum simples lavrador tinha precisado apenas duma única sentença do Evangelho para começar sua nova vida; e ele, o sábio professor, a quem o estudo dos escritos de Paulo tinha convencido da verdade dos ensinamentos de Cristo, ele que durante mais de dois anos tinha ouvido todos os domingos o mais eloquente bispo da Igreja interpretar o significado do Evangelho, ele continuava a vacilar e a adiar o começo da nova vida, que havia reconhecido como verdadeira.
A confusão de Agostinho tornou-se completamente insuportável quando seu visitante lhe falou a respeito de dois de seus amigos, altos dignitários da corte, que tinham lido a Vita St. Antonii, de Atanásio, e ficaram tão profundamente abalados por ela, que não hesitaram um instante em abandonar suas posições lucrativas e trocar todas as alegrias de suas vidas mundanas por uma vida de austeridades ascéticas em emulação com o exemplo dado pelo santo lavrador de Coma.
Logo que o visitante saiu, Agostinho voltou-se para seu amigo Alípio e exclamou, num turbilhão de vergonha e de amarga auto-acusação: “Que faremos agora? Não percebe você? O ignorante pulou para cima e tomou o céu à força, e nós, com todo o nosso saber, continuamos a demorar. Altos dignitários da corte abandonam tudo e começam nova vida, mas nós persistimos em nossas vidas de iniquidade e de imundície.”
O desgosto de si mesmo enchia seu coração e ameaçava sufocá-lo.
Mais uma vez ainda seu velho eu reunia toda à sua força para uma permanência definitiva. Era a derradeira luta da carne contra a alma, do prazer contra as aspirações mais altas. Numa excitação frenética, arrancou os cabelos, cobriu os olhos e rebentou numa explosão de lágrimas: “Oh! Senhor, quanto tempo ainda? Quanto tempo ainda? Amanhã, sempre amanhã! Por que não hoje? Por que não agora? Por que esta hora verdadeira não dá fim à minha miséria?”
Chegara a hora de sua conversão. O que aconteceu à sua alma, durante esta crise de sua vida, foi descrito por ele em uma das mais impressionantes passagens de suas Confissões: “Agora que uma profunda reflexão tinha, das secretas profundezas de minha alma, arrastado e amontoado toda a minha miséria, diante da vista de meu coração, desencadeou-se em mim tremenda tempestade. Ergui-me e corri para o jardim, afastando-me de Alípio, pois me sugeria o jardim que a solidão era o que mais me convinha para chorar, Foi o que se deu comigo naquela ocasião e ele o percebeu, pois acredito que havia falado alguma coisa, em que o som de minha voz parecia abalado pelo pranto e naquele estado havia-me levantado. Permaneceu então ele onde estivéramos sentados, cheio do mais completo espanto. Corri — como, não sei — para baixo de certa figueira, dando livre curso às minhas lágrimas, e as torrentes de pranto de meus olhos jorravam um sacrifício aceitável por Ti.
“Estava eu a chorar, na mais amarga contrição de meu coração, quando, aí, ouvi a voz dum menino ou duma menina, não sei precisar, vinda duma casa vizinha, cantando e repetindo muitas vezes: “Pegue e leia; pegue e leia!” Imediatamente mudou minha atitude e comecei a considerar, com toda a gravidade, se era usual em crianças, em qualquer espécie de jogo, cantar palavras tais. Nem me recordava de ter ouvido alguma vez palavras semelhantes. Assim, reprimindo a torrente de minhas lágrimas, levantei-me, interpretando aquelas palavras como sendo uma ordem do Céu para que eu abrisse o livro e lesse o primeiro capítulo que se apresentasse à minha vista, pois soubera que Antão, entrando por acaso na igreja, no momento em que era lido o Evangelho recebeu a advertência, como se o que estava sendo lido fosse dirigido a ele: “Vai vender tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro nos céus; depois vem seguir-me; E com esse oráculo foi que ele se converteu imediatamente a Ti. De modo que apressadamente voltei ao lugar onde Alípio estava sentado, pois ali havia deixado o volume dos apóstolos, quando dali saíra. Agarrei o livro, abri-o, e, em silêncio, li o parágrafo sobre o qual meus olhos caíram em primeiro lugar: 'Não na devassidão e na embriaguez, não na lascívia e na luxúria, não ma contenda e na inveja; mas confia em Nosso Senhor Jesus Cristo e não faças provisão para a carne, para satisfazer a sensualidade.
Não li mais adiante, nem era preciso que o fizesse, pois instantaneamente, ao terminar à sentença, por uma luz, por assim dizer de confiança, que me penetrou no coração, toda a treva da dúvida desapareceu.
“Fechando o livro, então, e pondo meu dedo entre as folhas, ou outra marca qualquer, com uma atitude tranquila, comuniquei a Alípio o que comigo se passava. E ele outro tanto revelou a mim do que nele se operava e que eu não sabia. Pediu-me para ver o que eu tinha lido. Mostrei-lho e ele leu mais além mesmo do que tinha eu lido e não sabia o que continuava. Era isto na verdade: 'Acolhei aquele que está fraco na fé', que ele aplicou a si próprio e mo revelou. Com esta advertência sentiu-se ele revigorado e graças a uma boa resolução e propósito, bastante em acordo com seu caráter (no que, com vantagem, sempre foi bastante diferente de mim), sem demora nem inquietação se juntou a mim. Dali fomos ter com minha mãe. Contamos-lhe o acontecido; ela encheu-se de júbilo. Relatamos-lhe como viera isso à acontecer; ela vibrou de contentamento e de triunfo, e abençoou-Te a Ti, que és 'capaz de dar em abundância e excesso, bem além do que pedimos ou pensamos, pois percebeu que lhe havias dado mais por mim do que ela costumava pedir, com seus lamentosos e dolentíssimos gemidos. Porque soubeste converter-me tão bem a Ti, que não busquei mais nem uma mulher, nem qualquer outra das esperanças deste mundo, permanecendo naquela regra de fé a que Tu, tantos anos antes, me havias conduzido numa visão. E mudaste seu pesar em alegria, muito mais plenamente do que ela havia desejado.”
O jugo de seus apetites carnais fora alijado; o encantamento de sua ambição desfeito. Na idade de trinta e dois anos, o sensual Agostinho renunciou às mulheres; o “vendilhão de palavras” estava pronto à desistir de seu professorado de Retórica, a fim de levar uma vida em acordo com a verdade de Deus.
No seu caminho para Damasco, Saulo havia-se transformado em Paulo com uma subitaneidade de relâmpago. Antão ouvira na igreja as palavras do padre, levantou-se e foi distribuir seus bens, Mas “Agostinho não era um homem de decisões súbitas. Suas manifestações não eram determinadas por impulsos súbitos. O arrebatamento emocional no jardim tinha-o simplesmente libertado das derradeiras garras de sua natureza interior, até então capaz de coarctar as elevadas aspirações de sua inteligência, impedindo de atingir as derradeiras alturas do pensamento em Deus.
A conversão no jardim ocorreu várias semanas antes do fim do corrente ano letivo. De alma e coração sentia-se Agostinho desprendido de seus deveres de professor, mas a fim de evitar publicidade, decidiu prosseguir com seu trabalho até ao tempo das férias. Entrementes dissolveu suas relações amorosas, com toda a habilidade dum homem do mundo. Deixou a Alípio o encargo de despachar, da maneira mais jeitosa possível, sua nova amante, enquanto Mónica teria de levar avante sua decisão de romper seu noivado.
Antão interpretara sua conversão como significando que deveria retirar-se para a solidão duma caverna no deserto. Agostinho, que era um homem de inteligência, escolheu diferente caminho até Deus.
Terminadas as aulas, retirou-se em companhia de sua mãe, de seu irmão, de seu filho, de Alípio e de numerosos outros amigos para uma aprazível casa de campo, em Cassicíaco, que seu amigo Verecundo lhe havia emprestado. Não vivia ali como penitente, mas antes como um filósofo, que voltara as cosas ao mundo, à fim de gozar a verdadeira bem-aventurança do pensamento puro. Sem ser perturbado, em prazerosa simplicidade e cercado pelo círculo estimulante de parentes e amigos, passava a mais agradável das férias, em discussões estéticas e filosóficas, frequentemente suavizadas e animadas por gracejos e risadas. Mônica não era apenas a governante desta família de celibatários. Tomava também parte nas suas indagações intelectuais. "Mulher no traje”, escreveu Agostinho a respeito de sua mãe naquela época, “homem na fé e no vigor do pensamento, com toda a tranquila segurança da idade, o amor duma mãe e a devoção duma cristã”.
Em Cassicíaco, o pensador Agostinho determinou-se a tarefa de reexaminar, à luz de seus novos padrões, todas as coisas que sua inteligência tinha até então sido incapaz de aceitar como válidas.
“Desejava”, disse ele certa vez, “estar tão bem informado a respeito tanto das coisas metafísicas como das coisas visíveis, estar tão certo e seguro delas, como estava de que sete e três são dez”.
Agora ele o centro duma espécie de academia, segundo o modelo antigo. Ele e seu grupo discutiam todos os problemas de ciência, filosofia e literatura, os poemas de Virgílio, as escritos dos neoplatonistas e de todas as outras escolas da filosofia pagã. Seis dias cheios foram gastos para firmar a questão de se a felicidade poderia ser obtida sem o saber.
Ao lado de tudo isto, dedicava também Agostinho seu tempo a escrever alguma coisa. Deu uma forma literária final a seus diálogos com amigos, escreveu curtos trabalhos, “Da Vida Feliz”, “Da ordem”, “Contra a Nova Academia” e compôs um de seus mais profundos ensaios, “Do Mestre”, sumário de suas conversações com seu filho Adeodato, que, à despeito de seus quinze anos, era, como dizia ele, seu igual na inteligência e de todo o grupo reunido em Cassicíaco.
Aproximando-se o fim das férias, Agostinho escreveu ao bispo Ambrósio, pedindo-lhe para ser aceito como convertido e para receber o santo sacramento do batismo, na Páscoa. Ao mesmo tempo, pediu sua exoneração do cargo de professor de Retórica. Não querendo ainda provocar sensação, explicou seu pedido de exoneração como consequente de seu estado de saúde. A não ser o estar realmente sofrendo grande curteza de fôlego e haver sua voz perdido em força e sonoridade, achava-se ainda em boa forma.
Em abril de 387, regressou Agostinho a Milão, a fim de preparar-se para o batismo. Estudou as doutrinas de Cristo e compôs vários livros seus, todos os quais — tanto no assunto como na forma — acompanhavam de perto o modelo do pensamento antigo. Escreveu a respeito de retórica, dialética, geometria, aritmética, filosofia, a respeito dos elementos da música e das sete artes liberais.
Durante este período compôs também seus dois famosos livros de Soliloquia, que são possivelmente as mais reveladoras de todas as obras deste homem, que encontrou seu caminho para Deus pela força de sua inteligência. "Tende confiança nas condições de vosso pensamento”, diz a Razão a modo de resumo do argumento dos Soliloquia. “Tende confiança na verdade, pois a própria verdade vos diz que vive dentro de vós, que é imortal e que não pode perder-se por causa da morte física. Afastai-vos de vossa sombra e voltai-vos para dentro. Não podeis perecer, a não ser perdendo a verdade que não podeis deixar que se perca.” E Agostinho replica à Razão: “Ouço-vos, tomo coragem, começarei de novo a viver.”
Os problemas com que andou Agostinho às voltas, durante este tempo que precedeu imediatamente seu batismo, eram em suma a essência da ciência e da filosofia clássica. Estava destinada a tornar-se parte da grande estrutura do pensamento cristão, pois a função característica de Agostinho, o primeiro grande pensador e gênio intelectual da era cristã, foi fazer uso do tesouro imortal de ideias do mundo decadente dos antigos, como material de construção para a ascendente cultura cristã do Ocidente.
Na noite de véspera da Páscoa, Agostinho, juntamente com Alípio e seu filho Adeodato, foi batizado pelo bispo Ambrósio. Em solene cerimônia, que simbolizava o renascimento do convertido da morte no pecado a uma nova vida em Cristo, professou ele sua fé no Redentor.
Depois do batismo, decidiu Agostinho voltar à África. Sua sede de fama e de sucesso tinha-o afastado de sua terra natal para o continente europeu. Como convertido, desejoso de viver dali diante a serviço de Cristo, sentiu necessidade urgente de desandar os passos dados e voltar ao ponto de partida de sua carreira.
Todos os membros do pequeno grupo de cristãos que o acompanharam em sua nova vida em Cristo eram africanos. E africano foi também. quase tudo que o influenciou na sua carreira como santo.
Era africano Plotino, o fundador do neoplatonismo, cujos ensinamentos foram instrumentos da conversão de Agostinho. Africano era Vitoriano, o homem cuja tradução lhe tinha tornado acessíveis os escritos neoplatonistas e cuja conversão o havia impressionado como gloriosíssimo exemplo. E, finalmente, era africano o eremita Antão, cuja vida exemplar havia-lhe causado tão profundo choque que todo o futuro curso de sua vida na terra foi decidido por ele.
Antão e Agostinho não eram as primeiros africanos a fazer importantes contribuições para o crescimento e desenvolvimento do Cristianismo. Orígines e Tertuliano, os maiores cristãos dos primeiros dois séculos, tinham sido ambos africanos e a poderosa escola de Alexandria tinha sido também uma instituição africana.
Três continentes trabalharam juntos na formação da cultura do Cristianismo. A fé cristã surgiu na Ásia Menor; foi-lhe dada a situação dum poder mundial pelo império romano e pela Europa; mas na formação dos moldes tipicamente cristãos e ocidentais de pensamento, pode-se dizer que a África desempenhou o papel real mente decisivo.
O navio que transportaria o pequeno grupo de africanos, de regresso à terra natal, partiu do porto romano de Óstia. Foi ali que Agostinho passou os últimos poucos dias de espera, antes do tempo determinado para a partida. Durante esses dias sofreu uma dolorosa perda. Mônica morreu. Tinha então cinquenta e três anos. Ele estava com trinta e três.
“Não posso exprimir o afeto que ela me dedicava e com quanta muito mais veemente angústia sofria as dores de mim em espírito do que sofrera à de minha gestação na carne”, escreveu Agostinho mais tarde, a respeito da morta cujo leal coração só viera a apreciar devidamente deste o tempo de sua conversão. “Minha vida e a dela tinham-se tomado uma só e agora aquela vida única era separada violentamente, pois ela me havia deixado.”
À mãe de seu renascimento espiritual dedicou Agostinho imortal monumento numa passagem de suas confissões, onde fala de sua derradeira e extaticamente mística conversa com Mônica, a qual realizou, numa tarde do começo do verão, poucos dias antes da morte dela.
“Ela e eu estávamos sós, encostados a certa janela que dava para o jardim da casa, onde então nos achávamos. Estávamos então discorrendo juntos, sozinhos, e falávamos a respeito da vida eterna.
Erguendo-nos com mais ardente afeto para o 'Uno', passávamos gradativamente,através de todas as coisas corpóreas, até chegar ao próprio céu, donde o sol e a lua e as estrelas lançam sua luz sobre à terra; sim, remontávamos mais alto ainda, graças ao êxtase íntimo, e conversávamos; e chegávamos às nossas próprias mentes e íamos além delas, de modo que podíamos chegar àquela região em que a vida é a Sabedoria por quem todas as coisas são feitas, para a qual o 'foi' e o 'será' não mais existem, mas apenas o 'ser', já que é eterna. E enquanto íamos discorrendo sobre ela e por ela anelávamos, de leve a roçamos com um arrebatamento total de nosso coração.”
Era a verdade eterna, a guardiã de todas as coisas, que eles tocavam graças ao esforço de sus “ativos pensamentos”. “Quando estávamos falando a respeito destas coisas, o mundo inteiro em torno de nós desaparecia. Os tumultos da carne eram silenciados, aquietadas as imagens da terra, da água e do ar, aquietados também os polos do céu, na verdade à própria alma se impunha silêncio, aquietados todos os sonhos e imaginárias revelações, cada palavra alta e sinais de silêncio e o que quer que existe apenas em transição, tudo aquietado, e neste extremo silêncio havia apenas um pensamento desperto, que contemplava a derradeira face da sabedoria: Deus. Suspirávamos e ali deixávamos presos os primeiros frutos do Espírito é voltávamos às expressões vocais de nossa boca, em que a palavra falada tem começo e tem fim.”
Nesta conversação, em que mãe e filho erguiam-se acima das coisas do mundo e uniam-se numa mística visão das verdades eternas, vemos Agostinho e Mônica, pela primeira vez, como S. Agostinho e S. Mônica, a quem a Igreja venera.
A terra, dentro da qual baixara o corpo de sua mãe, não o queria deixar ir. Adiou sua volta à África por mais um ano. Passou este tempo em Roma. Mas parecia ser uma cidade diferente da que ele havia deixado não fazia muito tempo, quando todas as ambiciosas esperanças de fama e de sucesso do jovem retórico haviam naufragado. Então havia olhado para ela, do ponto de vista de sua carreira individual. Mas agora vinha ele como uma pessoa mudada e via em Roma a cidade eterna do Cristianismo, o lugar de sofrimento dos mártires, a Roma da Igreja. E somente agora viera a conhecer realmente a Igreja Cristã, cuja fé havia abraçado, na sua organização como instituição universal e espiritual. Sua estada em Roma foi o aprendizado do homem destinado a tornar-se um dos majores mestres, dentro da organização estrutural da Igreja.
No ano 388, desembarcou Agostinho no porto de Cartago e seguiu dali para sua cidade natal, Tagasta. Transformou a casa herdara de seu pai, onde havia passado sua pecaminosa juventude, numa espécie de mosteiro, onde viveu durante dois anos, na companhia de vários homens de igual pensamento, em reclusão monacal.
Durante este período, sua conversão, que havia começado no jardim, em Milão, consumou-se definitivamente. Compôs sua primeira obra religiosa, a primeira obra-prima verdadeiramente agostiniana, De Vera Religione, Da Verdadeira Fé. A contemplação reclusa havia transformado o filósofo intelectual num pensador cristão, A disciplina monástica e a tranquilidade, que caracterizaram sua vida naquele período, purificaram não somente seu caráter mas também seu talento, e de modo particular sua eloquência.
Durante quinze anos abusara deste dom, como um “vendilhão de palavras”; mas agora, quando seus dias eram passados na oração e no silêncio, sua eloquência também era domesticada por uma disciplina ascética, Quando se achou pronto para erguer sua voz de novo, para falar de novo diante de homens, o brilhante retórico havia-se transformado num pregador da verdade de Cristo.
Sem que ele mesmo tomasse à iniciativa, em breve veio a ter uma oportunidade de provar teu mérito como inspirado pregador, O bispo Valeriano de Hipo Regis, no litoral, convidou o sábio que vivia como monge a passar alguns dias em sua casa, como seu hóspede. Durante sua estada em Hipona, Agostinho acedeu a pedidos insistentes do bispo e falou perante os fiéis cristãos da igreja local. Os fiéis ficaram profundamente abalados com seu sermão e não quiseram permitir que ele regressasse, Aclamaram-no padre e finalmente Agostinho teve de satisfazer-lhes à impetuosa exigência. Aceitou o lugar de assistente do velho bispo e depois da morte deste, em 395, sucedeu-lhe no cargo.
Hipona, a moderna Bona, estava bastante distante dos centros cristãos de Roma e Constantinopla. Naquele tempo sua diocese era de mínima importância. Graças, ostrabalhos de Agostinho, a cidade mudou-se dentro em breve num ponto focal de pensamento cristão, pois foi ali que se lançou o alicerce do desenvolvimento futuro inteiro do Cristianismo, não só como organização, mas também como doutrina religiosa. O que Agostinho, “papa no espírito”, ensinou e escreveu na sua remota sede episcopal, assumiu, a devido tempo, uma importância inferior apenas à da Bíblia Sagrada.
No começo do quinto século, tempo repleto de perigos para a unidade cristã, foi a inteligência superior de S. Agostinho que salvou a Igreja de tornar-se presa duma multidão de tendências cismáticas e de ataques desintegradores. Foi um tempo em que o paganismo tentou mais uma vez recuperar a hegemonia perdida. Enquanto Agostinho pregava o Evangelho em sua igreja de Hipona, os padres de Fauno estavam celebrando seu bárbaro festival das lupercais lá fora. As tribos setentrionais dos godos e dos vândalos tinham penetrado cada vez mais fundamente no coração do império. À própria existência deste estava em perigo, e a Igreja, já estreitamente vinculada ao Estado, em risco de ir abaixo com ele na derrocada geral.
Dentro da própria Igreja estavam igualmente em ação tendências destruidoras. Havia os donatistas, os “puritanos do primitivo Cristianismo”, que declaravam que um pecador não pode ser membro da Igreja é certamente que não padre ordenado. Estabeleceram uma Igreja nacional africana e os circuncélios, facção de donatistas caracteristicamente fanáticos, começaram a assaltar templos cristãos, apedrejaram padres ortodoxos e tentaram levar avante a causa de sua doutrina por toda espécie de meios terrorísticos. Em seguida houve todos aqueles vários movimentos heréticos, claramente em ascendência naquela época, cujas infindáveis controvérsias a respeito de detalhes dogmáticos serviam apenas para tornar confusa a clara significação das crenças originais cristãs. Junto ao maniqueísmo e ao arianismo, foi principalmente a doutrina do poder da vontade do monge britânico Pelágio que arrancou crescente número de cristãos para fora da velha Igreja. Os pelagianos negavam a importância da graça divina, como um meio necessário de salvação, e proclamavam uma autonomia absoluta da vontade humana.
O próprio Agostinho, que havia encontrado seu caminho para à fé cristã ortodoxa apenas ao fim duma longa odisseia espiritual, estava qualificado, como ninguém mais, a refutar todos esses ataques contra o dogma cristão. Seu conhecimento íntimo de todos os princípios do pensamento pagão capacitava-o a demonstrar, convincentemente, o absurdo de todos os argumentos favoráveis à restauração do paganismo. Seu passado de pecados e sua final conversão tornavam possível que ele falasse com experiência, quando tinha de provar o perigo e a falácia da ideia dos donatistas, de que todos os antigos pecadores deveriam ser expulsos da Igreja. Como antigo maniqueísta, conhecia a ilusória atração das doutrinas de Manes.
Voltando em pensamento ao tempo em que havia escutado em Milão os argumentos de Ambrósio, o poderoso adversário do arianismo, não lhe faltavam provas em apoio da divindade de Cristo. E o Pelagianos, finalmente, defrontavam nele um homem cujo pensamento tinha sempre girado em torno do problema da liberdade da vontade, de modo que muito bem certo de seu valor estava ele, bem como de suas limitações.
Na sua luta contra os heréticos, tanto sua habilidade como escritor, que o capacitava a compor seus tratados polêmicos, como seus talentos oratórios nele se conservavam em muito boa forma Em concílios eclesiásticos, em conferências e do púlpito, suas palavras estavam sempre repletas de tais poderes de convicção e inspiração, que até mesmo seus adversários não podiam deixar de ficar impressionados. Contudo, a aparência de Agostinho não era, em sentido algum, imponente ou vigorosa Não se parecia absolutamente com à figura que El Greco pintou, adaptando as proporções físicas de seus santos à sua estatura espiritual. Era antes pequeno e de aspecto insignificante. Até mesmo sua voz havia perdido sua ressonância, em virtude de anos de asma. Mas as coisas que esse homem pouco impressionante afirmava, num tom de voz surdo e chão, asseguravam a sobrevivência da Igreja Católica.
Às árduas tarefas de pregador e combatente do Senhor, eram agora acrescentados os variados deveres de primeiro pastor da diocese.
Agostinho ouvia confissões, despachava os negócios administrativos, dirigia o patrimônio de seu bispado, presidia julgamentos e encarregava-se de mil e uma outras coisas.
Durante o episcopado de Agostinho, no ano 410, Roma, a cidade santa da Cristandade, caiu nas mãos das hostes godas de Alarico. O perigo de ser governado pelos teutões migradores pendia largamente sobre o continente Africano. Os vândalos, acompanhando as pegadas dos godos, arrebanhavam-se na Espanha e estavam prontos, sob a chefia de seu rei Genserico, a romper em decisiva campanha contra a África do Norte.
No começo do ano 429, um exército de oitenta mil vândalos atravessou o estreito de Gibraltar e avançou África do Norte adentro.
Hipona foi uma das fortalezas que permaneceram por alguns tempos em mãos romanas. Colunas infindáveis de pessoas em fuga corriam para a cidade e as dificuldades daí resultantes davam a Agostinho oportunidade de revelar-se um protetor e organizador de primeira qualidade. Nas suas mãos a propriedade da Igreja tornou-se a propriedade dos necessitados. Alimentava os famintos, vestia os nus e resgatava os cativos. Sua ânsia de ajudar não conhecia limites; era tão ilimitada como a miséria e a desgraça humanas.
Finalmente a cidade de Hipona teve de sofrer a sorte de todas as outras cidades e burgos da África Setentrional. Em maio de 429, as tropas de Genserico cercaram-na e mantiveram-na em sítio. Dentro da cidade o bispo devotava cada hora do dia a seu trabalho de conforto e assistência. Tinha setenta e seis anos, Teve finalmente de ceder ao peso dos esforços. Uma febre mortal minava-lhe as forças. Sua vista enfraqueceu-se e os médicos proibiram-no de ler. Para seu consolo e edificação pediu que os salmos penitenciais do Rei Davi fossem escritos em grandes letras, sobre folhas de pergaminho que pudessem ser pregadas na parede fronteira à sua cama, onde conseguia vê-las até ao fim.
Em 28 de agosto de 430, enquanto multidões de vândalos, ébrias de vitória, martelavam às portas da cidade, Agostinho morria em sua casinha monacal, cercado de fiéis e de amigos que rezavam.
A vida de Agostinho como bispo de Hipona é, na sua grandeza simples, a contraparte santa dos anos confusos e turbulentos de sua vida anterior. E contudo esta última parte de sua vida é simplesmente o engaste para a grandeza verdadeiramente imortal desse santo, para a obra criativa de sua inteligência.
feio a lume no curso de sossegadas noites e das raras horas de lazer que o sobrecarregado pastor, administrador e combatente da fé tinha reservado para si mesmo. Com uma persistência infatigável sentado em sua celazinha monacal e cobrindo uma após outra as folhas de pergaminho, compôs livro após livro, uma obra-prima após outra obra-prima. Ali escreveu não só suas Confissões, mas inúmeros tratados, panfletos e ensaios sobre problemas de importância pedagógica, filosófica e epistemológica, sobre questões controvertidas de significação contemporânea, é sobre assuntos de administração e reforma eclesiástica. Uns duzentos e trinta e dois livros foram concebidos por este mais produtivo de todos os pensadores e autores Cem volumes reúnem as obras que ele deixou à posteridade. Representam uma verdadeira enciclopédia de todo o tesouro do pensamento do Cristianismo católico. Compendiou-o e criou-o em parte.
A influência de quase todas as obras compostas por Agostinho foi profunda e duradoura. Contudo as Confissões deste “pecador que se tornou um santo” não encontram rival na sua fascinação para os leitores modernos, o que devem em parte à sua incondicional honestidade e em parte ao profundo conhecimento psicológico, maravilhosamente agudo, de seu autor.
Os treze capítulos desta obra foram escritos em 377, cerca de dez anos depois da conversão de Agostinho. Neles o devoto bispo de Hipona voltava o olhar para o seu passado pecaminoso e pedia a Deus, com espírito de arrependimento, que ouvisse a sua confissão.
Sua apaixonada introspecção dava-lhe à coragem de penetrar as profundezas maisprofundas do grande profundum homo, do grande abismo chamado homem. Um homem, que podia bem ter dito que “nada do que diz respeito ao homem lhe é estranho”, dava ao mundo, na forma desses treze capítulos, a obra mais viva e mais magistral de auto-revelação que se possa encontrar na literatura de qualquer época ou país.
Os primeiros nove capítulos contam a história da vida exterior de Agostinho, de sua luta contra a carnalidade animal e sua natureza No décimo capítulo, Agostinho volta a sua atenção da vida exterior para a interior. Ele, que tinha em vão tentado descobrir a solução do enigma da personalidade, no tumulto da existência material, chegou aqui à conclusão de que a vida no corpo é fragmentária. E assim começou a investigar sua vida íntima, a fim de descobrir, na base da multiplicidade variegada do mundo fenomenal, a verdadeira unidade sua e de toda vida. Buscava sua própria alma, porque estava procurando Deus. O conhecimento de si, esperava ele, conduzi-lo-ia ao conhecimento de Deus. “Ó Senhor”, exclamava, “ajuda-me a perceber-Te. Ajuda-me a perceber-me. Pois compreendendo a Ti, ficarei conhecendo a mim mesmo. E uma vez que me compreenda, ficarei conhecendo a Ti. De modo que rogo-Te, ó meu Deus, que me faças descobrir a mim mesmo!”
Sua busca da verdade última fê-lo sensível às mais delicadas mudanças psicológicas. E a agudeza de sua observação casava-se a um poder de habilidade de expressão, que conseguiam descrever o indescritível com espantosa precisão e retidão.
Assim escrevia: “Voltava-me para dentro de mim mesmo e dizia a mim mesmo: Quem és? E respondia: Um homem, pois vemos aqui uma alma e um corpo em mim: um, fora, a outra, dentro. Por meio de qual dos dois devia eu buscar o meu Deus, por quem com auxílio de meu corpo tenha indagado, da terra ao céu, mesmo até onde era capaz de enviar os raios de luz de meus olhos em embaixada? Mas a melhor parte é a parte interior, à qual todos estes meus mensageiros corporais dedicam sua inteligência, como sendo o presidente e juiz de todas as várias respostas do céu e da terra e de todas as coisas que estão ali, que dizem: Nós não somos Deus e Ele nos fez. Estas coisas faziam meu homem interior conhecer por meio do homem exterior. E eu, o homem interior, conhecia tudo isso: eu, a alma, por meio dos sentidos do corpo, Graças à esta verdadeira alma ascenderei até Ele; remontarei além daquela minha faculdade por meio da qual estou unido a meu corpo e por meio da qual encho de vida toda a sua forma.”
Sua análise das impressões sensitivas, das sensações, das emoções e das ações voluntárias, todos os elementos flutuantes da consciência humana, não conduzia, porém, à derradeira e imutável personalidade. De modo que penetrou mais profundamente e alcançou o ponto fixo da consciência: a memória, “Cheguei”, escreveu ele, *aos campos e lugares espaçosos de minha memória, onde estão os tesouros de imagens inumeráveis, nela postos pelas coisas de toda espécie percebidas pelos sentidos. Há ali armazenado seja o que for além do que pensamos. No seu espaço desmedido estão igualmente armazenados os registros de minhas sensações. E ali também estão as coisas aprendidas e não ainda desaparecidas. Grande é a força da memória, excessivamente grande, ó meu Deus, um quarto vaso e sem limites.”
A excitação de um homem descobrindo um. novo continente não pode ser maior do que o espanto reverente que dominava Agostinho, o homem que explorava, pela primeira vez, os reinos vastos e desconhecidos da alma. “Maravilhosa admiração me surpreende, o espanto me domina diante disto! E os homens vão ao estrangeiro para admirar as alturas das montanhas, as ondas fortes do mar, as largas torrentes dos rios, o ritmo dos oceanos e as órbitas das estrelas e não olham para si mesmos.”
Logo, porém, reconheceu Agostinho que até mesmo a vasta extensão da consciência não bastava para resolver o enigma do eu. E tentou além dos limites dos poderes da memória. Avançou até à esfera do oblívio — o subconsciente — onde são conservadas as coisas que se despregaram da memória, mas permanecem ativas como causas e motivos de emoções e ações. E descobriu que os sonhos são o limiar que conduz ao reino desse outro eu.
“Ali viviam ainda, em minha memória”, escreveu ele, “as imagens de coisas tais como meu mau costume as havia ali fixado; e irrompiam pelo meu pensamento-embora sem forças — mesmo quando estava eu bem desperto. Mas no sono caíam sobre mim, não para deleitar apenas, mas principalmente como ações praticadas. Em tão alto grau predomina à ilusão daquela imagem, tanto na minha alma como na minha carne, que essas falsas visões me persuadem, quando estou dormindo, de um modo que as verdadeiras visões não podem fazer quando estou desperto. Não sou eu mesmo naquela ocasião, ó Senhor meu Deus? E contudo há bastante diferença entre mim e eu mesmo no momento em que passo da vigília ao sono, ou regresso do sono à vigília. Onde está minha razão naquela ocasião pela qual minha mente quando está desperta, resiste à sugestões tais como essas? Está adormecida com os sentidos de meu corpo?
“Através de tudo isso corro e avanço o mais longe que posso e não acho fim. Tão grande é à força da vida no homem mortal. Ó meu Deus, que terrível segredo, uma profunda e ilimitada multiplicidade E esta coisa é o espírito, isto sou eu, eu mesmo! Que sou eu então? Que natureza é a minha? Uma vida variada excessivamente imensa!
“Quem resolverá esse enigma, quem concebe o que ele significa?
Eu, pelo menos, mourejo verdadeiramente dentro dele, sim, e mourejo dentro de mim mesmo; tornei-me um duro solo, exigindo abundância de suor da fronte. Pois não estamos agora descobrindo as regiões do céu, ou medindo as distâncias das estrelas, ou inquirindo os movimentos da terra. Trata-sé de mim. Eu... meu espírito!”
Agostinho, o santo da primitiva era cristã, na sua tentativa de encontrar Deus no mecanismo de seus sentidos, instintos e emoções, havia alcançado o limite que separa o consciente dos domínios subconscientes da alma. Com esta descoberta antecipou muita conclusão importante da Psicologia e da Filosofia modernas, tais como a definição da memória, de Bergson, e a doutrina do subconsciente de Freud.
Se Agostinho tivesse sido simplesmente um investigador curioso da alma humana, nunca teria tentado ir além dos limites da compreensão racional. Na prossecução de sua busca de Deus, porém, tinha que ir adiante, pois todos os resultados e conclusões até ei tão obtidos, não constituíam em absoluto uma resposta satisfatória às perguntas reativas a “Donde” e “Por que” a respeito de Deus, o Criador e causa última de todas as coisas existentes. Pois sem tal resposta todo seu conhecimento da alma humana permanecia fragmentário e o progresso na instrospecção, que ele tinha realizado, era simplesmente parte do caminho para a verdade eterna, que jaz para além dos limites de uma vida individual.
“Com meus sentidos exteriores”, escreveu ele, “tão bem quanto me era possível, passei em revista este mundo, observando à vida que o corpo tem de mim e esses sentidos de mim mesmo. Desde aí voltei-me decididamente para os apartados quartos de minha memória, para aqueles numerosos e vastos aposentos, tão maravilhosamente repletos de inumeráveis provisões, e considerava e ficava tomado de espanto, não sendo capaz de discernir coisa alguma, sem “Teu auxílio e não encontrando à Ti mesmo em nada de tudo aquilo, Não era eu tampouco descobridor daquelas coisas, eu, que passava por cima de todas elas, e que agora me esforçava para distinguir e avaliar cada coisa de acordo com o mérito próprio de cada uma delas: recebendo algumas coisas com meus sentidos deficientes e indagando, sentindo outras coisas misturadas com o meu próprio eu. Sim, e tomando particular conhecimento dos próprios relatores e logo em seguida examinando a fundo algumas coisas amontoadas no vasto tesouro da minha memória, armazenando algumas delas ali de novo e retirando para meu uso algumas outras. Não era tampouco eu mesmo, isto é, minha própria aquela habilidade, mediante a qual eu o fazia, nem eras Tu, pois Tu és aquela luz que nunca se apaga, que eu consultava relativamente a todas aquelas coisas para saber se elas existiam, o que eram e como deviam ser avaliadas.”
Mas depois “uma força espiritual, que o próprio pensamento era incapaz de conter”, veio em seu auxílio e capacitou-o a olhar para além do “vértice de seu eu”. E reconheceu o derradeiro motivo e causa que não era mais idêntica com qualquer coisa dentro dele, mas era uma força duma classe toda sua e chamada pelo nome de Deus.
E assim surgiu a concepção agostiniana de Deus, de acordo com a qual o Criador precede a todo conhecimento humano e existe independente da habilidade do pensamento humano em conhecê-Lo.
O transitório contato com Deus, que Agostinho tinha outrora experimentado, juntamente com sua mãe, pelo breve espaço de tempo duma conversa, tornara-se agora parte permanente de seu cabedal de conhecimento.
Nos derradeiros capítulos das Confissões, o pensador analista deu lugar ao místico. Aqui Agostinho não mais relatou o que tinha pensado, mas o que tinha visto. Escreveu a respeito do finito que toca o infinito, a respeito do tempo, que se muda em eternidade, e a respeito do eu que alcança Deus. Esta visualização da alma humana misturando-se com as ações de Deus, como a descreveu nas Confissões, teve uma forma ainda mais poderosa na obra de Agostinho Da Trindade. Aqui investigou de novo a estrutura básica da alma humana e a concebeu como trina e una em todas as suas manifestações; e todas as séries ternárias, que ele estabeleceu — tais como ser, conhecer, querer, pensamento, consciência, amor — impressionaram-no como modeladas de acordo com a natureza da Divindade Trina.
“Dum modo miraculoso”, escreveu ele, “o homem interior traz nestas três forças a imagem de Deus impressa no seu ser.”
A sabedoria de Agostinho não era apenas produto de deduções abstratas. Consistia em verdades descobertas pela experiência, em leis que governavam a alma e o pensamento do homem e que ele havia decifrado na própria vida.
Descendo assim às profundezas mais escuras de sua alma humana, é também de toda alma humana, e ascendendo, ao mesmo tempo, aos seus mais elevados picos, donde descortinava em mística visão os derradeiros limites de seu reino, abarcou toda a extensão do pensamento humano e das humanas emoções. O que ele descobriu por si mesmo e em si mesmo acresceu imediatamente em benefício de toda a humanidade. À medida que expandia os limites de sua própria vida interior, expandia igualmente os limites intelectuais e espirituais da humanidade. "Não é o meu coração o coração do homem?” escreveu ele.
Na história do pensamento ocidental é o padre da primitiva Igreja Cristã, S. Agostinho, quem deve ter a seu crédito o ter sido o primeiro a investigar a vida interior do homem, e assim é possível ver nele o fundador da moderna Psicologia.
Quando Agostinho escreveu suas Confissões, mil anos tinham-se passado desde que Heráclito, o “Filósofo Sombrio”, o “Pai da Metafísica”, havia escrito como uma de suas cento e trinta e três máximas a frase: “Busco a mim mesmo.” Quase ao mesmo tempo, no quinto século antes de Cristo, o portal do templo de Apolo em elfos ostentava a inscrição: “Conhece-te a ti mesmo!” Mas a frase de sapiência de Heráclito e a inscrição de Delfos também eram pouco mais do que frases bonitas, e até mesmo Sócrates, o maior pensador da Antiguidade, teve de admitir: “E contudo não sou capaz de conhecer a mim mesmo, como a máxima de Delfos manda que eu faça.”
O espírito de investigação dos antigos, que se distribuía por todo o Universo, prestava pouca ou nenhuma atenção ao enigma da alma humana. Nada há em toda a literatura dos antigos gregos e romanos que se possa de qualquer modo comparar com a análise interior das confissões de Agostinho. Quando os antigos falavam a respeito de si mesmos faziam-no para justificar seus atos ou para estabelecer seus direitos à fama e à gratidão. Tudo quanto tinham a dizer à respeito de si mesmos relacionava-se ao "homem exterior” e nunca conduzia a uma revelação da natureza essencial e intima deles. Marco Aurélio, o “filósofo do trono”, escreveu, é verdade, suas famosas Meditações, mas mesmo estas são antes um comentário de espécie geral sobre a sua moral e seus princípios éticos.
Somente através do Cristianismo, cujas doutrinas assinalavam importância superior à alma humana, individual, foi possível despertar no homem o desejo da verdadeira introspecção. Somente a consciência cristã, que se sentia responsável perante Deus por seus atos e pensamentos, podia levar a confissão no pleno sentido da palavra.
E Agostinho, o pecador no caminho para a santidade, que conhecia todas as profundezas do inferno e as alturas do céu, é o primeiro “auto-pesquisador” e “auto-revelador” de verdadeira grandeza.
Mil anos separavam as Confissões de Agostinho da máxima de Heráclito e outros mil anos tinham de passar-se antes que as Confissões realizassem a reorientação no curso do pensamento humano, que lhes dá sua grande importância histórica.
Os ensaios teológicos de Agostinho assumiram imediata importância dogmática para toda à Cristandade, mas as formas puramente especulativas de pensamento da era bizantina e também dos séculos que se seguiram de escolasticismo medieval, cujo principal objetivo era estabelecer uma definição teologicamente sem falhas do conceito de Deus, não estavam equipadas para alcançar uma apreciação justa das Confissões. Somente a Renascença, com suas tendências individuais, esteve finalmente pronta para aceitá-las com simpatia e compreensão. Não se trata por certo de mera coincidência que tivesse sido Petrarca-o protagonista do individualismo renascentista — quem descobriu o gênio da auto-análise, S. Agostinho, e seguiu seu exemplo.
Petrarca, o poeta do Cancioneiro, era tão tipicamente moderno, nas suas emoções e reações, que empreendeu a ascendio duma montanha simplesmente porque gozava ao mesmo tempo da paisagem e do exercido físico. Em 81 dê abril de 1836, galgou o Monte Ventoux, o mais alto pico nas vizinhanças de Avinhão, no vale do rio Ródano. Foi uma ascensão difícil, e quando atingiu o cume e seus olhos embriagaram-se da sublime paisagem alpina, decidiu-em verdadeiro estilo da Renascença — que não só seus sentidos, mas também sua alma devia participar da grandeza do momento. Abriu por acaso o volume das Confissões, que levava consigo a toda parte aonde fosse, e deu com a vista nas linhas: “E os homens vão ao estrangeiro para admirar as alturas das montanhas, mas não olham para si mesmos.” E sentiu que isto havia sido escrito para ele.
“Decidi”, escreveu ele à respeito desse acontecimento, “que já havia visto muito da montanha e voltei meu olhar interior para mim mesmo. No silêncio, contemplei nossa grande falta de vista interior, quando, desdenhando de nossa mais nobre parte, perdemo-nos em multiplicidade e buscamos fora aquilo que podemos encontrar dentro de nós. Quantas vezes durante este memorável dia circunvaguei a vista para ver o cume da montanha e parecia-me que media apenas poucos pés, comparada com a elevação da auto-reflexão interior.”
Sua experiência no Monte Ventoux marcou decisiva viravolta no curso da vida de Petrarca. Até então este poeta tinha vivido no completo abandono às alegrias da existência mundana, mas agora retirou-se para a solidão de Vaucluse, onde passou sua vida em confissão penitente e em introspecção.
Nas suas próprias “Confissões”, o Segredo, ou o Conflito entre a Alma e a Paixão, escolheu S. Agostinho como imaginário padre confessor e guia. A ele confessava seus mais secretos instintos, sua vaidade e sua ânsia de fama e de proveito e a inércia de seu coração. E Agostinho, o imaginário interlocutor desse diálogo, advertia-o e encorajava-o ma sua busca da verdadeira bem-aventurança duma vida inspirada em Deus.
Todas as derradeiras obras de Petrarca e particularmente seu ensaio De Vita Solitaria estão cheias do espírito de S. Agostinho.
Petrarca foi o mais renomado poeta de seu tempo. Sua conversão e o exemplo que dava de “estar embriagado pelo milagre vivo do próprio eu e ávido de comunicar o resultado do seu estudo” exerceram determinada influência em seu tempo e contribuíram substancialmente para o desenvolvimento da mentalidade tipicamente renascentista. Chamou de novo à atenção para seu grande modelo, Agostinho, e só então chegou o tempo em que as confissões deste antigo santo cristão puderam com justiça ser olhadas como um dos mais poderosos fatores determinantes do curso da história espiritual do Ocidente.
Uma verdadeira inundação de confissões e auto-análises se seguiu. Terônimo Cardano empregou todo o seu cuidado científico e precisão na investigação de seu próprio eu. Benvenuto Cellini, o facho, cuja autobiografia exerceu tão grande fascinacão sobre homens como Goethe e Oscar Wilde, tentou sobrepujar S. Agostinho, “o mestre da confissão”, pela franqueza extrema da história de suas façanhas vergonhosas. Jean-Jacques Rousseau chegou mesmo a tomar o título da famosa obra de Agostinho para as suas próprias Confissões, Dirigindo-se à Razão, a nova deusa do século XVIII, exclamava: “Divulguei a parte mais íntima de mim mesmo, como somente Vós, Ser Eterno, à tendes visto!” E cheio de vanglória acrescentava: a obra que realizei é sem exemplo, e ninguém jamais será capaz de imitá-la. Mostrarei ao mundo um homem na plena verdade de sua natureza, e serei eu este homem, eu só!” As Confissões de Rousseau tornaram-se, a tempo devido, a inspiração para toda a literatura de confissões da era do romantismo francês. De Musset, Alfredo de Vigny, Vítor Hugo e Madame de Staél rivalizavam uns com os outros na revelação de seus eus mais íntimos. Partindo da França, a febre confessional logo afetou a Inglaterra e à Alemanha, onde auto-análises objetivas tomaram cada vez mais frequentemente o lugar da efusão emocional.
Mas todos eles, franceses, ingleses e alemães, foram ofuscados no fervor e na perseverança pelo notável professor suíço de Estética, o genebrino Henrique Frederico Amiel, que renunciou à vida real, a fim de poder descrever à vida de seus pensamentos e emoções. Este mártir da auto-revelação passou trinta anos em completa reclusão e compôs, durante esse tempo, uma obra gigantesca de quarenta e oito volumes, consistindo em dezesseis mil e novecentas páginas, inteiramente dedicadas à observação de seu íntimo eu.

O século XIX veio a ser o maior século de literatura confessional.
O filósofo dinamarquês Kierkegaard, os russos Dostoiévski e Tolstói, o inglês De Quincey e o dramaturgo sueco Strindberg — para mencionar apenas alguns —, todos eles apresentaram ao mundo análises emotivas e penitentes, ou simplesmente descritivas, de sua vida íntima.
No século XX, a forma literária das confissões passa a ser o romance autobiográfico, suficientemente caracterizado pela simples menção de homens como Marcelo Proust, James Joyce e Luís Fernando Céline.
Contudo, por mais que a literatura de mil e quinhentos anos, decorridos desde o tempo de Agostinho, possa ter enriquecido e alargado o conhecimento do homem de si mesmo, nenhuma das obras posteriores logra igualar o poder daquele gênio antigo, “olhando para além do vértice de seu eu” e descobrindo para lá dos limites do indivíduo efêmero os aspectos gerais e eternamente válidos da alma humana: 0 aeternum internum. Assim as Confissões de Agostinho continuam a ser o que outrora foram chamadas, “uma obra de grandeza solitária.
De igual significação para o desenvolvimento espiritual da civilização ocidental foram os vinte e dois livros da obra de Agostinho A Cidade de Deus, a Civitas Dei. A composição desta obra foi começada em 413, três anos depois da queda de Roma. Agostinho trabalhou nela, com interrupções, durante catorze anos. Foi concebida para satisfazer uma sugestão feita pelo amigo de Agostinho, Marcelino, tribuno cristão de Cartago. Seu propósito era refutar a acusação feita, nos arraiais pagãos, de que a introdução da fé cristã havia encolerizado os deuses e era responsável pela queda de Roma. Nesta obra Agostinho começou com uma discussão da luta pela cidade eterna, mas, ao tratá-lo, este acontecimento histórico assumiu uma importância mais do que histórica. Seu problema pessoal da luta do bem e do mal foi apresentado como o problema básico para toda a humanidade e mesmo para toda a vida sobre a terra. Numa magnífica síntese dos fenômenos divinos e seculares fez dela uma concepção universal e oniabrangente. Confrontava a cidade mundana de Roma com a cidade celestial de Deus, a civitas com a civitas Dei, e dividia toda a humanidade em cidadãos de duas comunidades rivais, os habitantes da cidade de prazeres carnais e os da cidade do espírito.
As forças do mal eram mostradas no homem, em suas decorrências sociais, como fluindo duma orientação egoística da vontade, o que constitui sempre uma violação da lei e da significação do todo, uma aberração no sentido dos interesses privados e individuais. Sob a lei do mal, argumentava Agostinho, a riqueza que é dada ao indivíduo, como um meio ou um instrumento, torna-se um alvo e um fim em si mesmo; o que devia servir para ajudar o homem na sua aspiração pelo bem mais alto torna-se um abuso pela tentativa individual doenriquecimento próprio. Na cidade ideal de Deus, vista por Agostinho, vida de comunidade, relações sociais, justiça, Estado e Igreja são sempre avaliados na sua relação com o infinito: as coisas que estão ligadas no tempo, no espaço e na matéria são feitas para tomar seu lugar, dentro da moldura dos eternos planos de Deus.
Numa interpretação de impulso visionário, Agostinho seguiu no encalço da origem do mal além do tempo e da existência material, até ao momento metafísico da criação do homem, até ao fato de sua ingênita corrução; e igualmente até à estabilização final do direito e do erro no Dia de Juízo. O conflito do bem e do mal assumiu assim o caráter dum drama cósmico, ocorrendo nas esferas para além do tempo e do espaço, onde se encontraram as origens e o Dia do Juízo Final.
À Cidade de Deus, de Agostinho, tem toda a fascinação de uma das mais notáveis obras de literatura. Nela as mais ousadas visões e as narrativas mais realísticas trabalham suavemente juntas, para invocar as mesmas imagens os relatos contemporâneos do campo de batalha e da sorte dos anjos decaídos, a história romana e a história da criação, anedotas do tempo e acontecimentos eternos misturam-se na proclamação da mesma verdade.

A Cidade de Deus serviu de modelo para todas as posteriores teorias de política mundial da Igreja. Foi a obra favorita de Carlos Magno e engendrou nele a ideia do Santo Império Romano. Mas também as grandes utopias políticas dos passados mil e quinhentos anos tiraram sua inspiração desta obra de Agostinho.
As idéias expostas na Cidade de Deus não perderam sua oportu- nidade até hoje. Quando Agostinho condenava o imperialismo e a guerra, quando estipulava o extremo ideal de paz e igualdade de todos os homens de boa vontade, sem olhar raça, nacionalidade ou credo, dirigiase a todos os tempos, inclusive ao nosso.
Haverá dificilmente um problema de importância profundamente humana que Agostinho não haja abordado em alguma parte de sua variada é volumosa obra. Fosse o problema do tempo, da origem da linguagem, da música ou da medicina, em qualquer parte Seu pensamento ultrapassava os limites de seu tempo e antecipava as conclusões dos mais avançados pensadores do presente. Concebeu o fenômeno do tempo como uma forma especial de consciência e podia muito bem ser considerado um precursor de nosso moderno relativismo. Em termos dum sabor estranhamente moderno, falou da linguagem, como duma cristalização das formas inconscientes de pensamentos e arquétipos. Investigando as causas e a natureza -dos estados mórbidos, estabeleceu certa interdependência da alma e do corpo é concluiu — novamente antecipando-se às ideias modernas — que os distúrbios físicos podem levar à anomalias mentais e psíquicas. Discutiu a misteriosa afinidade da alma humana e da arte da música com tão delicada compreensão, que sua argumentação merece o mais completo respeito dos teoristas musicais de hoje.
Dificilmente poderá causar surpresa o fato de não ser toda a obra de Agostinho destituída de antíteses e contradições. Enquanto que ele, porém, estava profundamente certo da “beleza dos polos contrários”, que seu gênio conseguia visualizar como um todo orgânico, seus herdeiros espirituais não foram capazes de qualquer coisa dessa espécie. Não prestando atenção ao contexto mais amplo, tiravam fragmentos destacados de sua obra e os expunham como representando a extrema verdade agostiniana. Em resultado disto a doutrina de Agostinho foi feita suporte e complemento dos princípios básicos das mais variadas e até mesmo das mais opostas tendências do pensamento.
A sabedoria de Agostinho inspirou o “derradeiro pensador romano”, Boécio, a escrever no século VI as meditações puramente filosóficas de sua obra De Consolatione Philosophiae, ou A Consolação da Filosofia.
As análises especulativas de Agostinho da ideia de Deus tiveram profunda influência sobre o escolasticismo medieval, essa tendência de pensamento que tentava forçar caminho por meio da razão para o reino sobrenatural das verdades reveladas. Sua experiência de Deus inspirou o misticismo cristão, essa outra tendência que ensinou a importância da razão e descobriu o conhecimento verdadeiro de Deus, por meio da graça em visões extáticas.
Scott Erigena, Abelardo e Anselmo de Cantuária, bem como Bernardo de Clairvaux e Mestre Eckart confessaram sua dívida a Agostinho, o primeiro grande mestre do pensamento racional e o primeiro grande representante do misticismo cristão. Tomás de Aquino, único par de Agostinho, entre os vários pensadores cristãos de genuína grandeza, invocou no começo de sua Summa Theologiae precisamente a autoridade de Agostinho, para mostrar que não estava obrigado a aceitar com fé cega cada uma das palavras que Agostinho dissera.
A Doctrina Christiana de Agostinho, o mais antigo compêndio pedagógico do mundo ocidental, serviu durante a Idade Média co- mo a última autoridade em assuntos de educação e forneceu as bases sobre as quais foram construídas as primeiras universidades europeias.
Os grandes humanistas, cuja visão intelectual rompeu com o pas sado escolástico e marcou o começo dos tempos modemos, encara- vam não obstante Agostinho como seu antepassado espiritual. Para eles, era o primeiro universalista cristão, o primeiro pensador cristão em cujo espírito se perfizera uma harmoniosa fusão do pensamen- to clássico e cristão; e desde que, de acordo com eles, fora graças a Agostinho que 0 conhecimento se clevara à posição de virtude cris- tã, olhavam-no como o fundador da civilização cristã em geral.
A Renascença honrou como o emancipador do eu e da individualidade, Quando nova forma de platonismo surgiu, para retomar a luta contra a tradição aristotélica da Idade Média, apelou para a autoridade de S. Agostinho, olhando-o como o grande cristão graças a quem a tradição platoniana fora preservada e enriquecida,
Os defensores católicos da ideia de que a Santa Igreja é indivisível e una e que a parte que ela desempenha como mediadora entre o homem e Deus é indispensável e não pode ser substituída, bem como os representantes da Reforma, que combateram contra à tradição e a ditadura da Igreja, pelo direito de descobrirem Deus os cristãos livres em suas próprias almas, invocaram o apoio da autoridade agostiniana. É olhado como pai da ortodoxia e, ao mesmo tempo, como precursor da Reforma. Wycliffe e Huss recorriam a ele e Lutero considerava-o como a estrela polar da fé cristã purificada. A doutrina protestante da preeminência da fé sobre as boas obras, da graça sobre a razão, é basicamente uma doutrina agostiniana
No grande conflito entre jansenistas e jesuítas, em que uma facção combatia pela ideia da predestinação e a outra pelo princípio do livre arbítrio, ambos os lados invocaram o apoio da autoridade de S. Agostinho.

Para justificar sua perseguição aos dissidentes heréticos, a Inquisição recorria à resistência de Agostinho contra os donatistas, e os posteriores protagonistas da liberdade de consciência tiravam seus principais argumentos dos escritos agostinianos.
O fervor religioso do Barroco derivava sua inspiração do sentimento religioso de Agostinho. Era o protótipo da apaixonada devoção deles e os artistas dessa era gostavam de adornar seus altares e pilares com a figura de Agostinho, simbolicamente representada com um homem segurando na mão direita o coração flamejante.
Não é absolutamente difícil rastrear os princípios do racionalismo cartesiano nas obras de Agostinho. O famoso axioma de Descartes, o fundador da Filosofia moderna, “Cogito ergo sum”, “penso, logo existo”, foi antecipado por Agostinho em suas Confissões, bem como na Cidade de Deus. Espinosa, cuja filosofia foi uma continuação da de Descartes, caminhou igualmente nas pegadas de S. Agostinho. Ele também considerava o conhecimento de si mesmo como o primeiro estágio no conhecimento de Deus pelo homem e louvava esta verdade como a chave para a felicidade perfeita. Sua assertiva de que “o finito e o infinito são um em Deus” é não só caracteristicamente espinosiana, como agostiniana.


1, Há grande diferença entre a doutrina católica e a dos cristãos separados sobre à Fé e as boas obras, a graça e à natureza. Para o católico há absoluta transcendência da Fé sobre as boas abras. O primeiro liame que liga o católico à Cristo é realmente à Fé Sendo um dom de Deus, é a Fé independente do esforço humano. A santificação, antes de ser um esforço humano para Deus, é sobretudo e antes de tudo, uma descida de Deus até nós. O Evangelho é claro: "Sem Mim nada podeis fazer.” "Ninguém vai ao Pai a não ser atraído por Ele” Não são portanto as obras antes da justificação que nos salvam. São a Fé é o Batismo: "Quem crer e for batizado, este se salvará.
Entretanto, uma vez que o homem foi elevado pela graça, que suas faculdades (inteligência e vontade) foram divinizadas sem por isto terem sido mutiladas, é necessária a sua cooperação puramente humana, mas impregnada de força Deus de Sua graça. S. Agostinho jamais negou essa necessidade de cooperação da parte do Homem, pois não ignorava as palavras do apóstolo Pedro:
"pelo que, irmãos meus, ponde cada vez maior diligência em garantir a vossa vocação e eleição, por meio das boas obras.” (IIPd 1,10). O próprio S. Agostinho comenta belamente o texto de S. Paulo, "completo em mim o que faltou à “Paixão de Cristo”: 'Cristo”, escreve ele, “sofreu tudo o que deveria sofrer; nada falta à medida de Sua paixão; sim a paixão está completa, mas na Cabeça; resta ainda a Paixão no Corpo”. E Pascal faz-se eco do Doutor da Graça, quando diz: “Cristo estará em agonia até ao fim do mundo."
Se S, Paulo afirma que de nada valem as obras para justificação, refere-se às anteriores à graça. São Tiago também fala das mesmas necessárias à justificação, mas posteriores à graça. (N. do T.)


Se se pode seguir à trajetória da influência de Agostinho nas obras, praticamente, de todos os grandes filósofos dos tempos modernos, é ela particularmente visível no caso da chamada escola romântica de Filosofia. Pascal, o grande iniciador desta tendência, no século XVII, deveu, em grande parte, seu progresso ao precedente de S. Agostinho. Como celebrado prodígio em Matemáticas, voltou subitamente as costas a esta ciência, rompeu suas ligações sociais, abandonou a perspectiva dum casamento extremamente proveitoso e retirou-se para a abadia de Port-Royal, onde levou uma vida de renúncia, profundamente absorto no estudo das obras de Agostinho. A inegável grandeza de seus Pensamentos não está afetada pelo fato de serem muitas vezes meras variações dum tema de Agostinho.
Os filósofos românticos dos séculos XVIII e XIX voltavam-se conscientemente para o padre da Igreja do século IV. Isto é espantosamente aparente no caso do filósofo dinamarquês Kierkegaard e do francês Malebranche. O Cardeal Newman, por último, que ensinava que Deus está imanente na alma humana, tem sido justamente citado como “Augustinus redivivus”.
Com exceção de Platão, nenhum outro pensador exerceu tão variada e febril influência sobre o pensamento ocidental como Agostinho. Seu pensamento, suas deduções e conclusões foram o destino da civilização europeia. Estão vivos ainda hoje.
Ele começou como um inquieto “bom para nada” de Tagasta...

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