O Anjo da Luz

Pe. Julio Maria espiritualidade

Respostas a temas polêmicos como fim do mundo, origem humana, evangelhos, papas, dogmas, providência, predestinação, vocação...

O Anjo da Luz

ou Polêmicas de doutrina, de ciência e de bom senso

Sobre questões de teologia popular

PELO

Padre Júlio Maria

Missionário de N. S. do SS. Sacramento

SEGUNDA EDIÇÃO

Revista pelo autor

Editora Vozes - Petrópolis, Estado do Rio

 

 

NIHIL OBSTAT. PETROPOLI, 6 JUNII, 1935.

FREI JOÃO JOSÉ P. DE CASTRO, O. F. M.

CENSOR.

R E I M P R I M A T U R

POR COMISSÃO ESPECIAL DO EXMO. E REVMO. SR. BISPO DE NITERÓI, D. JOSÉ PEREIRA ALVES. PETRÓPOLIS, 12 DE AGOSTO DE 1935.

FREI OSWALDO SCHLENGER.

O. F. M.

 

 

APROVAÇÃO

de S. Excia. Revma. D. Carloto da Silva Távora, DD. Bispo de Caratinga

Meu caro Padre Júlio Maria,

V. Rvma. pede-me o Imprimatur de seu novo livro "0 anjo da luz", ou polemicas de doutrina.

Com muito prazer e grande satisfação dou este Imprimatur, porque conheço o bem imenso que estão fazendo os seus livros, como conheço o fundo doutrinal, seguro, claro e penetrante de suas exposições, refutações e respostas.

O novo livro é digno de seus irmãos mais ve­lhos. É-lhes até superior, em certos pontos; pois, ao lado da doutrina Católica, sempre luminosa sob a sua pena, hà, na presente obra, um lado científico de uma rara penetração.

Sente-se sempre a mão vigorosa do lutador, a lógica formidável do polemista, a doutrina admirável do teólogo, mas ha além disso, no presente volume, a ciência clara e penetrante do homem de estudo, que não se limita aos ramos da ciência divina, mas penetra nas ciências humanas, com uma agilidade e uma segurança que excita a admiração dos próprios cultores e especialistas na matéria. No presente livro, por exemplo, muitos católicos como acatólicos têm que aprender muitas coisas, que se não as ignoravam, não compreendiam, entretanto, com a lucidez que o caso o Anjo da Luz comporta, e que está aí tratado com rara perspicácia, vigor e documentação.

Possa a sua pena alerta, formidável, continuar a produzir tais obras, que reputo uma glória para a Diocese de Caratinga, para o Brasil e a Religião.

Meus parabéns, caro Padre Júlio Maria.

O bom Deus abençoe os seus trabalhos e obras para a gloria de Deus, o triunfo da Santa Igreja, e o progresso da ciência verdadeira.

 

Humilde servo

 + CARLOTO, Bispo de Caratinga.

 

 

 

INTRODUÇÃO

As polêmicas são, hoje, uma necessidade.

A impiedade, rabugenta, bolchevista, lança por milhares os seus boletins, avulsos, infames, tanto pelo ódio e a calúnia, como pela má fé e a ignorância. Nada é respeitado: Deus, a Igreja, os pa­dres, a moral, a sociedade, a família, tudo é vilipendiado e blasfemado pelo sofisma grosseiro dos solários anticristãos.

A Igreja de Deus vivo, coluna e firmamento da verdade, no dizer do Apóstolo (1Tm3,15), pelos lábios de seus ministros, que são os depositários da verdade (Ml2,7), levanta a voz para repelir o erro e a impiedade e fazer resplandecer a verdade deturpada, pela refutação aos contraditores (Tt1,9).

É a fonte das polemicas religiosas.

É a defensiva das verdades divinas e é também a ofensiva contra os erros do sectarismo.

Tais polêmicas são uma necessidade para o pleno conhecimento das verdades religiosas.

É do choque que surge a luz!

É sob os ataques do erro que a verdade se levanta mais resplandescente e mais bela. Os inimigos da Igreja tornam-se deste modo os seus panegiristas involuntários.

Nas polêmicas que se seguem, as quais são, geralmente, respostas às consultas ou refutação a artigos de ataque, ou de boletins, tenho procurado ser claro, ao alcance de todos, penetrando no amago das questões mal interpretadas, e considerando o assunto sob as diversas faces, para não deixar subsistir nenhuma sombra, nenhuma duvida.

Cada capitulo é um estudo sucinto mas completo do assunto explicado.

Tenha o leitor a paciência de ler estas polêmicas, e tenho a certeza que deixarão em seu espírito ideias claras, fundadas, sobre os casos estudados, e em seu coração amor à verdade exposta.

São ainda respostas irrefutáveis, dirigindo­-se, entretanto, a uma classe mais científica de leitores, mais afeitos às questões psicológicas ou doutrinais do que os volumes precedentes de refutações aos erros protestantes e espíritas. Fazer conhecer a única Verdade... refutar os diversos erros que deturpam a verdade, e deste modo levar as almas a Deus, pelo ensino infalível da Igreja: tal é o único fim do autor.

 

P. Júlio Maria

 

 

 

PRIMEIRA POLÊMICA

Uma celebre profecia acerca do fim do mundo.

As profecias sempre interessam, porque o homem tem uma tendência natural a querer co­nhecer o futuro.

Mas quantas profecias correm este mundo, sem fundamento algum, tendo apenas o mérito de serem escritas em palavras meio veladas, com expressões sibilinas, e uma generalidade de termos que se aplicam a todos os casos.

Ha uma profecia católica, de uma impor­tância sem igual, de uma precisão assombrosa, e de uma realização integral, de séculos, sem contradição: É a profecia de S. Malaquias, arcebispo de Armazo, na Irlanda, morto em 1118.

Essas profecias foram publicadas pela primeira vez, em Veneza, no ano de 1595, sob o reinado do Papa Clemente VIII, de modo que ficaram, depois de feitas pelo santo, como que sepultadas durante 455 anos.

 

1 - O que são tais profecias

Ora, fato curioso, que é já uma prova de sua veracidade, é que tais profecias prediziam admiravelmente os pontificados de cada um dos papas que se sucederam de 1153 a 1595, do Papa Anastásio IV até Clemente VIII, tendo havido neste intervalo 63 Papas.

Mas o documento não se limita até aí; continua as profecias até ao fim do mundo, citando de Clemente VIII, até ao fim, mais outros 36 Papas; de modo que a lista completa dos Papas, de São Pedro até ao último, Pedro II, seria de 270 Papas. Cada profecia consta de uma breve le­genda, em que se salienta em traço sintético a personalidade de cada Papa e a sua influência nos acontecimentos mundiais.

As coincidências entre os fatos e a expressão destes dísticos proféticos têm sido notáveis, muitas vezes flagrantes e perfeitamente justas, e, muitas vezes, por obscuras que pareçam, são perfeitamente adaptáveis aos fatos.

Por bem certo é que a critica se aplicou a essas profecias e, com bons argumentos, discutiu a sua probabilidade e autenticidade; nada obriga a prestar-lhes fé, mas nem por isso elas deixam de ser um documento curiosíssimo e merecedor de atenção observadora, um desses documentos de gênero pouco comum e que assume o aspecto de um problema.

As profecias de S. Malaquias sofreram em tempo um enxerto. Em 1899, Roger Lister, pseudônimo do visconde de Poli, antigo zuavo pontifício, publicou os restantes dísticos de S. Malaquias, acompanhados da indicação do nome de cada Papa e de um pequeno comentário em italiano.

Roger Lister explicou que desde muito tempo conhecia tal comentário, e quem lho dera a conhecer afirmara tê-lo recebido de um santo religioso de Pádua, que morrera nonagenário nos primeiros anos do pontificado de Leão XIII.

II - A lista dos Papas

Examinando de perto o traço sintético de cada Papa, fica-se espantado da perfeita semelhança entre a profecia e o fato.

PAPA PIO VI

Quem negará que Pio VI (1775) mereceu bem o dístico de - peregrinus apostolicus - quando se sabe bem que o infeliz pontífice, depois de uma peregrinação dolorosa, foi morrer no exílio em Valença?

PAPA PIO VII

Teve o - aquila rapax (aguia rapace) - alusão claríssima a Napoleão, que despojou o Papa de seus estados e o teve sob suas garras de ferro.

PAPA GREGORIO XVI

Gregorio XVI pertencia à ordem que Romualdo fundou em Balnes, na Etrúria, e o seu qualificativo era: - De Balneis Etruriae.

PAPA PIO IX

Pio IX teve a legenda: - Crux de cruce - e a vida desse glorioso pontífice foi, de fato, uma dolorosíssima e pesada cruz.

PAPA LEÃO XIII

Leão XIII, que foi a mais brilhante cabeça dos tempos d'agora, por isso e ainda por seu escudo d'armas, mereceu bem a legenda: - Lumen in caelo.

PAPA PIO X

Pio X - lgnis ardens funatus de Littore veniet. (Fogo ardente virá preso a cordas da margem do mar).

O Anjo da Luz Ora, esse Papa, no seu escudo, tinha uma estrela (ignis ardens) uma ancora (o que explica a palavra funatus: ancorado) e saiu da margem do mar de Veneza.

PAPA BENTO XV

A Bento XV é atribuído na profecia de S. Malaquias o dístico: Ecce religio depopulata et satanae soboles saevissima: Eis a religião despovoada e a raça cruel de Satanás.

E o comentário acrescenta: Su, italiana liga! (De pé, liga italiana!).

De fato, está mais que perfeitamente justificado o dístico de S. Malaquias: os sucessos que enlutam os tempos atuais são de molde a dar melhor explicação a essa legenda severa. E o comentário? Deixemos para ele essa simples interrogação e passemos aos outros dísticos e comentários.

PAPA PIO XI

Pio XI - Ecce fides intrepida et praedicta immolatio, victoria sancta certissima! "Santíssimo Padre Pio undécimo, Ré d'Italia, fede a( meriti, cittá saneia!" - Eis a fé intrépida e a imolação predita, a vitória santa, certíssima. - Santíssimo Padre Pio XI, rei da Itália! Que a cidade santa tenha fé nos seus méritos.

PAPA GREGORIO XVII

Gregorio XVII. - Tu es Romae pastor angelicus, o mittis doctor, o Pater indulgentissimus.

- Salve, Gregório décimo sétimo, Padre Santíssimo, Pastor utile. - Tu és o pastor angélico de Roma, doutor suave e pai indulgentíssimo! Salve, Gregório XVII, pai santíssimo e pastor necessário.

PAPA PAULO VII

Paulo VII. - Ave docte Pastor nautaque populi romani prudentissime. -Santíssimo Padre Paulo sétimo. Dunque rivenuta da pace perfecta!

- Salve, sábio Pastor e prudentíssimo timoneiro do povo romano. - Santíssimo Padre Paulo sétimo, eis que volta a paz perfeita.

PAPA CLEMENTE XIV

Clemente XIV. - Ecce fios florum, ecce lilium patriae virtutes coronans sanctissima, quae in Domino praedicta. - Santissimo Padre nostro Clemente décimo quarto; tu Roma, filia sua, venera il ré pacifico.

Eis a flor das flores, eis o lírio, coroando as virtudes de sua pátria e os atos santos preditos no Senhor. Santo Padre Clemente XIV; Tu, Roma, sua filha, venera o rei pacifico.

PAPA PIO XII

Pio XII. - De medietate lunae procedi! a doctore divino missus Romae. Salve amore, Padre nostro duodecimo, mediatore santíssimo, presunta vittima. - Da meia lua (do país do crescente) procede mandado a Roma pelo doutor divino.

Salve, amado pai, Pio XII, santo mediador, futura vítima.

PAPA GREGORIO XVIII

Gregorio XVIII. - De labore solio optimo terra devotam patioris sanctissima gregem enutrit.

Santissimo Padre Gregorio decimo oitavo, paire tuto admirabile. - Graças a um excelente trabalho do sol, nutre a terra o rebanho do muito santo pastor. Nosso mui santo Padre Gregorio XVI II, padre por tudo admirável.

PAPA LEÃO XIV

Leão XIV. - De gloria olivae Domini, o qualis pacifer, o quam omnibonus protector! Papa leone quarto décimo, monarca virille, glorioso dominio. Que mensageiro de paz da glória da Oliveira do Senhor, que protetor cheio de bondade!

O Papa Leão XIV, monarca enérgico, reina glorioso.

PAPA PEDRO II

Pedro II. - Tu in desolatione mundi suprema sede. Ecce Petrus Romanus ultimus Dei veri pontifex. Roma nefans diruitur et judex tremendus judicabit triumphans omnes populos. - Na suprema desolação do mundo, reinará Pedro, o Romano, o último Papa de Deus verdadeiro. Roma criminosa será destruída e o tremendo Juiz julgará triunfante todas as nações.

Verificar-se-ão as mesmas notáveis coincidências que se têm realizado já tão claramente?

III - Os últimos tempos

Em acreditar na profecia de S. Malaquias, haveria apenas, de S. S. Pio XI até ao fim do mundo, sete Papas.

De São Pedro até Pio XI, houve já 263 Papas, devendo o número total ser de 270, como se segue:

263 - S. S. Pio XI.

264- Gregorio XVII.

265 - Paulo VII.

266 - Clemente XIV.

267 - Pio XII.

268 - Gregorio XVIII.

269 - Leão XIV.

270 - Pedro II.

Sete Papas, é pouco, muito pouco, quando se considera que os Papas são homens de idade já avançada. SS. Pio XI já tem 76 anos, e 10 anos de pontificado, cujo governo não pode ser de longa duração.

Os mais longos pontificados foram os de Pio IX (32 anos) e de Leão XIII (25 anos).

Pode-se deduzir destes fatos que os sete Papas indicados podem dificilmente preencher uma época de 150 anos.

Ao examinar a historia dos Papas, nota-se que, geralmente, sete Papas chegaram apenas à metade deste tempo, como por exemplo entre Gregório XV (1621) e Alexandre VIII (1689), ou ainda mais perto de nós, entre Alexandre VIII (1689) e Clemente XIII (1758), sendo o pontificado dos sete primeiros de 68 anos, e o dos sete segundos de 69 anos.

Sempre apoiado sobre a mesma profecia (note-se que não são verdades de fé; pode-se acreditar ou rejeitar estes dados) podia-se dizer que o fim do mundo vacila mais ou menos entre 70 a 100 anos.

É perto, muito perto...

IV - Conclusão

Eis uma profecia que merece a aplicação das palavras do apostolo: Prophetias nolite spernere. Não desprezeis as profecias. Examinai tudo; e abraçai o que for bom (1Ts5,20,21).

A Igreja não declarou tais profecias verdades de fé; pode-se acreditar nelas e pode-se também rejeitá-las.

O Anjo da Luz Convém notar, entretanto, que elas têm em seu favor razões de primeiro valor. São obra de um santo e, durante séculos, tais profecias receberam uma execução quase textual, de modo que, tanto a santidade do autor, como a realização das profecias por ele feitas, são provas que merecem o exame e a reflexão de pessoas sérias.

É bom tirar a conclusão pratica para que nós estejamos prontos.

O fim do mundo é a morte. O Espírito Santo nos avisa: Lembrai-vos que a morte se aproxima (Ec14,12).

O dia do fim do mundo há de chegar: é certo. Este dia é ignorado.

Quanto ao dia e à hora, diz o Salvador, ninguém os conhece, nem sequer os anjos do céu (Mt24,36).

Senão conhecemos nem o dia, nem a hora, conhecemos, entretanto, a época. É o próprio Jesus Cristo que nos faz conhecer, claramente, esta época, pelos sinais precursores que apontou.

Estes signais podem resumir-se nos cinco seguintes:

1 - A pregação do Evangelho em todo o universo.

2 - O aparecimento do anticristo, que será tomado por Messias (talvez o espiritismo?) (2Ts2,1-11).

3 - A apostasia e corrupção dos homens (2Ts2,3).

4 - A conversão dos judeus, causada pelo regresso e a pregação de Enoc e Elias (Rmt 1,26).

 

A profecia de S. Malaquias

5 - Os signais terríveis no céu, e a tribulação entre os homens (Mt 24,2Q).

Não podemos negar que, em muitos pontos, estas predições estejam realizadas.

O Evangelho já foi pregado no mundo inteiro.

O anticristo, que pode ser uma pessoa, como pode ser uma seita, parece estar neste mundo, representado pelo protestantismo, o espiritismo, a maçonaria, o bolchevismo, todos eles em luta contra o Cristo e a sua Igreja.

A corrupção do mundo é profunda; os judeus estão se aproximando cada vez mais da Igreja Católica; estamos atravessando crises, guerras e outros horrores que parecem ser sinais precursores de maiores cataclismas.

Estejamos, pois, preparados!

Sejamos católicos de fato, sem vacilação e sem fraqueza.

Pratiquemos a nossa santa religião, não parcialmente, mas inteiramente como jesus Cristo quer que ela seja praticada.

E assim estaremos prontos, qualquer que seja o dia e a hora, porque para o justo esta hora tremenda não será de castigo, mas de recompensas e de felicidade.

Parati estote: Estejamos prontos.

Um sopro de revolta passa sobre o mundo, sopro de sensualidade pelo divorcio, sopro de ódio pelo comunismo, sopro de orgulho pelo protestantismo, sopro de hipocrisia pela maçonaria, sopro de loucura pelo espiritismo.. e todos estes sopros diabólicos constituem um único vendaval contra a Igreja verdadeira de Cristo.

O rochedo está solido, está seguro; ele não teme as tempestades, mas os filhos desta Igreja são fracos e podem ser derrubados, podem perder-se.

Em meio deste vendaval tenhamos amor à santa Igreja; grupemo-nos em redor de nossos chefes espirituais, e, de fronte erguida, lutemos, porque o triunfo será nosso!

A Igreja tem as promessas divinas do triunfo!

SEGUNDA POLÊMICA

Origem da raça humana

VARIAS ELUCIDAÇÕES

Um estudante de cursos superiores, católico convencido, tendo encontrado entre seus colegas diversas objecções contra a origem da raça humana, deu-se ao trabalho de reuni-las, pedindo uma resposta a este respeito.

Eis a consulta, que será seguida das respostas pedidas.

Revmo. Pe. Júlio Maria.

Não despercebidos passam por minhas mãos ou diante de meus olhos os belos artigos de V. Revma. Leio-os com atenção, guardando­ os com amor e cuidado, pois que são para mim um recurso, quando me acho em dificuldades a respeito dos assuntos de religião, isto é, vejo-me em dificuldade, porque sendo atacado ou sendo interrogado, estou em condições de ser ou vencido ou humilhado, mas não porque duvide da menor coisa da Sagrada Escritura, ou a respeito dos dogmas de nossa santa religião; é lá naquelas paginas, tão bem escritas, que vou haurir a água bendita da verdade, para destruir as trevas de minhas dificuldades.

Sr. padre, sou vosso admirador profundo desde que li aquele grande jornal, não pelo seu tamanho material, mas, sim, pelas suas tão admiráveis lições, pela ciência que está nele contida e, portanto, grande pelo seu conteúdo e pela sua grandeza intelectual.

Estamos em pleno campo de batalha, os inimigos se sucedem a cada instante e os ataques se multiplicam, mas não se revigoram, pois que quem está com o erro, a cada passo por si mesmo é destruído por sua razão, posto mancas e serem um lamaçal de podridão.

Eis a razão que me constrange a escrever-lhe esta carta; a procura da luz da verdade da via que conduz ao bem, não para mim, como também para o meu próximo, são as causas de importunar-lhe.

Sr. padre, vários colegas meus, e professores disseram-me que o princípio da criação do homem é inexplicável, dizendo também que Adão e Eva são personagens mitológicos e que nunca existiram. E também que, si Adão e Eva tiveram filhos, e somente ficaram com estes filhos e estes filhos de Adão e Eva com quem se casaram para daí provir a propagação do gênero humano?

Ainda disseram que si irmãos se casaram com irmãos, não saíram filhos perfeitos, mas defeituosos.

Peço-lhe, portanto, a caridade de dar-me a explicação disto para que eu fique sossegado.

Confiado na sua benevolência e no seu ardor de apóstolo, espero sem demora as respostas.

Desde já, penhorado, por este ilimitado benefício, subscrevo-me.

De vossa Revma. servo in Christo Jesu.

A. A.

1 - Respostas

A consulta abrange quatro dificuldades:

1 - O principio da criação do homem.

2 - Adão e Eva são personagens mitológicos.

3 - Só tiveram filhos e não filhas.

4 - Do casamento de irmãos saem filhos defeituosos.

Vou procurar satisfazer o meu digno consulente, mostrando-lhe que estas quatro objecções não têm fundamento, e dissipam-se diante da exposição da verdade, como as trevas diante do sol.

O principio da criação

Será mesmo incompreensível o principio da criação?

Absolutamente não: a única incompreensibilidade provém da ignorância dos fatos, ou da má fé na palavra divina. A criação do primeiro homem é de uma simplicidade que não tem igual, senão a sinceridade com que foi escrita.

Tudo é claro, luminoso, convincente, são páginas irrefutáveis, que trazem a verdade estampada e provada em cada frase. Os ignorantes do fato devem ler os primeiros capítulos do Gênesis.

No começo Deus criou o céu e a terra.

Que simplicidade! Que majestade!

Parece um relâmpago, que ofusca o olhar.

Deus disse: Que haja luz e a luz existiu. - E Ele continua: Estenda-se o firmamento sobre as águas e as separe. Ajuntem-se as águas - Haja corpos luminosos no céu! - Produzam as águas animais para viver no mar! - Produza a terra animais vivos!

É o verbo criador do Deus Todo-poderoso, cuja palavra realiza imediatamente o que significa.

Depois de preparar assim o palácio do homem, Deus o criou no sexto dia...

Deve ser o rei da criação. Por isso, a cena muda e a majestade criadora cede lugar ao carinhoso desvelo do Pai.

Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança; que ele mande aos peixes do mar, às aves do céu, aos animais e a todos os repteis que se movem debaixo do sol.

Então, com o barro da terra Deus formou o corpo do homem; insuflou nesta matéria, ainda inerte, um sopro de vida, e o homem levantou-se, alma vivente, e Deus o nomeou Adão, que significa: tirado da terra.

Como tudo isso é sublime, e refuta, de antemão, todas as objeções, pela simplicidade da narração, que deixa entrever o dedo de Deus.

Que haverá de inexplicável nisso? Nada!

Tudo está explicado: Deus criou, isto é, tirou do nada, todas as obras, por um ato de sua onipotência divina.

Pela narração da criação do homem, a Sagrada Escritura nos ensina qual é a nossa natureza, e nos mostra a nossa origem imediatamente divina. Ela condena, deste modo, o materialismo, estabelecendo a distinção entre corpo e alma, mostrando que o primeiro vem da terra e a segunda de Deus(Ec12,7).

Condena também a teoria do evolucionismo e do transformismo, que ensinam ser o homem apenas um animal aperfeiçoado.

Adão e Eva são mitos

Tal mitismo é uma invenção dos racionalistas, para negar os milagres e desvirtuar o caráter verdadeiro da revelação.

O mitismo é um sentido falso, errado e imaginário, que não merece a atenção de uma pessoa séria.

Adão e Eva seriam mitos?

Antes dizer que o são Alexandre, César, Faraó, Constantino, Napoleão, etc., etc. Quais são as provas que nós temos da existência destes antigos e modernos dominadores do mundo?

- A história e os monumentos.

Ora, temos tudo isso, e muito mais, da existência de Adão e Eva, de Moisés, de Abraão e outros patriarcas do Antigo Testamento.

Não se inventa uma história inteira.

Podem-se inventar fatos, não se pode inventar uma historia inteira, que necessariamente tem a sua ligação, a sua intromissão na historia de outros povos, capazes de desmentir, de desmascarar a invenção.

Ora, temos de aceitar a história da "criação tal qual ela é narrada pelo historiador inspirado, que é Moisés, ou temos de negar toda a antiguidade, desde a criação do mundo até Jesus Cristo, porque a tal historia é provada pela dos outros povos: assírios, egípcios, etíopes, tarsos, persas, amalecitas, caldeus, etc., etc.

E depois, para negar uma história de uns 4000 a 6000 anos, com todos os seus fatos, incidentes, guerras, etc., é preciso inventar outra capaz de substituí-la.

E onde os mitistas irão encontrá-la?

Se Adão e Eva são mitos, donde vem então a raça humana?

Qual é o principio do homem?

Onde e como ele apareceu?

Como teve lugar a propagação da raça humana? etc., etc.

São paginas, são volumes de perguntas a fazer, e todas ficam sem solução.

Nada é mais oposto ao mito do que a Bíblia.

A palavra mito designa, por oposição à historia real, uma especie de história imaginária, uma fábula de que alguém se serve para exprimir ideias ou teorias religiosas ou metafísicas.

Ora, o antigo Testamento tem precisamente por fim pôr uma barreira à corrente mítica que arrastava os povos antigos ao politeísmo e às suas fábulas.

Adão e Eva são, pois, personagens reais, autênticos; são os primeiros pais da humanidade, criados por Deus à sua imagem e semelhança.

É uma verdade tão certa e inegável, como é certa a existência da terra, das plantas, dos animais, do sol e das estrelas.

Se aceitarmos a existência dos primeiros, devemos aceitar a existência dos segundos.

Plantas, animais, aves e peixes são o fruto da procriação; por que não o seriam os homens?

Todos compreendem que deve ter havido um primeiro casal de animais e de plantas para transmitir ao mundo a continuação destas plantas e destes animais.

O homem deve igualmente ter o seu primeiro tipo; a Bíblia diz que este primeiro tipo é Adão e Eva.

Se não são eles, quem será então?

O homem é uma realidade; deve, pois, originar-se de outra realidade. Um mito é uma imaginação, e deste mito não pode sair raça humana.

Peço, pois, aos mitistas fabricarem um outro livro de Gênesis, mostrando-nos a verdadeira origem da raça humana... e, até aparecer a tal obra, continuaremos a adaptar e seguir o Gênesis do profeta do Sinai, que tem para si a veracidade interna e externa, as provas da história do mundo e do poder de Deus.

III - Os filhos de Adão e Eva

A terceira objeção tem uma aparência de verdade. Diz o consulente que Adão e Eva só tiveram filhos, e como tal não podiam casar com moças que não existiam, visto Adão e Eva serem os únicos progenitores criados por Deus.

Tal objeção provém da ignorância da Bíblia e da falta de reflexão.

O Gênesis cita apenas o nome de três filhos de Adão e Eva, e não cita o nome de nenhuma filha.

Quer isso dizer que não as teve?

- Absolutamente não.

É costume bíblico não citar nome das mulheres, senão em caso que tenham de exercer um papel saliente.

A Bíblia cita os nomes de Caim, Abel e Set, sem falar dos outros.

Depois de ter nomeado estes três que deviam ser como o primeiro tronco da humanidade (Caim e Set) a Bíblia resume tudo dizendo de Adão: Depois de ter gerado Set, viveu ainda 800 anos, gerando filhos e filhas... e a vida inteira de Adão foi de 930 anos (Dn5,4).

Eis já um ponto luminoso.

Depois do nascimento de Set, Adão e Eva continuaram a ter filhos e filhas. Ora, quando Set nasceu, Adão já tinha 130 anos. Durante estes 130 anos, quantos filhos e filhas terá ele tido?

Pode-se responder, sem receio de errar, que ele pode ter tido de uns 70 a 80.

Entre estes a Bíblia nomeia o primeiro, Caim; convinha nomeá-lo, tanto porque é o primeiro, como porque é o assassino de seu irmão Abel.

Abel, morto, foi substituído por Set, razão de nomear este sucessor.

Mas, agora, um simples raciocínio: Caim e Abel eram já homens quando aconteceu o desastroso fratricídio, pois eram já trabalhadores adestrados, suponhamos, com uns 40 anos de idade.

Neste intervalo de 40 anos, Adão e Eva continuaram a ter filhos, talvez uns 30 ou mais.

Abel, morto, nasce Set, que é o primeiro nascido após a morte do irmão. A Bíblia devia nomeá-lo.

Vem a maldição de Caim, condenado por Deus a uma vida errante e nômade.

Caim manifesta o medo de ser morto por outros, em vingança do irmão.

Onde existiam estes outros homens, Set não tendo ainda nascido?

Mais tarde, Caim afasta-se da família e começa a ter filhos.

Donde veio esta mulher, a sua esposa, se não havia outros homens, a não ser Adão e Eva?

Emfim, depois do nascimento de seu filho, Caim constrói uma cidade; donde veio o povo para povoar uma cidade?

Eis o conjunto das diversas objeções que se podem formular contra o texto bíblico.

A resposta é simples.

Primeiro, Caim ao matar Abel já era talvez casado com uma de suas irmãs, o que pode ter sido havia já uns 1O a 15 anos, pois, estando ele com 40 anos, pode ter tido irmãs de 39 anos para baixo.

Tudo fica assim elucidadado. O casamento, entre irmãos, é secundariamente proibido pela natureza, porém, não o sendo primariamente, Deus pode dispensar desta lei, como dispensou e devia dispensar na origem da raça humana; sendo primariamente contra a natureza e para sempre a união em linha vertical, quer ascendente, quer descendente, e isso em toda a extensão.

Pode haver outra solução ainda.

Caim pode muito bem ter se casado com uma sobrinha, isto é, com a filha de um de seus irmãos ou de suas irmãs.

E o fato é muito plausível e não exige nenhum esforço de cálculo.

Suponhamos, como acima, que o nascimento de Caim fosse seguido do nascimento de uma filha. Caim tendo 40 anos, a sua irmã teria uns 38 a 39.

Outros irmãos de Caim nasceram depois. Um deles, talvez com 20 anos, casou-se com uma sua irmã de 18 a 22 anos. É plausível.

Com 25 anos, casam-se afastando-se dos pais para fixar residencia em outro lugar.

De 25 a 40 anos, fica um intervalo de 15 anos, de modo que estes filhos de Adão e Eva, irmãos de Caim podiam, na ocasião do fratricídio de Caim, ter filhos de 15 anos de idade.

Caim, em sua vida errante, percorre as regiões, demora uns 5 anos, e contrai matrimônio com a sobrinha.

Desta união nasceu Henoc, que a Bíblia menciona.

Tudo isso é simples e natural.

Assim ficam resolvidas todas as objeções.

 

IV - Atavismo de filiação

O consulente apresenta uma quarta objeção, igualmente sem consistência.

Pretende ele que os filhos oriundos de parentes próximos não são perfeitos, mas defeituosos.

Ha aqui uma grande distinção a fazer, que nos leva a tratar da hereditariedade ou atavismo, e que é antes uma questão de patologia interna do que bíblica.

Merece, entretanto, ser tratada, pois tem o seu lado instrutivo e prático no que se refere à hereditariedade.

A hereditariedade é um fato. Se os pais transmitem a seus filhos as semelhanças físicas, às vezes intelectuais e morais, transmitem-lhes também as mórbidas.

É incontestável que muitas moléstias são hereditárias. pode-se citar, por exemplo: a loucura, a epilepsia, a histeria, o reumatismo, o cancro, a tuberculose, a sífilis, a gota, o raquitismo, a lepra, etc.

Se tal hereditariedade não é fatal, é pelo menos passivei e bastante frequente.

E notem ainda que tal hereditariedade é ilimitada em extensão; ela pode atacar o mesmo sentido no correr de muitas gerações sucessivas, e se for grave a moléstia, pode até ocasionar o desaparecimento da família.

Outro ponto importante: a hereditariedade mórbida não implica sempre a ideia de perfeita transmissão da doença hereditária. Por exemplo, um homem epiléptico pode ter um filho que não seja epiléptico, mas no qual a tendência hereditária se manifesta com os sintomas do idiotismo ou da paralisia geral.

Os casamentos consanguíneos agravam consideravelmente essas tendências patológicas, unindo indivíduos acometidos das mesmas moléstias; em tais casos, os filhos de tais uniões têm todos, em alto grau, as marcas que possuem os seus progenitores.

Tudo isso é certo e provado, e mostra que, de fato, as uniões entre parentes podem ser e são bastantes vezes perigosas, nocivas à prole, dando à sociedade filhos raquíticos, escrofulosos, anêmicos, doentios.

É a razão por que a Igreja opõe-se o mais possível a tais uniões, e aconselha que sejam evitadas.

O Direito Canônico proíbe os matrimônios de consanguinidade colateral até ao 3°. grau (Cn1076, n.1 e 2) e a teologia ensina que, provavelmente, o casamento em primeira linha colateral, isto é, entre irmãos, é proibido secundariamente pela lei natural, de modo que Deus pode dispensar dele, como dispensou no começo do mundo, mas a Igreja não dispensa.

Quanto aos outros graus em linha colateral, sendo eclesiástica a proibição, a Igreja pode dispensar.

V - Conclusão

Eis a lei e a razão da lei.

A Igreja não aprova os matrimonias entre parentes, embora dispense em caso de necessidade, para evitar maiores males, porque a experiência prova que bastantes vezes os filhos oriundos de tais uniões nascem raquíticos, defeituosos, doentios.

Mas convém sublinhar a razão deste enfraquecimento físico ou moral da prole.

A hereditariedade é um fato. Ora, entre parentes, facilmente pode existir uma tara familiar, de modo que, pela lei do atavismo, todos os membros da mesma família sofram mais ou menos de um mesmo mal.

Pelo casamento, estas tendencias patológicas, fortificadas por ambos os lados, devem necessariamente transmitir-se com mais veemência à prole, de modo que as crianças nascem com a moléstia de seus progenitores, tornando-se débeis, fracas e atrofiadas.

Por exemplo: se ambos os pais forem sifilíticos, ou histéricos, ou reumáticos, é quase certo que os filhos terão em grau duplicado a moléstia dos pais; enquanto, si for apenas um dos pais, a infecção mórbida pode ser domada e até extinta pela parte sadia.

E si os parentes assim infecionados pelo vírus mórbido continuarem a contrair matrimônio em graus subsequentes, então a moléstia, não sendo dominada por nenhum elemento contrario, vai se fortificando, até dar à prole uma existência de idiotismo, de paralisia geral e até de loucura.

Nestes casos quase sempre se trata na família dum patrimonio hereditário doentio.

A transmissão hereditária pode ser dominante e recessiva. Fala-se duma hereditariedade recessiva, não havendo o homem indicio de doença que apareça por fora, atuando, contudo, no organismo fatores nocivos. A moléstia, no caso duma hereditariedade recessiva, pode transpôr uma geração inteira, tornando, porém, a manifestar-se, por sua consequência funesta, na geração dos netos.

Assim, pode acontecer que pais de boa saúde (porém só aparente) tenham filhos doentes, sendo os pais portadores duma hereditariedade recessiva.

No caso de transmissão de fatores recessivos, os condutores levam seu cunho característico. Deste modo se explicam p. ex. a dementia praecox, a epilepsia e outras moléstias.

É sobretudo nos casamentos consanguíneos que os fatores recessivos são funestos.

Disposições tanto de saúde como de doença passam de geração a geração, segundo determinadas leis da criação, debilitando ou robustecendo os homens.

O que o homem não tem, não pode transmitir a outrem. Tendo saúde, transmite saúde; se, porém, no seu organismo atuarem indícios de moléstia, transmite moléstia, a não ser que haja algum fator em contrario.

Ora, no principio da raça humana, os homens eram sadios. Deus criou-os fortes e robustos, sujeitos a moléstias sem duvida, mas não tendo moléstias.

Neste caso, os filhos de Adão e Eva, oriundos de um sangue puríssimo, sem enfermidades e sem tendências mórbidas, podiam unir-se em matrimônio, sem inconveniente; os filhos deviam, pela hereditariedade, ser os herdeiros diretos da saúde e da força de seus pais.

Adão e Eva nenhuma moléstia podiam transmitir.

Eis a razão por que Deus dispensou no princípio, de uma lei natural secundaria, permitindo, como aliás era de necessidade, que os filhos de Adão e Eva contraíssem matrimônio entre si.

Nenhum mal podia suceder destas uniões.

Mas hoje, que a humanidade quase inteira está enfraquecida pelas desordens e as moléstias, ela só pode transmitir o que possuem: moléstias.

Por isso é preciso combater o encontro de duas disposições mórbidas, idênticas, para que não se fortifiquem deste encontro, e se reproduzam em grau mais intenso na geração dos filhos.

Isso é para a nossa época... não era para o principio da humanidade.

É assim que cai, por completo, a asserção de meu consulente que acha que tais uniões entre os filhos de Adão e Eva eram nocivas, prejudiciais...

Não, elas não o eram; mas o são hoje.

Eis as quatro dificuldades elucidadas, e espero que o meu digno consulente e amigos ficarão convencidos da verdade e da inanidade das objecções.

Deste modo, mais uma vez aparece resplandescente a harmonia das obras divinas e a eterna sabedoria que preside a todos os acontecimentos. Benedicite Dominum in operibus suis (Ec39,19).

 

TERCEIRA POLEMICA

Questões evangélicas ou Provas da veracidade dos quatro Evangelhos

Recebi de Capetinga uma cartinha com diversas consultas sobre questões evangélicas.

São mais perguntas históricas do que dogmáticas, merecendo, entretanto, uma solução completa, afim de dissipar as duvidas que podem nascer no espirito dos estudiosos e de fortalecer a fé no Evangelho de jesus Cristo.

Eis a cartinha em questão:

Revmo. Pe. Júlio Maria.

Fui informado por um amigo meu e profundo admirador de V. Revma., do alto conhecimento vosso em questões teológicas, sendo esta a razão pela qual resolvi a tomar um bocadinho do vosso precioso tempo, apresentando-vos um questionário sobre as duvidas que nutro a respeito de certas passagens obscuras da Bíblia e que desejaria ver elucidadas.

Certo de merecer a atenção de V. Revma., sou Amo. Co. Obo.

G. A. V.

Seguem depois seis perguntas que aqui reproduzo com a respectiva resposta.

PRIMEIRA PERGUNTA

1- Veracidade externa dos Evangelhos

Existe qualquer outra história que merece credito sobre a vida de Jesus, a não ser as narrações atribuídas a Mateus, Marcos, Lucas e João?

Perfeitamente; tais narrações existem entre os autores estranhos à Igreja.

Convém fazer notar logo que tal vida de Jesus Cristo deve ter sido escrita, primeiro, por aqueles que viveram com Jesus Cristo, ou pelo menos com os contemporâneos.

Depois das narrações dos quatro evangelistas, os escritores leigos, não inspirados, começaram a sua critica, aceitando ou rejeitando as narrações evangélicas.

Entre eles temos católicos em grande número dos primeiros séculos, e temos hereges e judeus, atacando a doutrina do Salvador, mas aceitando a sua pessoa, a sua vida e os seus gestos.

O primeiro escritor serio parece ser Cerdon (130-140), que admitiu como inspirado o novo Testamento, mas rejeitou o antigo.

Sucederam-lhe Marcion (140), que não admite senão a narração de S. Lucas e umas epístolas de São Paulo.

Taciano (180) foi o primeiro a fazer uma especie de harmonia dos quatro Evangelhos, escrevendo, deste modo, uma verdadeira vida de Jesus Cristo.

Montano, da segunda metade do segundo século, admite todas as escrituras.

Basilides (130) escreveu 24 livros sobre o Evangelho de S. Lucas, fazendo uma verdadeira vida de Cristo.

Valentino (135) cita textualmente S. João e admite todas as Escrituras.

Heraclião (180) escreveu dois comentários, sendo um sobre S. Lucas e o outro sobre S. João.

Ptolomeu (180) cita S. Mateus e S. João.

Theodoto (180) nos dá mais de 80 citações do Novo Testamento.

Opluto, Perato, Sothiano e outros hereges que se foram sucedendo no segundo século, citam textos e paginas inteiras dos quatro evangelistas.

Estes hereges que acreditavam nos evangelhos, mas os interpretavam a seu talante, foram refutados pelos primeiros doutores da Igreja com uma eloquência e uma ciência admiráveis.

Os judeus e os pagãos tiveram igualmente seus escritores que reconheceram a existência de Jesus Cristo e de seu ensino, mas combateram a sua doutrina em negarem a sua autenticidade.

Entre eles são conhecidos Trifão, contra S. Justino, e Celso contra os cristãos em geral.

Trifão diz que conhece os Evangelhos e que os leu diversas vezes, mas pretende não poder aceitar a doutrina, porque seria renegar Moisés e os profetas.

Celso acusa Jesus Cristo de ter-se proclamado Filho de Deus, e acusa os apóstolos de terem combinado de aceitar as imposturas do Messias; e termina fazendo contra o cristianismo uma serie de objeções, que abrangem a vida inteira de Jesus Cristo, o que demonstra o conhecimento dos quatro Evangelhos.

Eis narrações subsequentes às dos evangelistas, combatendo a doutrina, mas reconhecendo e descrevendo a personalidade de Jesus Cristo.

Se jesus Cristo não fosse o que os Evangelhos nos ensinam, os escritores citados, que eram pagãos, judeus ou hereges, teriam negado os fatos.

E foi o contrario que aconteceu: eles acolheram a personalidade, as obras, a doutrina do mesmo, contestando apenas o alcance ou a interpretação desta doutrina.

Deste feito são eles verdadeiros testemunhos históricos da vida do Salvador, e são historiadores que merecem fé como historiadores - não, porém, como doutrinadores - porque eram inimigos dos cristãos.

SEGUNDA PERGUNTA

II - Fontes profanas do cristianismo

Existiu algum historiador, cujas obras estejam acima de suspeitas, (refiro-me às interpolações grosseiras, como no caso de Josefo, onde a interpolação não encadeia absolutamente com o texto da historia) que ao menos mencione o nome de jesus Cristo?

Sim; há muitos historiadores antiquíssimos que, não somente lembram o nome de Cristo, mas falam de sua pessoa, de sua doutrina e de seus milagres.

Limito-me a citar aqueles que me ocorrem no momento e que são mais conhecidos, além de serem de autenticidade inatacável.

O primeiro escritor conhecido é Tácito.

Em seu livro dos Anais, escrito em 115-117, sob o império de Trajano, ele menciona o cristianismo como uma nova seita religiosa originária da judeia, espalhada até Roma, e cujo fundador é o Cristo condenado à morte por Pôncio Pilatos (Anais 15,44).

Depois temos Suetonio, secretario particular do imperador Adriano, estando, deste modo, capacitado para consultar o arquivo imperial. Suetonio escreveu a vida "Claudio", entre 117-138, na qual conta como Claudio expulsou de Roma os Judeus, perturbadores da ordem sob a instigação de Christus.

Esta expulsão dos Judeus (cristãos que Suetonio confundiu) é mencionada por Lucas, nos Atos dos Apóstolos; em sua "Vida de Nero'', o mesmo escritor fala dos suplícios dos mártires cristãos, dizendo que os mesmos se entregaram a superstições novas e malfazejas (Nero,16).

Plinio, o jovem - delegado na Bithynia, é outro escritor pagão, que escreveu de 111 a 113 uma relação ao imperador Trajano sobre os cristãos.

Vemos, nesta relação, como os cristãos tinham invadido as cidades e as campanhas da Bithynia, encontrando-se cristãos de toda idade e de toda condição, entre os quais havia uns que professavam a religião de Cristo, ha mais de 20 anos, de modo que o culto oficial pagão corria sérios riscos de ser abandonado.

Plinio verificou que todo o erro e a falta dos cristãos consistia em reunirem-se habitualmente em certos dias marcados e em cantar hinos ao Cristo, como a um Deus (Liber epist:10,97).

A existência histórica de jesus Cristo é atestada ainda pelos escritores pagãos, entre 125 e 175, tais como Numenio, Phlegon, Saleno, Lucio e Celso.

Flavio Josefo, historiador judeu, morto em 100, fala igualmente de jesus Cristo, em suas Antiguidades judaicas. Cita a pregação e o suplício de S. João Batista (Ant. Jud.,18); o martírio de S. Tiago menor, que ele nomeia irmão de jesus, chamado Cristo (ib.20).

A autenticidade destes textos é admitida por todos; não o é, porém, a de um outro fragmento, em que são atribuídos ao Cristo titulos que excedem os conhecimentos de um historiador judaico, hostil ao cristianismo.

Eis a passagem de Josefo em discussão:

"Naquele tempo viveu jesus, varão sábio, que operou milagres maravilhosos, mestre dos homens que receberam a verdade de boa vontade.

Chamou a si muitos judeus e pagãos. Era ele o Cristo. Como Pilatos, devido à acusação que lhe fizeram os principais do povo, o houvera condenado à morte de cruz, não o abandonaram, não obstante, os que o haviam amado sinceramente.

Apareceu-lhes ressuscitado ao terceiro dia, como os profetas o haviam anunciado, e operou outros milagres; e até agora não desapareceram os cristãos, que dele tomaram o nome".

Na história da Igreja de Eusébio, ha uma carta do príncipe Abgar de Edessa a Jesus, e uma resposta que Jesus lhe fizera.

Esta troca de correspondência tem encontrado defensores, porém lhe é difícil manter pretensão de legitimidade.

Não são autênticas, com certeza, as relações de Pilatos a Tibério, e a carta de Lentulo ao Senado Romano; mas mesmo sendo interpolações ou invenções, certo é que são escritos antiquíssimos e demonstram a extensão rápida do cristianismo.

O Sírio Mara, em uma carta a seu filho Serapião, fala do "Sábio Rei dos judeus", que depois de sua morte havia tomado o reino dos judeus, mas que o seu nome estava ligado às suas leis.

TERCEIRA PERGUNTA

III - Autenticidade dos Evangelhos

Existe uma prova de que os quatro Evangelhos foram escritos pelos apóstolos, cujos nomes eles trazem?

Perfeitamente!... existem muitas provas disso. Os quatro Evangelhos foram conhecidos desde o primeiro século, como sendo obra dos quatro respectivos evangelistas.

Podiam-se citar centenas de provas desta asserção. Eis, por exemplo, uma citação de Tertuliano, escrita em 207: "A autoridade dos Evangelhos nos é garantida pelas Igrejas que os apóstolos fundaram e que no-las transmitiram. Falo, sobretudo, dos Evangelhos de Mateus e de João; mas eu podia citar também Marcos, pois que a sua narração é atribuída a Pedro, de quem ele era secretário, como também a de Lucas, que é atribuída a Paulo" (Tert. c. Mc1.4)!

E em um outro Jogar o mesmo Tertuliano escreve ainda: "Afirmamos e provamos que o Evangelho vem dos apóstolos, a quem o Senhor confiou o encargo de fazer conhecer a boa nova. Se os apostólicos fizeram esta narração, eles não foram os únicos, mas trabalhavam com os apóstolos.

Dentre os apóstolos, João e Mateus nos ensinam a fé; dentre os apostólicos, Lucas e Marcos no-la confirmam" (lbid. lib.14).

Eis o que é claro.

E, não somente Tertuliano conhece os quatro Evangelhos, mas cita deles centenas de passos.

Ora, Tertuliano tinha nascido em 160, apenas 60 anos após a morte de S. João.

É quase um testemunho ocular, de modo que a sua palavra merece toda fé.

É, pois, certo que os quatro evangelistas foram conhecidos desde o segundo século como sendo os verdadeiros autores dos quatro Evangelhos.

É o que fazia dizer ao próprio Renan: "Em suma, admito, como autênticos, os quatro Evangelhos canônicos; todos, segundo o meu pensar, remontam ao primeiro seculo, e são mais ou menos dos autores a quem são atribuídos" (Renan, Vie de jésus - introd. s. p.23).

IV - Os quatro Evangelistas

Será preciso provar que cada Evangelho tenha por autor o evangelista a quem é atribuído?

Parece inútil, mas é fácil: a história é unânime.

O primeiro Evangelho é de S. Mateus.

Os Santos Padres são unanimes a este respeito.

Este Evangelho foi escrito em hebraico para o uso dos cristãos da judeia, antes de Mateus deixar este país para ir pregar o Evangelho aos gentios, entre os anos 45 e 48.

Lendo este Evangelho vê-se logo confirmada a tradição de sua origem. Reconhece-se que é obra de um judeu, testemunha dos fatos, escrevendo para os judeus da Palestina.

A linguagem empregada confirma esta impressão. É o hebraico, ou antes o Sirocaldaico, língua misturada, que era usada na Palestina até à destruição de Jerusalém.

Este Evangelho foi logo traduzido em grego, e foi esta versão que chegou até nós, tendo-se perdido o original hebraico.

S. Marcos escreveu o seu Evangelho, mais ou menos, no ano 60 da nossa época.

Este evangelista não conheceu pessoalmente o Salvador; ele é o eco da pregação de S. Pedro, de quem era secretário.

Pelo conteúdo vê-se claramente que Marcos era judeu e contemporâneo dos apóstolos, intimamente unido com S. Pedro, e escreveu para os gentios, especialmente para os romanos.

O seu estilo é claro, nervoso, mas seco.

S. Lucas é o autor do terceiro Evangelho.

Toda a antiguidade o confirma. O próprio autor diz não ser o primeiro que escreve a vida do Salvador (Lc1,1). Em outro Jogar ele diz que publicou o seu Evangelho antes de escrever os Atos dos Apóstolos (At.1,1).

Ora, o livro dos Atos foi terminado antes de 62 ou 63 de nossa época; donde se pode concluir que este Evangelho deve ter sido escrito entre os anos 55 e 60, isto é, uns 8 anos depois do Evangelho de S. Marcos, e uns 15 após o de S. Mateus.

O terceiro Evangelho oferece numerosas marcas de autenticidade. É sabido que S. Lucas, medico, gentio de origem, discípulo de S. Paulo, consagrou-se com o seu mestre à evangelização dos gentios (2Cr8,18); enfim que, depois de ter escrito o seu Evangelho, compôs os Atos dos Apóstolos (At.1,1).

Ora, estas particularidades, estes hábitos de espírito, estas disposições, refletem-se de modo visível no terceiro Evangelho.

Vê-se logo que o autor tem uma cultura literaria de artista, como se descobre, pelo modo de falar, que é discípulo de S. Paulo.

Nota-se ainda que o autor não é judeu e não escreve para os judeus, mas sim para os gentios.

Fica S. João autor do quarto Evangelho. As provas de autenticidade, tanto extrínsecas, como intrínsecas, são irrefutáveis.

Todos os autores que falam deste Evangelho, atribuem-no a S. João. S. Teófilo, bispo de Antioquia, (180), Santo Irineu (202), Clemente de Alexandria (217), Tertuliano e outros, estão todos de acordo a este respeito.

Santo Irineu diz que S. João compôs o Evangelho em Éfeso, onde viveu até ao reinado de Trajano (98-117). - Segundo S. Jeronimo, ele foi o último dos escritores sacros, e fez este Evangelho ao voltar de Patmos, a pedido dos bispos e fiéis da Asia menor. Santo Epifânio diz que ele tinha 90 anos de idade.

O testemunho da tradição é provado pelos caracteres internos do livro. Basta percorrê-lo para convencer-se de que foi composto depois dos três outros, no fim do primeiro seculo, e que o escritor vivia no meio dos gentios, mas era nascido na Judeia, que tinha sido testemunha ocular dos fatos que narra, e fazia parte do colégio apostólico, o que não pode ser outro sinão S. João, autor do Apocalipse e da Epístola Católica - intitulada ad Partos.

A simplicidade, a singeleza juntam-se nele a uma perspicácia, a uma penetração e uma elevação sem igual.

Como S. Marcos, S. João prefere a linguagem direta, deixando às palavras a forma própria que lhes foi dada pelas pessoas que as proferiram.

Suas narrações são uns tantos quadros, cheios de vida e de movimento.

Tudo o que ele representa é vivo: julga-se assistir às cenas que descreve.

Esses caracteres encontram-se em todos os escritos de S. João.

QUARTA PERGUNTA

V - Os Evangelhos e os primeiros teólogos.

Existe prova, de qualquer especie, que os quatro Evangelhos eram conhecidos pelos teólogos primitivos, por qualquer dos bispos, qualquer das Igrejas, ou por quem quer que seja, antes do ano 181?

Sim; existem provas por centenas.

Não é preciso procurar longe, para encontrá-las; basta abrir a história da Igreja, destes tempos.

Como ponto de partida solido e fora de discussões, podemos citar Orígenes, de 185 a 254, personagem extraordinário pela ciência e pelo gênio, que é como o resumo da teologia desta época.

Orígenes não conhecia simplesmente os quatro Evangelhos, mas fez deles um comentário histórico e logico, com uma exegese inigualável.

Sobre S. Mateus, o referido comentário contém 25 livros (Euseb: Hist. Ecl.1,6). Escreveu um outro sobre S. Marcos (Orig. Tract.35); um outro ainda, em 5 livros, sobre S. Lucas (Hieron. Ep.104) e, enfim, um último, mais extenso ainda, em 39 livros, sobre S. João, o .qual S. Jerônimo conheceu em inteiro, existindo ainda hoje 9 livros; além disto, Orígenes deixou-nos grande numero de homilias sobre cada um dos evangelistas.

Se Orígenes conhecia e comentava, deste modo, os quatro Evangelhos, é porque eram eles geralmente conhecidos.

Encontramos nos teólogos destes tempos contínuos comentários dos Evangelhos, sobretudo nos escritos de S. Clemente de Alexandria, de Amonio, de S. Gregório, o Taumaturgo, de S. Cipriano, de Santo Hipólito e outros.

O ponto de partida é, pois, de inteira segurança. Vamos subindo e encontraremos logo dois homens extraordinários, dignos representantes de seu século, sendo o primeiro o modelo da eloquência: Tertuliano; e o segundo o modelo dos sábios: Sto. Irineu.

Acima já citei um texto de Tertuliano, nascido em 160. Sto. Irineu foi discípulo de S. Policarpo, que o foi do próprio S. João Evangelista.

Eis o que ele escreveu em 178: "Tal é a certeza de nossos Evangelhos que os próprios hereges lhes dão testemunho, emprestando-lhes passagens, para provar os seus erros. Os ebionitas, que se servem unicamente do Evangelho .de S. Mateus, podem ser convencidos por este mesmo Evangelho que têm sentimentos errôneos sobre a pessoa de jesus Cristo.

Marcion, que conta diversas coisas do Evangelho de S. Lucas, pode ser refutado pelas citações que conserva dele. Aqueles que distinguem jesus e o Cristo, podiam corrigir-se ao ler com amor o Evangelho de S. Marcos, o qual eles admitem. Os discípulos de Valentino aceitam o Evangelho de S. João em toda a sua integridade.

É, pois, fácil mostrar-lhes os seus erros. Ora, em vista de os nossos contraditores prestarem homenagem aos Evangelhos, e se servirem deles, a prova que nós haurimos deles é, pois, certa e invencível (Sto. Irineu contra heresias,1.3,c.11).

Este texto nos mostra claramente que no tempo de S. Irineu, isto é, em 178, os Evangelhos eram conhecidos, explicados e comentados pelos teólogos católicos, absolutamente como hoje.

VI - Outros testemunhos

E entre Santo Irineu, nascido em 149, e S. João, morto em 100, temos apenas uma geração.

E esta geração é representada por um nome celebre: São Policarpo.

Com uma mão ele segura S. João, de quem é discípulo, e com a outra ele segura Sto. Irineu, de quem é mestre.

Nesta mesma época, encontramos um sábio e ao mesmo tempo filósofo, orador e mártir: é S. Justino.

S. Justino, nascido em 103, era judeu e converteu-se ao cristianismo em 133; era natural de Naplousa, em Samaria, perto de Jerusalém, tendo percorrido diversas vezes o Oriente e o Ocidente, e morreu em Roma em 167.

Ora, S. Justino cita páginas inteiras dos Evangelhos, comentando-os e dando-os aos cristãos, como regra de vida e de fé.

Outra prova de que o Evangelho era estudado e comentado pelos teólogos cristãos, como ele é ainda hoje.

Eis-nos, pois, quase em contato com os próprios apóstolos.

Remontando de S. Justino a S. João, não encontramos, como aliás é natural, grandes e extensos comentários dos Evangelhos, mas em toda parte encontramos citações e alusões.

De 150 a 100, ou de S. Justino a S. João, encontramos a Epístola de S. Barnabé; a de São Clemente, Papa; a admirável epístola a Diogneto, a do Pastor de Hermas, as sete cartas de Sto. Inácio; uma carta de S. Policarpo e o fragmento de Papias.

Em suma, 9 ou 1O livros de poucas páginas, de uma autenticidade incontestável, e cujas datas devem ser lembradas.

Enquanto os evangelistas descem a escada do tempo, na ordem seguinte: S. Mateus, em 40; S. Marcos, em 50; São Lucas, em 70; São João, em 100; os escritores citados vão subindo na seguinte ordem: Papias, em 120; Sto. Inácio e S. Policarpo, em 107; Epístola a Diogneto, em 100; Epístola a Barnabé, em 90; Hermas e S. Clemente, em 70.

Os evangelistas e estes autores são contemporâneos. - Seus escritos cruzam-se.

A Epístola a Diogneto é escrita ao mesmo tempo que o Evangelho de S. João; e a de S. Clemente é quase do mesmo ano que o Evangelho de S. Lucas.

E eis o que se encontra nesses livros: A Epístola a Diogneto não contém nenhuma citação: é a seiva apostólica pura, mas sem citações textuais.

A Epístola de Barnabé cita três passagens de S. Mateus.

A Epístola de S. Clemente cita três passagens de S. Mateus, uma de S. Marcos, e duas de S. Lucas.

A de Hermas contém doze citações: 10 de S. Mateus, uma de S. Lucas e outra de S. Marcos.

As Epístolas de Sto. Inácio e de S. Policarpo apresentam treze citações com comentários, sendo 11 de S. Mateus e duas de S. Lucas.

Em tudo, nestes 5 ou 6 livros tão curtos, escritos entre os anos 70 e 120, há 36 textos e comentários do Novo Testamento, afastando-se tudo cuja autenticidade não seja incontestavelmente provada.

Não devo deixar de citar o celebre Didaquê (80-100) que contém numerosas expressões tiradas literalmente de S. Mateus. Ele cita o Padre Nosso e menciona a existência do Evangelho: Fazei as vossas orações, vossas esmolas, todas vossas ações como o encontrareis no Evangelho de Jesus Cristo.

Na Epístola de S. Clemente de Roma aos coríntios (93-95) encontramos muitas passagens de S. Lucas e de S. Mateus, mas devemos assinalar esta bela e luminosa expressão: "Os apostolas são instituídos por Jesus Cristo, pregadores do Evangelho, e Jesus Cristo é enviado por Deus. O Cristo é, pois, de Deus, e os apóstolos são de Cristo".

Que provam estas citações em escritores contemporâneos dos evangelistas?

Provam que os quatro evangelistas eram conhecidos, estudados, comentados e explicados em toda parte pelos teólogos, pelos bispos e sacerdotes, que os adotavam como regra de fé e de vida.

Só com as citações e comentários encontrados nos escritos dos primeiros doutores da Igreja, podia-se reconstituir quase integralmente os quatro Evangelhos, se o texto autêntico viesse a perder-se um dia.

Só Santo Irineu cita e comenta 469 textos, sendo 234 de S. Mateus, 18 de S. Marcos, 125 de S. Lucas e 94 de S. João. Tertuliano cita e comenta 925 textos, sendo 310 de S. Mateus, 31 de S. Marcos, 407 de S. Lucas, 177 de S. João.

É quase o Evangelho inteiro.

QUINTA PERGUNTA

VII - Pretensa ignorância

O professor Draper, Davidson, Vidal, Le Clerc, A. Daile e outros investigadores da historia dos primórdios do cristianismo chamam os theólogos e bispos primitivos, únicas autoridades da historia do começo do cristianismo, de "ignorantes", "crédulos", "incoerentes", "unilaterais", "exageradores", etc. Como isto reflete desfavoravelmente nas bases do cristianismo, qual é a refutação dos defensores do cristianismo?

Esta pergunta só merece resposta em consideração à pessoa que a transmite.

Que são estes pretensos sábios Davidson, Vidal, Le Clerc, Daile e outros, que não passam de protestantes fanáticos, ao lado dos gênios refulgentes, como são os primeiros teólogos da Igreja, que se chamam S. Clemente, Sto. lnácio, S. Justino, Sto. Irineu, Orígenes, Tertuliano, Papias, Marciano de Atenas, Taciano de Assíria, Atenágoras, Teófilo, Hermas, Quadrato, Apolinario, Militão de Sardes, Hegesipo, Dionísio de Corinto, Rodon, Caio de Roma, etc., quase todos eles bispos e todos homens de letras, teólogos de punho, verdadeiros sábios, cujos escritos conservam até hoje um valor inigualável de doutrina, de sã filosofia, e de documentação científica. São eles que colocaram as bases doutrinais e científicas da nossa moderna filosofia, e da eterna teologia, tão admiravelmente organizada hoje em dia.

E estes homens serão uns ignorantes, crédulos, incoerentes?

Neste caso, adeus à ciência verdadeira...

Os cientistas são, então, os tais futuristas, cuja ciência não passa de extravagâncias, de novidade sem base, tendo só por meta não fazer como fazem os outros.

Qual é o valor científico de tais críticos para censurarem a quem não conhecem?

Estou certo de que os tais Draper, Davidson & Cia... nem de nome conhecem Orígenes, Tertuliano e os outros teólogos católicos dos primeiros seculos; nem os conhecem e longe estão de terem lido os seus escritos.

A verdade histórica, certa e provada é esta que acima expus, enquanto detratores nada provam; são apenas: Verba, praetereaque nihil.

SEXTA PERGUNTA

VIII - Cristianismo e paganismo

Existe algum dogma ou Sacramento no credo cristão que não fizesse parte, seculos antes do advento do cristianismo, das religiões pagãs da Asia e do Egito?

Tal pergunta, igualmente, não deveria ser respondida, pois faz uma confusão lamentável entre a religião verdadeira de Jesus Cristo e as seitas errôneas do paganismo.

Não há quase nada de comum entre estes dois termos de comparação, afora as grandes verdades da lei da natureza e do bom senso comum.

Primeiro, faço notar que o dogma, sendo um ponto da doutrina fundamental, começa a existir desde que existe a tal verdade.

Jesus Cristo revelou-nos novos dogmas, mas depois dele não ha mais novos dogmas, mas apenas proclamação de dogmas existentes. Dogmas e Sacramentos são completamente diferentes.

O dogma é uma verdade que se deve crer; o Sacramento é um meio de santificação.

Ha certos dogmas comuns entre cristãos e pagãos, por exemplo: a existência de Deus, a bondade, a justiça de Deus, a sobrevivência da alma, a recompensa ou o castigo na outra vida, etc.

Fora destes pontos comuns que pertencem ao senso comum, o cristianismo tem seus dogmas particulares, ignorados pelo paganismo: por exemplo: a SSma. Trindade, a encarnação do Filho de Deus, a Redenção, a graça, etc.

Quanto aos Sacramentos, só o cristianismo os possui, pela simples razão de os Sacramentos serem todos instituídos por Jesus Cristo, de modo que nunca houve, nem pode haver sacramentos no paganismo, nem em qualquer seita religiosa: é o privilegio exclusivo do cristianismo.

As religiões pagãs da Asia e do Egito não têm, pois, nada de comum com a Igreja de Jesus Cristo, fora das grandes verdades da lei natural, do senso comum; enquanto a Igreja de Cristo tem muitas e muitas coisas desconhecidas ao paganismo.

O cristianismo nada copiou do paganismo, pois, em sua essência, existia antes do paganismo.

A religião de nossos primeiros pais, dos patriarcas do Antigo Testamento, dos hebreus, era a religião divina até ao Cristo, trazendo em seu seio as figuras e os símbolos que deviam realizar­ se na pessoa do Salvador.

Jesus Cristo, como ele mesmo no-lo disse, não veio suprimir a lei antiga, mas realizá-la, aperfeiçoá-la. - Non veni solvere legem, sed eam adimplere (Mt5,17).

O paganismo foi a desviação, a corrupção da lei judaica, de modo que, afastando-se da lei antiga, ficou afastado da lei nova, não tendo mais com esta lei nova nenhuma relação vital, enquanto a lei judaica conserva tais relações na parte dogmática e moral, sendo apenas absoluta a sua parte judiciaria e cerimonial.

IX - Conclusão

Eis a resposta às seis perguntas de meu consulente. Espero que as suas duvidas dissipar-se-ão diante da exposição simples, mas certa e clara das verdades aqui tratadas e provadas.

Nestas linhas os leitores verão a beleza divina, a harmonia admirável, a base imperecível da doutrina cristã, e verão, ao mesmo tempo, como a Igreja Católica conserva integralmente o depósito divino que lhe foi entregue por seu divino Fundador.

A religião da Bíblia não é o protestantismo (como dizem os aderentes de Lutero) , mas a Igreja Católica, Apostólica, Romana.

Só ela conserva integralmente os ensinos da Bíblia; só ela aceita a Bíblia inteira; só ela faz da Bíblia a sua regra de fé e de vida; só ela obedece aos preceitos da Bíblia; só ela considera a Bíblia como sendo o livro divino, a palavra divina, tirando dele a sua fé, a sua moral, os seus sacramentos, as suas tradições e os seus meios de salvação.

Desde o começo do cristianismo a Igreja adotou, interpretou e pregou o Evangelho integral, como ainda hoje o prega.

Nenhuma mudança, nenhuma supressão, nenhuma adição foi feita à palavra divina.

Esta unidade admirável, esta estabilidade universal, esta firmeza sem vacilação, através do tempo e do espaço, é a grande prova da divindade do ensino católico, como a mudança e a vacilação das seitas protestantes são a prova de seu erro e de sua falsidade.

Terminemos, repetindo o brado digno e sublime do grande escritor Louis Veuillot: "Católicos de todas as nações, filhos da santa Igreja, ufanemo-nos de nossa santa mãe, pela qual somos filhos de Deus.

Nós, podemos, diante dos homens, erguer a fronte que inclinamos diante da santa Igreja, podemos trilhar com segurança o caminho que ela nos mostra; este caminho sempre foi e sempre será o caminho da honra, da caridade, da luz e da salvação!"

QUARTA POLÊMICA

O coração e o amor

ESTUDO FISIOLÓGICO-MORAL SOBRE O CORAÇÃO, O AMOR E A PAIXÃO

Recebi de um distinto médico a carta que se segue, e que merece uma resposta documentada, em vista das grandes questões científicas que levanta, e da sinceridade com que parece ser escrita.

Grandes e complicadas questões teológicas, filosóficas, fisiológicas e psicológicas apresentam-se nestas linhas, todas elas de palpitante atualidade, pouco explicadas em outros livros que não o fazem de um modo claro e ao alcance de todos, e, ao contrario, muitas vezes são transtornadas e deturpadas pela impiedade e pela libertinagem. Eu podia limitar-me a uma resposta simples e resumida, mas dirigindo-me a um distinto médico e a leitores inteligentes e sinceros, já acostumados com polemicas até árduas, prefiro tomar pela frente e pela base todas as duvidas e erros, refutá-los e opor-lhes a verdade única e segura.

1 - A consulta

Um medico paulista, operador especialista, escreve-me:

Egrégio senhor P. Júlio Maria.

Tive ocasião de ler a sua bem argumentada refutação à obra de um tal dr. José de Albuquerque, que não conheço. E confesso não conhecer nem o autor nem a obra.

1 - Os filósofos materialistas veem no amor apenas o mecanismo dos órgãos sexuais.

Diz Bernard: O amor é unicamente a consequência da nutrição. Os espiritualistas - e é esta a categoria em que incluo V. S., - nada mais veem nele sinão uma torpeza.

2 - Renan, em seu "Exame de consciência filosófico", diz: O amor é o primeiro dos grandes instintos reveladores que dominam a criação inteira e que parecem impostos por uma vontade suprema. O seu alto valor resulta do fato de participarem dele todos os seres e de que o bem dele resultante se vê evidentemente ligado às finalidades do universo.

Diz Schopenhauer: é o estratagema, de que usa a natureza, para chegar ao escopo mais serio que possa existir no mundo, e nenhum ser pode subtrair-se à sua ação, sinão violentando a natureza.

3 - É surpreendente - diz Flamarion nas suas "Fantasias Cósmicas" - que a ciência e a filosofia, comparticipando da frívola opinião dos mundanos, tratem (o amor) - causa por excelência do universo - como um simples motivo de gracejo, e não façam dele o objeto capital das suas observações.

4 - Não transporto para aqui as opiniões que, sobre o assunto, têm Max Nordau e Salomão Reinach, notoriamente antirreligiosos, porque poderiam parecer suspeitas.

Entretanto eles perguntam por que os espiritualistas, levados por uma repugnância que se tão explica na ordem das coisas filosóficas, não veem que no amor a gente está em frente à lei da própria organização do mundo?

As opiniões principais são, portanto, três.

Recapitulando:

5) 1 - O amor é um ato material de prazer, do qual é bom se abster (S. Paulo, citad9 por V. S.).

6) II - O amor é um instinto, muitas vezes invencível, provocado pela repleção de certos órgãos (materialistas em geral).

7) III - O amor é a lei fundamental do universo, a ultima finalidade da existência (terrena?) (filósofos citados).

8 - Pergunto, agora, a que tende a castidade do clero?

9 - A resposta só pode ser esta: " Servir de exemplo contra a imoralidade e os excessos".

1O - Evidentemente, não se pode pensar em um incitamento para acabar com a raça humana.

11 - Se assim é, pensa V. S. chegar a essa finalidade? Ou, não se provocarão antes piores males, falseando um ato, isto é, reduzindo ao nível de uma torpeza o amor que não é um instinto, como pretende V. S., mas sim uma lei suprema, a própria razão de ser da existência?

12 - Falseando um ato, em que não podem ver o menor mal nem filósofos, nem estetas, nem cientistas, nem artistas, não pensa V. S. que isso possa ter influência sobre o caráter do povo, induzindo-o à hipocrisia? Não se obterá com isso um efeito contraproducente, sanando de um lado e provocando de outro um mal pior?

13 - Não parece a V. S. que poucas regras claras, precisas e honestas sobre a higiene do amor (a moral muito frequentemente não passa de higiene) poderia produzir frutos mais fecundos que um exemplo incompreendido de castidade do clero?

14 - E passando a uma outra ordem de ideias: ainda mesmo admitindo que o amor seja um instinto sobriável, não julga V. S. que a abstinência possa prejudicar fortemente a psyché do individuo, como demonstrou Freud, autor da Psicanálise, com farta messe de exemplos; si é assim, não constitui a castidade absoluta um prejuízo para o individuo?

15 - Muito grato ficaria a V. S. se quisesse dar-me alguma elucidação sobre o assunto, porque, inteiramente leigo em questões teológicas, desejaria ardentemente ser orientado sobre os pontos acima expostos.

Do S. am. att.

Dr. J. B. C.

Não tendo pedido licença ao autor da carta, deixamos de publicar o nome por extenso.

Os números são divisões nossas e correspondem às respostas.

II - As respostas

Antes de responder às diversas perguntas aqui formuladas, convém fazer um curto estudo do assunto, para esclarecer os seus múltiplos aspectos. Diante da luz da verdade, todas as objecções cairão por si mesmas, como as trevas diante do sol.

Assinalo, primeiramente, uma confusão de termos, que são como que a base dos erros neste caso, e que o meu digno consulente não notou, talvez.

Há confusão entre castidade e amor. Estas duas coisas são formalmente diversas.

A castidade é a abstenção dos prazeres carnais ilícitos.

O amor é a estima que se tem de uma pessoa ou de um objeto preferido.

São Paulo recomenda muito a castidade, mas não condena o amor. "Teipsum castum custodi: Conserva-te casto", escreve ele a Timóteo (1Tm5,22). E ele escreve aos colossenses: Sobretudo tende amor, que é o laço da perfeição (CI3,14). E a Timóteo: O fim do preceito é o amor de um coração puro (1Tm1,5).

Dizer, pois, que o clero, conservando a castidade, despreza o amor, é um grande erro… um erro fundamental, como pretendo provar aqui.

A castidade não somente não prejudica o amor, mas o desenvolve, o aperfeiçoa e o leva ao ápice de sua sublimidade. O dr. cita a palavra de Renan, (ótimo filólogo e estilista, mas péssimo moralista): "O amor é o primeiro dos grandes instintos reveladores que dominam a criação inteira, e que parecem impostos por uma vontade suprema".

A ideia de Renan é exata, embora a expressão seja inexata.

O amor não é instinto, é uma faculdade da alma. Nossa alma conhece, quer e ama: conhecer, querer e amar são os três elementos do homem racional.

O amor domina toda a criação: é verdade; e este amor não somente parece, mas é até imposto pelo criador. É a grande lei divina: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força (Lc10,27;Mt22,41).

O amor é tudo neste mundo: tudo, tudo; é mister compreender bem o que é o amor, e não confundi-lo com a vulgar e baixa paixão carnal, o que acontece bastantes vezes.

Dizer que os espiritualistas têm a repugnância do amor, é um erro completo.

Os espiritualistas renunciam aos prazeres ilícitos da carne, para melhor cultivar o amor. Chamo aqui espiritualistas àqueles que cultivam a vida espiritual.

Os inimigos do amor são os gozadores da vida, dominados, como são, por instintos que lhes pervertem a inteligência, a vontade e o coração.

O amor é tudo na vida!

O homem deve amar, não pode viver sem amar; mas, convém saber o que é o amor, donde vem, para onde vai, qual a sua origem, a sua sede, o seu segredo.

E tudo isso vamos elucidar aqui.

III - Necessidade do amor

A mocidade vai apreciar este titulo, e até a velhice baterá palmas.

Tanto melhor! É uma verdade, e a verdade sempre merece aplausos. O homem pode viver sem fortuna, sem honras, sem prazer, mas não pode viver sem amor.

Quem não ama, está morto, disse o Salvador: Qui non diligit, manet in morte (1Jo2,14).

O homem, sendo criado à imagem de Deus, cuja essência é o amor - Deus charitas est - não pode deixar de participar desta essência - deve ser também amor.

Nada é tão grande como o amor, exclama Sto. Agostinho: Magna res est amor!

Ficar sem amor, é ser miserável e detestável: Detestandi et miserabiles si ni/1il ametis.

Amai, pois. Amai muito: Deus o quer!

mas, cuidado em amar o que deve ser amado: Amate, sed quid ametis videte.

Há muito amor fraudulento, muita contrafação, muito amor de mascara! Ai! de nós, se amarmos o que não merece ser amado: Sim! três vezes ai! pois uma ferida no coração é sempre mortal.

No homem tudo depende da direção de seu amor. Tendo livre arbítrio, podemos escolher o objeto de nosso amor; porém, a escolha sendo mal feita, não somos mais livres de evitar a ruína.

Bem fazer esta escolha, é uma questão de­ vida ou de morte: Tudo está aí.

O homem vale pelo seu amor. É sempre o grande Sto. Agostinho que estou comentando: "Amas a terra? diz ele; tu és terra: - Terram diligis, terra es; amas a Deus? tu és Deus: Deum diligis, Deus es!"

Quereis escrever a historia de um homem, de uma família, de uma nação?

Estudai o seu amor, não vos enganareis nunca; toda a filosofia da vida aí está.

"Dois amores, diz Santo Agostinho, construíram duas cidades: o amor de Deus, indo até ao desprezo de si mesmo, construiu a cidade de Deus; o amor de si mesmo, indo até ao desprezo de Deus, construiu a cidade de Satanás".

Amar a Deus, é o céu ; não amá-lo, é o inferno: - Locus ubi non amatur. O inferno é ausência do amor. Eis, meu caro dr., a doutrina da teologia do amor, a doutrina da Igreja Católica, a doutrina de Jesus Cristo.

Estais vendo que não se trata de menosprezar, longe de desprezar o amor, mas sim de irradiá-lo, de espalhar o seu fogo, de abrasar todos os corações, e transformar os homens pelo amor: - Charitas a Deo est. Deus é a fonte do amor - e ele quer que este amor se espalhe pelo mundo inteiro. É a sua própria palavra: Eu vim trazer o fogo (do amor) à terra: e que quero eu, senão que ele se acenda? (Lc12,49).

IV - Três espécies de amor

Em geral, só se conhece um amor. É pena!

Ha no homem três espécies de amores, e amores bem distintos, tanto na sua origem, em sua formação, em sua manifestação, em seus efeitos.

Temos de entrar aqui no domínio da fisiologia e da psicologia; não se espantem, porém, os leitores com a feição filosófica do nome. É um nome complicado para significar coisa muito simples.

O homem é composto de um corpo e de uma alma. Este corpo e alma formam uma única e mesma natureza, uma mesma substancia composta, como o provam as relações intimas do físico e do moral, e a admirável unidade de toda a pessoa.

A alma humana é uma substancia espiritual e imortal, criada por Deus, na ocasião da formação do corpo, mas unida a este corpo para dominá-lo e sobreviver a ele.

O homem, sendo como a coroação da criação, possui a vida vegetativa, como as plantas; sensitiva, como os animais ; intelectual, como os .anjos. A alma é o principio destas diversas operações pelas diversas faculdades que possui.

A vida vegetativa refere-se ao corpo.

A vida sensitiva refere-se ao coração.

A vida intelectual refere-se à inteligência e à vontade.

Tal é a tríplice vida que contém a vida humana: o coração ocupa o centro desta vida; a inteligência ocupa a parte superior; os sentidos formam à. parte inferior.

O coração é um. O amor é um, mas este amor, indiferente em si, recebe a sua forma definitiva pela faculdade que o faz nascer, o orienta e o dirige; daqui nasce um tríplice amor, muito diferente um do outro. O amor em si, amor natural, é indiferente, e chama-se instinto nos animais, sendo amor natural, instintivo, no homem.

Quando este amor natural é dominado e dirigido pela inteligência e pela vontade, ele torna-se o amor sublime, o amor verdadeiro, o amor sobrenatural.

Quando este amor natural é dominado e dirigido pelo corpo, pelos sentidos, ele torna-se o amor abjecto, carnal, bestial!

O primeiro amor (natural) conserva o homem em seu logar próprio de homem.

O segundo amor (intelectual) eleva o homem acima da natureza e o aproxima de Deus.

O terceiro amor (carnal) atira o homem no lamaçal do vicio, da devassidão e da imundície.

Temos assim, pelo amor: o homem, o santo e o pecador.

Eis o que é claro, científico, lógico e natural. Vamos agora estudar, em particular, cada um destes três amores, ou, se quiser, a dupla transformação do amor natural.

V - O Coração e a biologia

A biologia é a ciência da vida dos corpos organizados.

Cabeça e coração, dizem os filósofos, formam o duplo centro do homem. Seria melhor dizer que o coração é o ponto central do organismo, e que a cabeça é a sua coroação.

O fisiologista vê no coração apenas uma bomba premente, encarregada de distribuir o sangue a todos os órgãos.

O psicólogo enxerga, além da bomba, e penetra um mundo novo de segredos admiráveis.

A vida vem da alma, que é a sua fonte única; por isso, todas as partes do nosso corpo devem ficar em contato com a alma.

A alma não anima, entretanto, do mesmo modo e na mesma ordem, todos os órgãos do corpo; ela tem seus órgãos privilegiados a quem se comunica com mais abundância e a quem informa antes dos outros.

Ora, o coração é o órgão vital, por excelência, mais perto da fonte, e mais bem preparado para receber e distribuir os eflúvios da alma.

A biologia mostra-nos que o coração é a primeira parte viva de nosso ser; o primeiro órgão que se destaca do envolucro grosseiro do gérmen, e entra imediatamente em função. Os outros órgãos aparecem mais tarde, cada um no tempo e conforme a necessidade do desenvolvimento.

Sto. Thomaz enuncia este profundo princípio biológico: O primeiro em cada coisa é, por assim dizer, o principio e causa de tudo o que segue.

Cor principium vitae in animali (S. Th1,9,75.a1c).

Assim o coração preside ao nascimento, ao desenvolvimento, à função e à conservação de cada um dos órgãos, pois a vida do corpo vem do sangue. - Sanguis pro anima est (Dt12,33). (Lt17,14). - Anima omnis carnis in sanguine est, diz a Bíblia (Lt7,14).

A doutrina tomista é magistral a este respeito, e serve de base a todos os princípios biológicos, fisiológicos e psicológicos.

O coração, diz ele, inclui o princípio da vida; e o princípio inclui o todo em potência. Est principium vitae, principium autem est virtute totum (1a,2a, 9,17).

Eis por que é um principio e m filosofia que o coração de carne é o centro, a sede, o órgão e o princípio dos sentimentos interiores e das afeições da alma (Sto. Tomás, De mot. cord. op.35).

VI - O coração e a fisiologia

A fisiologia trata das funções orgânicas, pelas quais a vida se manifesta.

A fisiologia do coração é o amor.

O coração é o órgão próprio do amor - ele é como o instrumento primário da atividade da alma. Ora, a alma, pelo principio de sua criação, sendo a imagem de Deus, é antes de tudo amor.

É a alma que ama, e comunica diretamente o seu amor ao coração, que o transmite depois aos outros órgãos, direta ou indiretamente movimentados por ele.

O coração torna-se, deste modo, o principio de nossa vida.

Tal é a linguagem da fisiologia e da Sagrada Escritura. Esta última atribui sempre ao coração tudo o que é amor, ternura e afeição.

E não se pode objetar que nos passos bíblicos, o coração é tomado alegoricamente pela alma, pois, o próprio Deus faz distinção no grande preceito do amor: Amarás ao Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força (Dt6,5).

Deus conhece a significação das palavras: Ele distingue aqui um tríplice elemento no amor completo: - coração, alma e força.

O coração: é o centro e o princípio da vida.

A alma: é a inteligência.

A força: são os sentidos do corpo.

Eis o homem inteiro.

"Com estas palavras, - diz Sto. Agostinho, Deus quer fazer-nos compreender que tudo em nós lhe pertence, e que devemos lhe consagrar todas as afeições de nosso coração, assim como todos os pensamentos de nosso espírito e todas as ações de nossa vida" (De Doct. chr. Lib.1, c.22).

O coração é, pois, fisiológica e divinamente, o órgão próprio do amor.

VII - O coração e a psicologia

A psicologia trata das faculdades e operações da alma. A psicologia da alma é a verdade, o bem ou tudo representado pelo amor.

Este amor lhe é natural, e é instintivo no homem como no animal.

No homem, é o amor social.

No animal, é o instinto.

A família é a primeira sociedade natural; é por ela que a sociedade se conserva e se propaga.

As inclinações domésticas são estas que aproximam diversos membros de uma família.

O amor conjugal é o principio de todas as afeições domesticas, deve distinguir-se, corno veremos em breve, das tendências inferiores que temos em comum com os animais.

O amor paterno e materno são a extensão e o complemento natural do amor conjugal.

O amor filial é puramente físico no começo, mas apura-se e aperfeiçoa-se pelo desenvolvimento da sensibilidade e da inteligência.

O amor fraterno é fundado sobre os laços.

do sangue. Um irmão é um amigo natural. Tal é a função psicológica do coração, órgão próprio do amor.

Esta função pode ser mais ou menos intensa.

No grau menor, é o simples exercício da faculdade; num grau maior, é a paixão.

Este ponto é geralmente mal entendido.

O exercício normal do coração é uma atividade. A paixão é um estado passivo.

O coração quer amar - é a atividade; ele sente seu amor desprezado: sofre; esta dor chama-se paixão (pati).

Ele sente seu amor correspondido: sente a alegria. Esta alegria é uma paixão.

O coração não age, mas sofre a ação de outrem.

A paixão é, pois, composta de três elementos: Para o bem: a inclinação,· o prazer e o desejo.

Para o mal: a inclinação, a dor e a aversão.

O amor é, pois, indiferente de sua natureza, ficando entre o vício e a virtude.

Ele torna-se virtude quando é dirigido pela parte superior do homem, isto é, a inteligência e a vontade; e torna-se vicio, quando é dominada pelos sentidos.

O amor já descrito: conjugal, paterno, materno, filial, fraterno, é um amor natural, indiferente, quer dizer que não é nem virtude, nem vício: é um dever, é o exercício normal do coração. Este amor, sendo dirigido pelos sentidos, pode tornar-se vício.

VIII - A direção do amor

As noções que precedem vão nos dar a chave dos segredos amorosos.

Se o homem pudesse ficar nos limites das funções normais do seu coração, ele amaria o que deve amar naturalmente, e fugiria do que não merece o seu amor.

Neste caso, não haveria nem virtude, nem vício.

Este estado é imaginário, e não pode existir.

O homem não pode ficar indiferente. ele ama...

e deve amar com paixão. A paixão do amor, como as outras paixões, (os filósofos enumeram onze paixões capitais) encontram excitantes inevitáveis.

Na ordem fisiológica, elas provêm da natureza e da hereditariedade, que depositam no organismo os germens que tendem a desenvolver-se. Na ordem física, há ocasiões numerosas que provocam as tentações. Na ordem psicológica, há a imaginação, que exerce uma influência considerável na gênese do amor apaixonado.

O coração não pode, pois, ficar indiferente...

pela natureza, ele deve amar; pelas circunstâncias, ele deve amar com paixão.

Existe no homem uma faculdade motora, esclarecida e livre, distinta dos apetites inferiores: é a vontade.

Os apetites correspondem aos sentidos que nos sãos comuns com os animais, enquanto a vontade corresponde à inteligência, que nos é comum com os anjos.

No homem, a vontade e os apetites encontram-se, combinam-se ou se combatem; de modo que somos capazes, sucessivamente, de querer com inteligência e paixão, ou, ao contrário, de fazer violência a nossos próprios sentimentos.

A vontade depende primeiro da inteligência, que é seu princípio, mas é só para mandar, depois, a ela e às outras faculdades.

A vontade é livre em seu ato próprio.

A liberdade consiste na diferença, não de querer ou não querer, mas de escolher entre tal bem ou tal outro.

O que atrai necessariamente a nossa vontade é o bem; - ela deve querer um fim último.

A indiferença entre o bem e o mal não existe.

O homem não pode querer o mal (seria um defeito da liberdade), mas há liberdade entre tal ou tal ato, e liberdade de fazer ou de abster-se.

O coração, na escolha de seu amor, deve, pois, ser dirigido pela inteligência e a vontade: o coração deve amar o bem.

E o bem, o bem verdadeiro, o único bem é Deus.

IX - O amor verdadeiro

Deus é o bem necessário, infinito, que a nossa vontade deve prosseguir, concentrando sobre ele o amor do coração. Esta aspiração chama-se aspiração ideal.

Os filósofos definem o homem: um animal racional. A teologia podia defini-lo: um animal religioso.

Esta aspiração religiosa, conforme o seu ponto de vista, reveste-se de diversas formas: É o respeito que se deve a Deus, como autoridade.

É o temor de Deus, como o soberano juiz.

É o amor a Deus, como pai amoroso.

É neste amor supremo que veem condensar-se todas as afeições humanas. Sem duvida, este amor não destrói os outros amores, mas os outros devem harmonizar-se com ele, devem ficar-lhe sujeitos.

O amor de Deus é o único em que o excesso é impossível. Este amor inclui o amor de si e o do próximo.

Por meio deste amor o coração se eleva, sobe, sobe... até perder-se em Deus. Deum diligis, Deus es. Amando a Deus, o homem torna-se Deus, diz Sto. Agostinho.

É a idealização do amor do coração humano.

É uma necessidade. O amor em cima, ou o ódio em baixo. Ou o amor da felicidade, ou o declive da desgraça.

Eis por que S. Paulo exclama: Se alguém não ama a Nosso Senhor jesus Cristo, que ele seja maldito (2Cr16,22).

É este amor que faz os santos. É este amor que transforma os homens, que suscita o heroísmo, que faz germinar as virgens, os apóstolos e os mártires. Sem este amor divino, o homem é fraco; com este amor ele torna-se um herói.

Dai-me um homem que ama a Deus, e ele será capaz de todos os heroísmos; ele se elevará acima de todas as criaturas: Da mihi amantem et sentit quod dica, exclama Santo Agostinho.

X - O amor falso

É pena ser obrigado a descer das alturas em que nos eleva o amor verdadeiro!

É tão bom amar assim e ser assim amado!...

Mas, infelizmente, se o amor tem asas para voar, ele é também de carne para rastejar.

Se ele é de luz e de êxtases, quando se eleva, torna-se, todavia, torpeza e lodo, quando se abaixa.

Penetremos um instante nesta espelunca tenebrosa, onde o demônio é rei, onde o vício é triunfo, onde o crime é glória.

"Liberdade! quantos crimes se cometem em teu nome!!", disse alguém.

E pode-se dizer também: Amor! quantos crimes se cometem em teu nome!!

Chamam amor às relações criminosas, que não passam de uma caricatura do amor ou de uma paródia aviltante.

Não há nem sombra de amor, nem de sagrado! São, antes de tudo, sentimentos profanos ou, melhor, profanados! É a simples concupiscência; e, entre a concupiscência e o ódio, só ha, muitas vezes, uma membrana delgada, uma lâmina de mica, que depressa se desfaz.

Pascal dizia: A concupiscência é fundamentalmente um ódio.

E Bourget afirma: A volúpia, quando não é senão um sentimento físico, está sempre prestes a se tornar feroz. Mas não basta dizer: vamos prová-lo.

Abaixo das faculdades espirituais (inteligência e vontade) há no homem as faculdades orgânicas, sensíveis, comuns ao homem e ao animal.

Umas lhe permitem conhecer os objetos sensíveis, (sentidos exteriores e interiores); outras lhe permitem procurá-los (instintos e paixões).

Estas faculdades não residem na alma só, mas no composto de alma e corpo, tendo cada um seu órgão especial. Estes órgãos podem prestar grandes serviços à inteligência, porém diferem dela essencialmente. A alma espiritual e imortal, que vive em nós, não pode ser comparada com a alma sensitiva, inferior, que anima os animais. Esta ultima ignora a verdade e a moral, e é incapaz de virtude, de progresso e de liberdade.

O homem, pervertido pelo pecado original, inclina, instintivamente, para o lado do mal. Sentimos em nós um sangue viciado, que ferve e se revolta... é uma tríplice concupiscência que S. João definiu: concupiscência da carne, concupiscência dos olhos, e soberba da vida. (1Jo2,16).

O amor não se pode dirigir a si mesmo; precisa de um condutor. Ora, só existem dois condutores: a vontade e os sentidos. Não se deixando dirigir pela vontade, o amor cai necessariamente nos braços dos sentidos, nas garras da concupiscência.

É a carne, e a carne quer carne; a carne vira lama, pela putrefacção.

O amor perde o seu brilho e fica lamacento, lodoso, fedorento!

E o mal é o pecado!. E este não é amor, é castigo!

XI - Não é amor é egoísmo

Amar é querer bem ao objeto ou à pessoa que se ama.

O amor é essencialmente comunicativo: quer expandir-se. É o que um antigo adagio exprime muito bem: Amore, more, ore, re, probantur amicitiae! - É pelo amor, pela vida, pela boca e as ações, que se provam as amizades.

Amar é querer bem a outrem.

Conforme o fim, há duas especies de amor:

Amar a si mesmo, é o egoismo que procura o bem próprio, que não vê no objeto amado senão um meio de satisfazer-se.

Quem ama deste modo, não ama senão a si mesmo: é o amor da concupiscência, entrando, deste modo, na categoria das inclinações pessoais e egoístas.

O único amor digno deste nome é aquele que quer e faz o bem à pessoa amada. - É o amor de benevolência.

Este amor consiste essencialmente em sair de si mesmo, em esquecer-se, e, por uma substituição de personalidade, encontrar a sua felicidade na felicidade de outrem. Só o homem é capaz deste amor.

Amar é dar; para dar, é preciso possuir, o que é o próprio de uma pessoa racional. O animal não pode esquecer a si mesmo; ele é essencialmente egoísta; pode, entretanto, apegar-se a alguém, mas na expectativa de alimento ou de caricias...

Não pode dar, só aspira receber.

Tais são as leis fisiológicas que presidem às funções dos sentidos.

Tiremos a conclusão.

O homem que despreza a parte inferior do seu ser, a parte animal, para escutar a voz de sua inteligência, e dirige as afeições para o que o dignifica e enobrece, Deus e a virtude, é o homem que ama com um amor verdadeiro.

O homem que despreza a parte superior de seu ser, a sua inteligência, e deixa o seu coração seguir os impulsos da carne, dos sentidos, deixa de ter um amor racional, tem apenas um amor animal, um amor carnal, um amor bestial.

E este amor é lama.

XII - Um exemplo: a amizade

Um exemplo vai elucidar estes grandes princípios. A amizade é um amor de escol, entre duas ou diversas pessoas.

O que constitui a amizade é uma troca de sentimentos, baseada sobre uma troca de bens.

Ora, ha três especies de bens: o deleitável, o útil e o honesto. Há também três especies de amizades: A primeira quer só o prazer; A segunda quer a vantagem; A terceira quer bem ao seu amigo.

Qual destes três é o verdadeiro amigo?

O primeiro é um animal; O segundo é um egoísta; O terceiro é o amigo bom, de quem a Escriptura diz: Amicus fidelis, protectio forfis (Ec6,14), e Amico fideli, nulla est comparatio (Ec6,13). Um amigo fiel é uma proteção forte, e nada lhe pode ser comparado.

Todo amor inspirado por uma qualquer concupiscência - do prazer ou do interesse - apoia-se sobre o egoismo, que não deixa Jogar à dedicação. O agrado dos sentidos não tem nada de sólido, e o interesse desloca-se com os caprichos da fortuna ou do tempo. É a razão por que ha muitas amizades, e poucos amigos.

No amor, ou amizade de benevolência, ao contrário, o amigo vive na alma da pessoa amada, considerando como bens e males próprios os bens e os males da pessoa amada, ao ponto de sofrer com ela e de alegrar-se com ela, mais do que por causa de si mesma.

Uma palavra espirituosa de M. Sevigné à sua filha bem exprime esta amizade. Vendo a filha sofrer dores de cabeça, a mãe lhe disse: Minha filha, eu sofro de sua cabeça.

XIII - A depravação bestial

Tiremos uma nova conclusão: ela é horrível, mas é exata.

A amizade que se dedica às criaturas, unicamente pela beleza de sua forma, pelo prazer, pelo atrativo carnal, não é amor, é depravação bestial.

Amar é dar e tal amor não da nada, só quer receber.

Amar é querer o bem da pessoa amada.

Tal amizade não quer o bem da pessoa, quer apenas o bem de seus sentidos, a volúpia carnal, o prazer, o gozo pessoal - a lama. Ah! não confundam a bela e pura aspiração do amor com a baixa torpeza de um corpo apodrecido e de sentidos à procura da lama!

É uma profanação do amor. É arrancar do amor as asas luminosas e substituí-las por peles de morcego.

Quem só sabe amar pela carne e para a carne, deixa de ser homem - é um animal.

A animalidade não faz parte do amor; é o antípoda do amor.

Se assim não fosse, que seria do amor nobre e puro da mãe e do pai para seus filhinhos? Se não pudessem amar este pedaço de seu coração sem o prazer da carne, o lar da família não existiria mais, seria um infame lupanar. Oh! horror!... Não existiria mais o amor dos filhos para seus pais, sem o gozo da carne, - desapareceria o amor dos irmãos uns aos outros, - as amizades profundas e heroicas!...

É horrível!... Entretanto, assim seria, se não pudesse haver amor e amizade, sem o gozo da carne.

Há, pois, um amor verdadeiro, puro, santo e divino: é o único amor, aquele que é baseado sobre Deus e que se chama virtude. Ha uma aberração abjeta, uma paródia aviltante, que não tem do amor senão o nome, e que é no fundo a bestialidade, a perversão de um coração profanado, que sente a podridão da carne e a embriaguez das paixões, julgando ser isto amor. Não! não! É a degradação do amor! e esta degradação é o princípio do ódio. Quem fomenta relações ilícitas, com uma cúmplice, não tem direito de lhe dizer: Eu te amo.

Não há verdadeiro amor quando só os sentidos tomam parte nele. É impossível amar uma pessoa, arruinando-lhe a honra, a alma e sendo-lhe a causa da eterna condenação!. Isto não é amor, é ódio!

XIV - A febre sensual

Um grande moralista disse que o amor sensual é uma febre passageira que começa pelo tremor e acaba pelo bocejo.

Tal amor, diz o Dr. Dupasquier, é uma flor que se desfolha e que murcha quando é tocada.

Estas duas comparações são exatas, e mostram que, ao invés do amor que é baseado sobre as qualidades, a paixão sensual apoia-se unicamente sobre o atrativo; e, como tal, ela é passageira, como tudo o que é efêmero. A paixão sensual é como o fogo do inferno: queima sem consumir.

A paixão lança nos olhos um não sei que, que faz achar bonitos os rostos mais feios, que mostra amáveis pessoas sem educação, e que faz admirar o que nos devia fazer fugir. De todas as paixões, a paixão sensual é a que mete mais desordem na alma e lhe faz cometer mais absurdos.

Não há escravos mais atormentados que os da paixão sensual. Eis por que Deus ordena que os apetites inferiores sejam dominados.

Sub te erit appetitus tuus, et tu dominaberis (Gn4,7).

P. Eymieu, o grande psicólogo francês, diz muito bem: "Logo que a loucura mutila o ser humano, não fica senão a besta, e a besta venceu o anjo!"

O vício é triste. O homem vicioso pede ao prazer não simplesmente a limitada necessidade do órgão, como o animal, mas as aspirações infinitas do coração.

Mas, à medida que a paixão se exalta, o gozo vai diminuindo. O desejo cava o abismo do coração, enquanto os órgãos gastam-se, como tudo o que é material.

O vicioso vai caindo assim em seu próprio laço: - procura gozo e só encontra tristeza, remorso, aborrecimento. O pecado gera a tristeza, porquanto, diz São Tomás, um ser consciente, colocado fora da ordem, há de sofrer fatalmente.

Meu amigo, proponho-lhe esta questão a que me responderás: "trouxe-te o pecado impuro a felicidade?" - Achaste na paixão sensual outra coisa após a breve epilepsia, senão náusea intima, enjoativa?

Imensa avidez, seguida de um imenso enjoo.

Eterno atrativo, eterna desilusão!

Acabemos com isso: amores ilícitos! amores de lama!

XV - Conclusão

A conclusão é a resposta às perguntas feitas pelo digno médico consulente.

A exposição, embora resumida, é comprida, porque a consulta abrangeu muitas dúvidas e perguntas, que era preciso esclarecer e responder, não podendo por isso ser feita senão estudando o assunto em suas bases, leis e desenvolvimento.

A resposta agora será curta. Os números correspondem aos da consulta.

1°. - É um erro dizer que o amor é o mecanismo dos órgãos sexuais, ou a consequência da nutrição, ou ainda uma torpeza. O amor é indiferente; obedecendo ao espírito, é a virtude; seguindo a concupiscência, é o vício.

2°. - Renan diz certo, mas não diz bastante; o amor é a grande lei humana e divina, na direção acima indicada, obedecendo ao espírito e não à carne.

3°. - A opinião de Flamarion é excelente: O amor é tudo neste mundo.

4°. - Aqui há confusão lamentável. Os espiritualistas não professam repugnância ao amor.

Cultuam e cultivam o amor verdadeiro, desprezando a torpeza e o vício.

5°. S. Paulo não proibiu o ato lícito, proibiu o pecado; é mais perfeito abster-se, porque este ato não é um ato necessário à vida, mas apenas necessário à propagação.

6°. Opinião falsa, refutada; o amor não é um instinto, mas sim uma faculdade da alma. Só os animais têm o instinto; o homem tem o livre arbítrio.

7°. Opinião certa; porém, é o amor verdadeiro que é a lei fundamental do universo, e não a bestialidade, que não é amor, mas torpeza, como já provei acima.

8°. A que tende a castidade do clero? - A dominar as inclinações perversas e a cultivar o amor de Deus e do próximo.

9°. Erro; a resposta é outra; o ato lícito não é imoral. O casamento é um sacramento instituído por Jesus Cristo.

Então Jesus Cristo teria instituído imoralidades? O que é imoral é o ato ilícito.

10°. Não há perigo de se acabar a raça humana. Há 4.000 anos que o mundo se povoa, sem cessar e com continuo incremento. - O que faz periclitar a raça humana é o vicio e o abuso, o crime da limitação da natalidade, entre os casados, e outros crimes torpes que o dr., como médico, deve ter encontrado.

11°. Contradição. É o vício que produz tal efeito e não a virtude.

12°. Não vale a pena repetir o que já provei na refutação ao livro imoral "Moral sexual". A castidade é possível, e é até fácil, segundo o ensino da medicina, da filosofia e diante das milhões de provas de almas puras e castas.

13°. Outro erro. A higiene é uma ciência material, tendo por fim indicar as precauções a tomar para conservar a saúde e prolongar a vida; a educação física e moral entram em seu quadro, porém o amor, faculdade da alma, está acima das ciências humanas! O amor pertence à psicologia. O exemplo do clero só não é compreendido pelos libertinos. A castidade do padre católico é a sua grande auréola divina.

14°. Não! a abstinência não prejudica à psyché (alma do individuo). Como é que a cultura de uma faculdade da alma lhe pode ser prejudicial?

A castidade desenvolve o amor, e liberta o coração das tendencias da carne.

O estudo prejudica à inteligência?

A energia prejudica à vontade?

A alimentação regrada prejudica à saúde?

Como é que o amor puro prejudicaria ao coração?

A devassidão e a libertinagem, sim, prejudicam à inteligência, à vontade, ao corpo e à alma.

O sr. dr. o sabe perfeitamente.

Os abusos sensuais são a fonte da maior parte das moléstias.

Freud tem coisa boa, mas também tem muita coisa inventada e sem base.

15°. Creio ter respondido a todas as perguntas de meu digno consulente; e estou certo que o doutor, elucidado sobre estes grandes e importantes problemas que já, parcialmente, lhe são conhecidos pelas ciências próprias de sua arte, isto é, a anatomia, a psicologia, a patologia e a terapêutica, encontrará novas luzes neste pequeno estudo psicológico, filosófico e teológico, que são os ramos especiais dos sacerdotes católicos.

O medico é o sacerdote do corpo, como o sacerdote é o medico das almas.

Convém, pois, que haja união entre as duas ciências do corpo e da alma, para melhor compreender o sublime destino do homem: Amar a Deus e ao próximo por amor de Deus.

Eis a grande finalidade! a única verdade!

QUINTA POLÊMICA

A pobreza de Cristo e o luxo do Papa

Diversos católicos mandaram-me um numero do "Sul de Minas", de Varginha, (Sul de Minas) pedindo-me respondesse a um ataque de um certo Plínio Moita, da Academia Mineira de Letras.

O ataque é velho; o articulista não tem o mérito da invenção, pois mostra apenas que está imbuído da doutrina maçônica e de espírita zombeteiro. Apenas reproduziu o que leu em publicações anticatólicas, sem se informar se o tal fato existe ou não.

O sr. Plínio Motta pretende jogar pau e pedra no luxo do Papa, tomando, como tese, "que o Cristo era pobre e que o seu sucessor é de uma riqueza fabulosa".

Em Roma, no dizer do sr. Plínio, tudo é ouro e prata; tudo é riqueza nababesca.

Pobre Plínio Motta! Pretende descrever o que não viu, contar o que não existe, comparar sem conhecer nenhum dos termos da comparação.

Se nós pedíssemos ao zombeteiro sócio da Academia Mineira de Letras uma única prova de tudo o que escreveu, ele responderia: dizem, disseram, ouvi dizer! Ora, o sr. Plínio sabe que isso não prova nada: isto é argumento de quem não tem argumentos; isto é indigno de um acadêmico.

Mas, vamos aos fatos, não aos fatos imaginários, mas reais, convidando o sr. Plínio Motta a fazer uma viagem a Roma afim de que ele veja "de visu" o ridículo de suas asserções infantis e de seus ataques zombeteiros.

I - Objeções e argumentos

O articulista começa citando um texto que atribui a Bernardes ou a Vieira: Na Igreja antiga os cálices eram de pau e os sacerdotes de ouro.

Tal texto não é nem de Bernardes, nem de Vieira; é de S. João Crisóstomo; - eis o primeiro erro do sr. Plínio.

Estas palavras mostram a pobreza das igrejas, devido às continuas perseguições daquela época e a santidade dos sacerdotes. É uma glória para os sacerdotes católicos!

Mas, agora, vejamos a fenomenal conclusão do acadêmico: Hoje, com raras exceções, diz ele, pode-se inverter este pensamento: Na Igreja moderna, os cálices são de ouro, os sacerdotes de pau!"

E isto chama-se um argumento!

S. João Crisóstomo exalta o sacerdócio, e o nosso acadêmico exalta os cálices.

pode-se inverter, diz ele, o pensamento...

Sim, senhor, pode-se inverter tudo, neste mundo...

Eu também podia inverter pensamentos e dizer, por exemplo: - Nas academias antigas havia acadêmicos de ouro, em casas de pau; nas academias modernas há acadêmicos de pau em casas de ouro: por exemplo, o ilustre Plínio Motta.

É um exemplo. Eu não afirmo isso, pois sinto o ridículo do argumento. Creio na inteligência do sr. Plínio; descreio, apenas, em seu espírito religioso.

O sr. Plínio Motta continua lacrimoso (lágrimas de crocodilo): "É bastante constrangido que ouso ventilar este assunto, porque sou católico, apostólico, romano, de principio..."

Pobre sr. Plínio! A Igreja católica, apostólica, romana, é uma só, e faltando um destes atributos, faltam os três, porque são inseparavelmente unidos.

V. S. ataca, calunia e blasfema a Igreja romana; é o bastante para mostrar que não pertence a esta mesma Igreja, não sendo, pois, nem romano, nem católico, nem apostólico.

V. S. protesta contra esta Igreja, e protesta pelas calúnias; é, pois, protestante, e um protestante autêntico.

Pode ser que V. S. não pertença a uma seita determinada do protestantismo; isto pouco importa, porque o termo genérico daqueles que se revoltam contra a Igreja Católica é protestante.

A especificação de tal protestante provém da seita que depois abraça, tornando-se assim: batista, metodista, chorão, adamista, knoxista, etc.

V. S. aprendeu, como diz, deste tamaninho a amar a Deus sobre todas as coisas.

Isto é belo! Louvada seja a santa mãe, que lhe ensinou tão grande coisa... Mas parece que o pobre filho não soube compreender o ensino de tão virtuosa mãe, e hoje blasfema o que a mãe adorava.

II - Os maus padres

A grande mágoa do sr. Plínio Motta é "ver que a maior parte dos padres não segue os santos ensinamentos do divino Rabi da Galileia".

Caro acadêmico, esta é uma grande asserção, que um homem não deve afirmar sem provar.

Vamos lá, amigo, um pouco mais de raciocínio e menos zombaria.

Para dizer isso, V. S. deve conhecer de perto a maior parte dos padres.

Há, por este mundo afora, mais de meio milhão de padres católicos.

Quantos V. S. conhece? Quantos observou e estudou de perto? V. S. já viajou fora do Brasil?

Há no Brasil 2.239 padres seculares e 1.999 padres regulares, isto é, um total de 4.138 padres. (Nota: dados do ano de 1935.)

Quantos V. S. conhece entre eles?

Não falo da Europa, que, com certeza, V. S. nunca viu, como não viu Roma, pois assim não diria tantas tolices.

Ora, não conhecendo nem a maioria dos 4.138 padres do clero brasileiro, como é que V. S. tem a coragem de dizer que a maior parte dos padres é indigna, não seguindo os ensinamentos do Cristo?!

É argumento de criança: Ab uno disce omnes!

Eu conheço muitos acadêmicos, homens de letras, de ciência, digníssimos; e conheço outros que não passam de boêmios; seria isso razão de dizer que o sr. Plínio Motta é um boêmio? Deus me livre de tal asserção.

Para formular uma opinião séria sobre a classe, é preciso recorrer às diversas Academias de Letras, examinar as opiniões e a vida dos acadêmicos, compará-los e depois formular o argumento.

O sr. Plínio Motta fez isso com os padres católicos? De certo que não.

Percorreu, às pressas, uns panfletos protestantes e maçônicos, caluniando o clero e citando, como prova irrefutável, a queda de qualquer padre, que talvez nunca foi padre, como aconteceu ultimamente com um ex-porteiro de seminário, e, pronto, o argumento é irrefutável: 5 calunias, 10 exageros, 4 mentiras e 1 realidade.

A conclusão está segura com isso; são 20 maus padres... e conhecendo mal a mal 22 padres, o acadêmico conclui mui academicamente: "a grande maioria dos padres não presta mesmo".

Eeis o ilustre sr. Plínio a derramar lágrimas do tamanho de um ovo, gemendo e escrevendo: "A caridade, para eles, é hoje um vocábulo vão; tem quase todos a usura de Shilock. Acham que a moeda é a hóstia dourada da comunhão da vida!"

Tirai os chapéus, senhores, inclinai a fronte, para saudar a frase acadêmica do sr. Plínio Motta, feito auxiliar de Deus, na defesa da verdade. - Dei adjutores sumus!

O sr. Plínio sabe até latim. Não teria sido seminarista? ou talvez qualquer porteiro de seminário?

Eu conheço mais padres do que o sr. Plínio.

Percorri grande parte do norte do Brasil, pregando missões nas cidades e nas aldeias, no meio dos índios e dos civilizados, até Tumucumaque.

Encontrei muitos índios. - Padres, infelizmente, poucos demais - e entre eles, poucos ricos, quase todos pobres, vivendo de sacrifícios e de fadigas; uns sustentando os pais ou irmãos, outros sustentando obras de caridade, mas todos eles não tendo nem uma migalha de reserva para a velhice. Isso vi, meu caro acadêmico.

Eu peço a V. S. indicar-me uns acadêmicos nestas condições, sim, a começar por aquele que tão crocodilamente critica os padres.

Mostre-me as suas obras de caridade, sr. Plínio, e eu lhe mostrarei as obras de nosso clero brasileiro. Vamos para a balança!

III - Isto, sim, sr. Plínio

O nosso grande acadêmico foi até manusear os concílios de Ravenna, de Bruges e de Londres.

Imaginem! Por que não citou o concílio de Petrogrado, as decisões de Lenine e de Trotsky?!

O sr. encontrou nestes concílios o anathema sit para quem recebesse espórtula por enterro?

Eu não sabia disso... Julgava que só o Papa podia lançar o anátema sobre os violadores das leis da Igreja, e agora estou aprendendo que até concílios particulares podem fazer isto.

Estou com quase 60 anos de idade, e cada vez mais aprendendo, até do sr. Plínio Motta, que talvez não tem ainda pelos no queixal de Sansão.

Ah! isto sim, seu Plínio... Muito bem, mas há coisa melhor.

O sr. Plínio descobriu que o padre não pode receber dinheiro para confessar!?

O sr. Plínio já pagou alguma divida no confessionário? pode ser! quem sabe!?

O padre nada pode receber pela confissão, mas os ladrões restituem, às vezes, no confessionário, o bem mal adquirido.

Só se pode tratar de uma restituição! Isto sim, sr. Plínio.

E o sr. Plínio continua gemendo: "Os padres nada perdoam ao próximo e fazem da Igreja um verdadeiro baldo". Muito bem!... Os padres perdoam muito, sr. Plínio; só não perdoam ao ladrão que não quer restituir, e assim a Igreja torna-se um balcão de restituição.

Visto o sr. Plínio saber tão bem destas coisas, certas más línguas seriam capazes de julgar que o sr. já esteve no caso... da restituição. Eu penso que é maledicência, mas, emfim, o sr. Plínio faz acreditar o fato.

IV - Os trajes do sr. Plínio Motta

É para atacar o Papa que o sr. Plínio junta em um só feixe a sua argumentação formidável de acadêmico zombeteiro.

Escutai bem, senhores... e com o chapéu na mão: "O Papa é o homem mais rico do mundo. A cúria romana é um deslumbramento de extraordinarias divicias! Sua Santidade, sentado em sua riquíssima séde gestatoria, cercado de sua luzida guarda suíça, tem a grandeza de um rei! A faldistoria, capa magna do Papa, toda de ouro e purpura, vale por um manto real..."

E o sr. Plínio termina, sempre chorando!

(Que bela e cândida alma!) - "E, no entanto, Cristo, sempre bondoso, só se vestia de uma grosseira túnica de burel, e só usava alpercatas de couro crú!"

E o sr. Plínio a chorar os tempos idos... e naturalmente, ele, tão católico e apostólico (não romano) vestindo, a exemplo de jesus Cristo," a grosseira túnica de burel e as alpercatas de couro crú".

Não viram passar ainda o sr. Plínio Motta, na sua profunda humildade... enquanto o Papa veste ouro e purpura?

Parabéns, caro sr. Plínio. O sr. é mesmo o reformador do relaxamento universal. Eu convido-o a fazer uma visita à minha paróquia de Manhumirim, que muito precisa de tal exemplo!.

Mas, não esqueça" a grosseira túnica de burel, e as alpercatas de couro crú".

Eu sou capaz de mandar fazer uma reproducção para o Papa!...

V - As riquezas do Papa.

O incomparável acadêmico, não satisfeito em censurar os trajes do Papa, que ele nunca viu, lança agora pedras nas janelas do Vaticano, na Curia Romana, na sede gestatória, na faldistória, nos protonotários, advogados, etc.

Ó terrível Plínio! Não há vidraça, nem casa que resista a tantas pedradas! lmaginem em que estado terá ficado o Vaticano e a Curia Romana!

O que eu admiro é que o duce Mussolini não tenha lançado um protesto contra tal vandalismo do sr. Plínio Motta, ou não tenha depositado uma queixa no Consulado brasileiro em Roma. Terrível Plínio! és mesmo um enfant terrible!

O sr. Plínio não suporta nem riqueza, nem luxo, nem ouro, nem púrpura.

Por que isto? Seria ele bolchevista?

- Não pode ser. O sr. Plínio é católico, apostólico, embora anti-romano.

Eu pergunto apenas se o enfant terrible conhece Roma? o Papa? o Vaticano? a Curia Romana? Se já viu a tal sede gestatória e a faldistória?

Se não viu nada de tudo isto, é melhor ficar calado, caro acadêmico, pois a gente não deve afirmar sem provar, ou pelo menos ter testemunhas seguras, cujas palavras mereçam fé.

VI - O que é a Igreja

Mas sejamos francos e examinemos de perto a objeção formidável.

A Igreja é uma sociedade divino-humana, isto é, fundada por Deus, mas confiada aos homens. Neste último sentido, a Igreja é uma sociedade natural, como por sua fundação, fim e meios, é uma sociedade sobrenatural. Em seu desenvolvimento, no exercício de seu magistério, a Igreja deve, pois, comportar-se como sociedade natural, na medida em que lhe permitam as instituições e os ensinos de seu divino fundador.

Por isso, apesar da promessa divina de nunca perecer, a Igreja está sujeita, como sociedade humana, ao ponto de vista da prosperidade, às altas, às baixas, às flutuações, conhecendo dias de triunfo e dias de tristezas, como todas as coisas humanas. É uma reflexão importantíssima para bem julgar o caso.

A Igreja parece-se, forçosamente, com uma sociedade civil qualquer, bem dirigida e bem administrada. Ela tem a sua hierarquia, em que cada um é tratado conforme a sua qualidade.

De outro lado, a Igreja, sendo universal, contendo em seu seio milhões e milhões de membros de todas as condições sociais, a hierarquia católica recebe, deste fato, uma importância capital, devendo a primazia dos interesses, que ela salvaguarda, valer-lhe a primazia de honra e de esplendor.

Assim o termo desta hierarquia, o Papa, deve aparecer cercado da auréola de majestade e de poder moral incomparáveis. Esta aureola deve manifestar-se na pompa que acompanha a aparição oficial do Santo Padre, porque assim deve ser nas coisas humanas, e neste ponto a Igreja divina de Cristo é humana, porque é feita para os homens.

Isto não se discute, e qualquer homem de bom senso, mesmo não sendo acadêmico, como o sr. Plínio, compreende isso.

O presidente da Republica Brasileira é homem como qualquer outro, porém, estando revestido da autoridade suprema da nação, todos os cidadãos brasileiros exigem que o seu presidente tenha o seu palácio, sua comitiva, suas honras oficiais... que ande bem trajado, que tenha educação e até aparato quando aparece em publico.

Isso é natural!

E se o presidente da Republica andasse pelas ruas de alpercatas ou tamancos, em mangas de camisa, si montasse qualquer cavalo velho, jogasse e bebesse nas tavernas... todos - e inclusive o sr. Plínio Motta - fados gritariam: "é uma vergonha, é uma baixeza! e que o Brasil deve ser mais respeitado e ter um chefe que faça respeitar a sua dignidade e o seu papel social!"

Entretanto, o presidente da Republica é apenas o chefe de 40 milhões de habitantes.

E como é então, ó ilustre acadêmico, que o Papa - que é o chefe espiritual do mundo - que tem sob a sua autoridade imperadores, reis, presidentes de republica, marechais, doutores e acadêmicos, gênios e sábias, artistas e homens simples, ricos e pobres, o Papa, digo, que tem neste mundo afora milhões e milhões de súditos, não estaria obrigado a apresentar-se com dignidade, majestade e esplendor?

Por que, então, ó Plínio?

Por que é que, entre nós, u m presidente da Republica é cercado de honras e u m Papa cercado de barbaridades?

Ou quer o sr. Plínio que a primeira autoridade do mundo - o Papa - seja só acompanhado de um grupo de mendigos, índios, africanos, chineses, zulús e outros bárbaros e semi-bárbaros?

E esta é a ideia que o sr. tem da vida social, da civilização e da autoridade?

E por que o sr. Plínio exige isso dos outros e não o pratica?

Criticar não é exemplo; censurar não é ser artista; maldizer os outros não é elevar a si mesmo; dizer tolices não é ter bom senso!

VII - O Papa do sr. Plínio Motta

Sob o pretexto de jesus Cristo ter nascido num estábulo, seremos nós todos obrigados a nascer num estabulo?

Jesus Cristo exerceu durante a mocidade o ofício de carpinteiro, para nos dar o exemplo do trabalho; seremos nós todos obrigados a aprender o ofício de carpinteiro?

Neste caso, devemos também pregar o Evangelho, deixar-nos açoitar, coroar-nos de espinhos e morrermos numa cruz!

Comece, sr. Plínio, sim? Deixe-se pregar numa cruz, morra numa sexta-feira... e ressuscite no domingo seguinte, sim?.

Se o sr. Plínio conhecesse a resposta que Napoleão deu a um adulador, que lhe propunha fundar uma nova religião, daria de certo a mesma resposta. Para se fundar uma nova religião é preciso deixar-se matar numa sexta-feira e ressuscitar no domingo seguinte.

A primeira coisa não quero, disse Napoleão, e a segunda não posso! Experimente, sr. Plínio, pois V. S. é tão católico e apostólico!...

Mas continuemos o argumento.

Jesus nasceu num estábulo, habitou pobre choupana, escolheu seus apóstolos dentre os pescadores, gente ignorante e grosseira, é certo; então, será preciso que o Papa, legitimo sucessor de S. Pedro e representante de Cristo na terra, será preciso, digo, que o Papa tenha nascido num estabulo, more numa choupana de palha, escolha os bispos e os padres entre os pobres sem instrução e educação, despreze as ciências humanas, o progresso, as invenções, ande a pé, calçado com sandálias, de burel grosseiro, coma mandioca e feijão com os dedos, beba água ao pote numa cuia amazonense e durma no chão?...

É isto que o sr. quer?

VIII - O Papa dos católicos

Nós, católicos, romanos, nós queremos outra coisa! Nós queremos um Papa que seja, pelo menos, da Academia de letras, como o sr. Plínio, mas que não envergonhe esta classe pelas tolices que escreve.

O Papa, no governo da cristandade, os bispos, no governo de suas dioceses, devem fazer compreender ao mundo que a Igreja é feita para homens, e, como tal, que ama e anima tudo o que favorece o progresso do espírito humano; que ela é a protetora esclarecida da civilização; que ela é a mestra incomparável das inteligências, estimulando tudo o que enobrece e eleva a nossa alma.

A Igreja não é uma sociedade barbara, julgando que tudo é desprezível, afora a Bíblia, como os protestantes. Nossas faculdades, ao igual das nobres paixões que são a mola viva da natureza humana, recebem da Igreja um impulso que lhes permite produzir o máximo de rendimento.

É, pois, necessário que a Igreja se faça grande, na pessoa de seu mais alto representante.

A este respeito, não há comparação a estabelecer entre jesus Cristo, que é Deus, e o seu representante, que é homem.

Deus pode abaixar-se: ele fica sempre Deus, imenso e infinito. - O homem não pode abaixar a sua dignidade; deve elevar-se pela virtude e pelo lugar social que ocupa. O fundador da Igreja Católica tinha em suas mãos o poder de fazer milagres, de ressuscitar os mortos, de impor a sua vontade aos elementos da natureza, de modo que, rebaixando-se em sua humanidade, a divindade continuava a refulgir como dantes. Estes dons, Deus não os deixou em permanência à sua Igreja, de modo que, sendo apenas homem, o Papa deve realçar a sua dignidade perante os homens, pelos meios que os próprios homens costumam empregar.

IX - A majestade do Papa

O Papa cerca-se de majestade e de honras.

E assim deve ser. É necessário, é logico que assim o faça.

O povo católico respeita o padre, que é o ministro de Deus... e inclina-se diante dele para receber a benção ou beijar-lhe a mão.

O povo sente e vibra ao ver o sacerdote. Mas quando o padre dos padres, o bispo dos bispos, o representante de Deus na terra, o Santo Padre, como dizemos, aparece, não deve ser ele recebido com respeito, com honras merecidas por ser o representante de Deus?

Então, só os pontífices do mal, como são os grão-mestres maçônicos, chefes de seitas, etc., teriam o direito de impressionar o povo pela magnificência de que se revestem? E o grande pontífice do bem, da verdade e da virtude, não teria direito a mostrar a grandeza da religião, a grandeza de Deus e a grandeza da virtude que representa?

Mas, por que isso?

Então o vício e a podridão merecem um trono, uma sede, e o pontífice do mundo católico deveria esconder-se sob o pretexto de que o Cristo se escondia?!

Não;não! Os governos se impõem a seus súditos pela majestade: é necessário que o Santo Padre, além da virtude que o adorna, seja cercado de todas as honras, que merece o Deus que re­ presenta n a terra.

O Vaticano é rico", diz o sr. Plínio.

Sim, como é rico o Catete onde reside o chefe do Brasil.

O Vaticano é rico: é o palácio do Papa, como sucessor de São Pedro; não é propriedade dele, como o Catete não é propriedade do Presidente da Republica.

É o palácio da nação.

O Vaticano é o palácio da cristandade.

Os pretensos milhões de Papas não passam de invencionices da impiedade, como a pretensa corrupção da corte do Papa não passa de miserável e baixa calúnia.

X - A historia do Papado

O nosso acadêmico, que só escreve para caluniar, mostra admiravelmente sobre que concentrou os seus estudos.

Não conhece a historia da Igreja. Isto é certo, mas conhece todas as torpezas, como todas as calúnias e baixezas assacadas contra esta Igreja.

Há dois modos de examinar uma instituição:

1) ver a sua grandeza pelo bem produzido;

2) examinar as suas faltas, vendo só as suas manchas.

Toda obra tem este duplo aspecto. A Igreja de Jesus Cristo é divina, na pessoa de seu fundador, em sua doutrina, em seus meios de santificação, em seu ensino.

Esta mesma Igreja divina é ao mesmo tempo humana, porque é composta de homens, embora revestidos de um poder divino.

Pode-se, pois, considerar a Igreja sob este duplo aspecto. O nosso Plínio, que parece ter instintos baixos, como tem critérios baixos, não quer ver o lado divino da Igreja, só quer ver o lado humano. Encontrando manchas neste lado humano, grita, brada, como um possesso, "que tal não é a Igreja verdadeira de Cristo, que está decaída, que o papado é um horror, os padres são uns endiabrados". Felizmente, fica em pé, acima de tudo e de todos, o incomparável Plínio Motta, católico da gema, tendo recebido de uma mãe piedosa o respeito à religião, mas dando agora pontapés na religião e na boa mãe, lançando babas sobre tudo o que ela lhe ensinou, e, por conseguinte, lançando lodo sobre o tumulo da própria genitora que ele condena, condenando o que ela lhe ensinara.

"A historia do papado, brada o novo Archimedes, é por demais sabida. A concupiscência de muitos sacerdotes é ainda o reflexo das monstruosidades de Alexandre VI, etc... "É simplesmente nojento o que segue: "Horrível, conclui o Plínio, mas é verdade! Ninguém pode contestá-lo, que os livros estão aí, como uma dolorosa afirmação!"

É admirável!... E notem que o sr. Plínio diz ser da Academia Mineira de Letras...

Conheço muitos acadêmicos, homens de valor. Conheço bem Minas - o coração do Brasil.

Conheço pouco as letras, mas estas do sr. Plínio são letras de pagodice que desonram a Academia, Minas e as letras.

O sr. Plínio faria bem em estudar um pouco; parece criança! Um homem não apresenta tais argumentos.

Um livro, caro Plínio, não é prova de nada, pois ha livros bons, ruins, morais e imorais, etc.

Hoje o mundo está cheio de livros bolchevistas, imorais, pandegas... Que prova isso de nossa sociedade?

Nada! pois, se há canalhas, ha também muita gente boa, e ao lado de um Plínio blasfemador, há em Minas muitos católicos respeitadores de sua fé e da Igreja.

Um livro só tem valor comprobativo quando cita e prova fatos.

Ora, eu peço ao Plínio citar-me uma prova seria da má vida dos Papas caluniados!... Uma só, sr. Plínio.

Baba não é argumento, sr. Plínio, é sujeira!...

Queremos provas.

Sacerdote e missionário velho como sou, tenho lido e estudado muito, e conheço a historia da Igreja e dos Papas, desde São Pedro até ao glorioso Pio XI; também conheço os caluniadores hereges, desde Cerinto até Plínio Motta. Encontro, na historia dos primeiros, virtudes sublimes e grandeza d'alma, como encontro, nos segundos, baixeza e miséria.

O sr. copiou de qualquer protestante ou maçom as suas calúnias, mas não conhece a historia da Igreja, nem a vida dos Papas que procura caluniar, e que calunia por ignorância.

XI - Historia dos Papas

A refutação geral às infâmias do Plínio não é bastante; quero entrar nos pormenores, pois a Igreja não receia nem a luz nem a ciência; só receia a ignorância, o vicio e a má fé, como se vê nos ataques de Plínio Motta.

O caluniador cita apenas o nome de dois Papas: - devem ser os piores... de certo, para dar mais valor ao argumento da calúnia; pois bem, vamos consultar a historia destes dois, que são: Alexandre VI e João XI , que, de fato, foram muito atacados.

a) O PAPA ALEXANDRE VI

Este Papa tem sido atrozmente caluniado, pela razão muito simples que, sendo dotado de uma vontade férrea, soube impor-se a todos os inimigos da religião, e foi grandemente caluniado, como sói acontecer com os grandes lutadores.

Alexandre VI é o famoso Rodrigo Borgia.

Antes de sua elevação ao trono pontifício, a história nada nos transmite de sua vida; porém, podemos julgar os antecedentes pelos consequentes, e dizer que sendo Papa, e a história não citando dele nenhum fato repreensível, podemos concluir que antes era igualmente de uma vida correta e honrada.

O que é certo, é que Alexandre VI demonstrou, na defesa da Igreja, como na defesa da liberdade italiana, um espírito sagaz e um zelo incansável.

Em Florença, reprimiu a fogosidade indiscreta do dominicano Savonarola; pacificou a Itália dividida pelas facções; enfrentou a ira de Carlos VIII, rei de Nápoles; fez recuar todos os opressores da Santa Sé, e com mão firme tomou a peito todos os interesses da cristandade.

Compreende-se que um homem de tal têmpera, rijo, valente e zeloso, tenha provocado as iras dos sectários, da impiedade e dos inimigos de Roma.

Daí provêm as baixas calúnias que assacaram contra o ilustre pontífice.

Os inimigos, vencidos e humilhados, não podiam deixar de manchar, pelo menos, a reputação do grande Papa, e não tendo podido macular a sua vida, tiveram a baixeza de acusá-lo de monstruosidades carnais.

Vê-se logo, pelo ardor do pontífice, que o seu caráter não era nada efeminado, nem inclinado às baixezas da carne, mas, para os caluniadores, tudo serve para alcançar o que desejam.

b) O PAPA JOÃO XI

O segundo Papa criminoso, dizem os inimigos de Roma, (que fiel e servilmente o nosso Plínio copia) é João XI, que se amasiou com a própria mãe. É a prase do sr. Plínio.

Examinemos a historia imparcial a este respeito. João XI é mais antigo que Alexandre VI; reinou de 931 a 935. Temos de novo poucos pormenores da vida deste pontífice.

A época era de uma decadência geral. Havia intrigas sem numero dos nobres e ricos, para colocar sobre o trono de S. Pedro um de seus parentes, e deste modo assegurar-se a força moral dos Papas no mundo.

Marozzia, viúva de Guido de Toscana, por mil intrigas, chegou a fazer eleger como Papa o seu filho, João XI, que reinou apenas uns 4 anos, sendo despojado de seus estados pelo próprio irmão Alberico, que se apoderou dos estados pontifícios.

Em consequência, João XI viu reduzidas as suas funções espirituais, e nas mesmas condições viveram os seus quatro primeiros sucessores.

Marozzia, mãe de João XI, tendo enviuvado, casou-se de novo com Hugo, rei de Provença e ltália, e com este casamento retirou-se de Roma, para seguir o seu marido, o rei Hugo.

A história nada diz da vida do Papa João XI. Sabemos apenas que a época era de decadência, e que este estado foi penetrando no clero, como penetrava em toda a escala da sociedade.

Era ele digno ou indigno? Não possuímos nada de positivo; sabemos apenas que seus antecessores e sucessores foram todos homens de valor, de doutrina e de santidade. Bento IV era um santo; Anastácio lll, João X, Leão VII, Estevão VII, deixaram uma memoria imaculada.

João XI sucedeu a Estevão VII e tem contra si o fato de ter sido imposto pela ambição da própria mãe.

É uma mancha, porém uma mancha que macula a vida da mãe e não a do filho, e que não prova que ele fosse indigno.

Seus sucessores foram: Leão VII, (936-939), e Estevão Vlll (939-942), igualmente homens de valor e de doutrina.

Agora, quanto à infame acusação de ter este Papa ficado amasiado com a própria mãe, vê-se imediatamente que só a pena nojenta de um Plínio pode reproduzir tal absurdo.

A mãe de João XI era casada, enviuvou e casou-se de novo com o rei Hugo, afastando-se de Roma, logo depois deste casamento, para seguir o seu marido. É baixeza sem nome que só pode ser propalada por um ímpio ou um devasso, pois qual é o filho que teria a baixeza de acusar uma mãe já idosa e casada de cair em tais misérias?...

XII - Os maus Papas e a Igreja

Em vez de enxergar apenas o lado humano.

do papado, o sr. Plínio devia ter considerado a instituição e a glória sobre-humana, que cerca e acompanha esta instituição.

Verdade é que o pobre acadêmico não escreve... é simples plagiador dos ódios dos inimigos da Igreja... mas, emfim, caro Plínio, o lodo é coisa que não se reproduz, é coisa que se despreza... É preciso escrever coisa séria e fundada, ou pelo menos com aparência de verdade.

Os inimigos da religião apontam Papas indignos, e com isto procuram aviltar o papado.

É uma injustiça, pois em toda sociedade é preciso distinguir a sociedade e as pessoas que a compõem e dirigem.

Tal distinção impõe-se pelo bom senso.

O Brasil é uma instituição republicana.

Houve presidentes da Republica bons, honestos, progressistas; houve também ruins, perversos, retrógrados, até verdadeiros ladrões dos cofres publicos.

pode-se concluir deste fato que a Republica Brasileira não presta, é perversa, é retrograda?

Não, porque os defeitos são dos homens e não da instituição.

A classe médica é uma sociedade digna, composta de homens dedicados, abnegados e sábios, o que não impede que haja médicos sem consciência, sem capacidade, verdadeiros exploradores, e até matadores.

Podemos concluir disto que a classe médica é uma instituição desprezível?

Seria ridículo dizê-lo. Todos compreendem que a classe médica é distintíssima, e que a presença de uns membros indignos atinge só a pessoa e não a classe. A Academia Mineira de Letras contém homens de valor intelectual e moral, escritores, pensadores e sábios, que honram a ciência e as artes. E por haver entre eles uns bobos, uns pretensiosos, sem compostura e sem preparo, (ignoro se o sr. Plínio esteja nesta categoria) pode-se concluir disto que a Academia Mineira de Letras seja desprezível?

Absolutamente, não! O nosso Plínio é uma pequenina personalidade. Eu devia dizer que não é nada, pois não passa de vulgar plagiador de tolices alheias, enquanto a instituição é de respeito e de dignidade.

Mas, como é, meu caro Plínio, que a distinção que todo homem de bom senso faz entre a sociedade e os componentes dela deixa de existir quando se trata da sociedade divina humana - a Igreja Católica?

A Igreja fundada por Jesus Cristo é divina, é santa, é sublime. Esta sociedade é dirigida por homens, assistidos pelo Espirita Santo, no ensino da verdade e da moral; porém, eles são homens como os outros, quanto às suas funções, e como tais podem cometer erros e até crimes; porém, tais erros afetam somente a pessoa e não a autoridade de que é revestida esta pessoa.

Admitindo, pois, que na Igreja Católica tenha havido, entre os sucessores de São Pedro, qualquer Papa, cuja vida não esteja isenta de repreensão, que prova isto?

Prova simplesmente contra ele, contra ele só, e não contra a instituição que ele representa.

Mesmo admitindo que todos os Papas fossem uns monstros, uns tiranos, uns perdidos, que provaria isto?

Provaria, caro Plínio, que a Igreja é completamente divina pois, apesar de tão ruins e perversos representantes, ela continua firme, uma, santa, civilizadora, sempre combatida e nunca vencida; caluniada por fora e rasgada por dentro, e entretanto não desaparece; atravessa os tempos, os séculos, as lutas, os ódios, e fica sempre igualmente santa e sublime.

Como o dedo de Deus se torna visível nisto!

Assim em vez de caluniá-la, o homem de bom senso devia prostrar-se de joelhos, e dizer: "Só Deus sustenta uma tal obra! Esta Igreja, tão mal dirigida, continua a triunfar de tudo: ela é divina!" Eis a conclusão do bom senso, mesmo tomando as coisas pelo lado pior que apresentam.

Mas Deus não podia permitir que assim fosse. A Igreja deve ser um farol que ilumina o mundo, e eis por que não somente ela é santa, mas os seus chefes, na sua grande maioria, são santos e homens de extraordinária virtude.

Consideremos de perto este ponto.

XIII - Gloria do Papado

O papado é a instituição mais sublime e mais gloriosa deste mundo: - é uma instituição divina.

Os papas formam a coroa mais refulgente e mais gloriosa de todas as autoridades desta terra: - é uma coroa de santos. Nenhuma instituição deu à Igreja tantos santos como a dos papas. O dedo de Deus é visível, é palpável.

Há muitos santos bispos, padres, religiosos e religiosas, mas o papado é uma sucessão quase ininterrupta de santos. É gloriosa demais, é divina demais para esta verdade ficar escondida.

Percorramos a historia da Igreja e encontraremos em seguida, sem interrupção, 60 Papas santos.

É a coisa mais estupenda possível.

Desde S. Pedro até S. Silvestre, isto é, do ano 42, da era cristã, até 538, houve 60 papas todos extraordinários, venerados como santos, brilhando por virtudes e milagres. Qual é a dinastia de imperadores e reis que possa apresentar uma tal genealogia? Não existe, e nunca existirá.

Prova que o papado é obra divina; e que os papas são escolhidos pelo Espírito Santo, formando uma genealogia de homens verdadeiramente extraordinários. E não é só isto. Depois de S. Silvestre, a virtude e a santidade não diminuíram nos Papas. Há entre eles uns que não são canonizados, é certo, mas, salvo raras excepções, continuam as mesmas tradições.

Depois de S. Silvestre, brilhou com extraordinário esplendor imensa lista de santos: S. Gregorio Magno (604), S. Deodato I (618), S. Martinho I (654), S. Vitaliano (672), Sto. Agatão (682), S. Leão II (684), S. Sergio I (701), S. Gregorio II (731), S . Gregorio III (741), S. Paulo (768), S. Leão III (816), S. Pascal I (824) , S. Leão IV (855), S. Leão IX (1055), S. Celestino (1294), S. Bento XI (1305), S. Pio V, (1572), etc... até chegar aos Papas da época moderna, conhecidos pelo público, por suas extraordinárias virtudes: Pio IX (1878), Leão XIII (1903), Pio X , o santo admirável (1913), Bento XV (1922), Pio XI, atualmente reinante, astro luminoso de primeiro valor, tanto pela ciência, como pela prudência e virtude.

Eis o que é o papado, e que são os Papas.

Por haver nesta legião gloriosa um ou outro, mais caluniado do que culpado, cuja vida não teria tido a nobreza de sua linhagem, seria isso razão de atacar a Igreja?

Oh! cale-se, por favor, sr. Plínio! O sr. ou é um cego, um ímpio, um obcecado ou um ignorante! Não há outra saída. Vamos, pobre Plínio, cite-nos os grão-mestres de sua maçonaria, analisemos-lhes a vida, para ver o que são e o que eles valem ao lado desta legião gloriosa de santos pontífices romanos!

A comparação é impossível, porque a Igreja Católica é divina, enquanto a maçonaria é diabólica, como são diabólicos a ousadia, o ódio dos caluniadores da obra de Cristo.

XIV - Conclusão

É tempo de concluir.

Para que discutir com um cego que não quer ver ou surdo que não quer ouvir?

Mas, paciência! Não é pelo valor das miseráveis objeções do sr. Plínio que faço esta refutação; é por amor à verdade e por amor apaixonado à Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, como para fortalecer a fé e o amor na alma dos católicos sinceros, desejosos de ver o triunfo da verdade e a ruína do erro.

O sr. Plínio julgava que nenhum sacerdote teria a coragem de refutar as suas tolices; de fato, muitos sacerdotes preferem desprezar este lodo fétido da impiedade; mas, como é um dos papeis especiais da imprensa católica o esmagar a cabeça da serpente, aqui vai, sr. Plínio, o golpe mortal às suas asserções pueris, mentirosas e infames.

Acima do acervo de tolices do sr. Plínio, eu quero que fique em pé, sublime e refulgente, o trono do santo ancião, sucessor de S. Pedro, - o Papa eterno de uma Igreja eterna - pois é este trono sobretudo que visou a calúnia e o ódio do Sr. Plínio Motta, amarrado hoje ao pelourinho da infâmia.

Desde S. Pedro até ao glorioso pontífice Pio XI houve na Igreja uma sucessão ininterrupta de 262 papas.

Entre estes 262 papas, há 86 santos; 166 têm sido homens de excepcional virtude, aos quais se pode aplicar o que Henrique IV disse de Carlos Magno: "Não tivesse eu outra razão de fazer-me católico, desejá-lo-ia fazer, para ser filho de um tal pai" Os 10 restantes têm sido incriminados - notem que são 1O sobre 262 - porém, uma critica judiciosa nos autoriza a justificar completamente 6 entre eles.

Dois não foram papas, mas antipapas; dois apenas são acusados com certa aparência, e ainda não com plenos fundamentos. Eis a verdade completa, a verdade gloriosa e honrosa, que demonstra a santidade dos papas, deixando, entretanto, ver que, apesar da sublimidade de que são revestidos, continuam a ser homens frágeis, mas sustentados por uma força divina para nunca traírem a verdade de que são os divinos depositários.

Eis o papado, eis os Papas, contra os quais a infâmia, personificada pelos inimigos de nossa santa religião, atiram as pedras do seu ódio.

De nada serve!

A Igreja Católica, Apostólica, Romana é, como sempre foi e sempre será, a Igreja divina, a coluna et firmamentum veritatis, como diz o apostolo (Tm3,15), o farol da fé, o rochedo eterno, contra o qual nada podem as portas do inferno (Mt16,18), nem as pedras de todos os caluniadores do mundo inteiro.

Honra, pois, à divina e única Igreja de Jesus Cristo, ao seu glorioso pontífice, aos seus incomparaveis bispos, e à legião heroica de seu mais de meio milhão de sacerdotes.

Continuai, ó sacerdotes , a vossa trajetória luminosa, desprezando a baba da impiedade, as pedras dos ateus, as calúnias dos miseráveis, o ódio dos viciados. Continuai, pois sois uma raça eleita, uma raça santa. - Et vos eritis milu in regnum sacerdotale, et gens sancta (Ex19,6).

Continuai a levar a verdade a todas as nações, a verdade da fé, da vida e do amor.

A verdade é eterna; a impiedade tem apenas uns dias de vida. Rezai pelos vossos caluniadores e perseguidores, mas conservai o tesouro que o mestre divino vos confiou, pela virtude e pelas respostas aos audaciosos fabricantes de calúnias e infâmias, que se intitulam "adjutores Dei", mas que não passam de imitadores de Satanás.

SEXTA POLÊMICA

O desenvolvimento dos dogmas

CATOLICISMO, ESPIRITISMO E PROTESTANTISMO

Recebi a seguinte consulta, breve em sua forma, mas extensa pelas questões que apresenta.

Dar-lhe uma resposta curta e clara, podia ser bastante para os estudiosos, familiarizados com as ciências metafísicas; contudo, tal resposta seria quase incompreensível para aqueles que, embora cultores de ciências sérias, conhecem pouco a historia da Igreja e o desenvolvimento de suas doutrinas.

Por isto, como de costume, tomo as dificuldades, de frente e pelo fundo, procurando iluminar as questões interessantes e pouco conhecidas da nossa santa religião.

 

I - A consulta

Revmo. padre Júlio Maria.

Sou um leitor assíduo de vossos incomparáveis escritos, porque sou apaixonado pelas ciências humanas ou divinas.

V. Revma. tem tratado aí questões, com mão de mestre, e com uma clareza admirável, que dissipa todos os erros e leva a luz da verdade às mais recônditas dobras do assunto.

A dificuldade que proponho a V. Revma. é a seguinte:

Em minhas leituras católicas tenho encontrado, muitas vezes, as duas seguintes teses, que julgo certas, mas que não sei bem combinar: 1 - A doutrina católica, sendo revelada por Deus, é imutável.

2 - Os dogmas vão se desenvolvendo, através dos séculos, até chegar à sua plena solidificação.

Como combinar esta imutabilidade fundamental, com a mutabilidade que todo desenvolvimento supõe?

O que cresce, aumenta.

O que aumenta, adquire novas proporções.

O que adquire novas proporções, muda.

O que muda, não é imutável.

E, entretanto, creio na imutabilidade dos dogmas católicos, como creio em seu crescimento.

Creio nestas duas teses católicas, mas desejo uma explicação para ver como é que elas se harmonizam. Estou certo de que uma de suas respostas irrefutáveis resolverá o caso, e dará luz e convicção a mim e aos outros.

Desde já vos agradeço a fineza.

Leitor e sincero admirador.

M. V.

II - Resposta e respostas

A dificuldade não é tão grande como a supõe o digno consulente. Duas teses católicas podem logo resolver o caso, fixando o sentido das palavras.

Para chegar a uma combinação, é absolutamente necessário que os contendores estejam de acordo sobre o sentido das expressões a empregar.

No caso que nos ocupa, os erros ensinados pelos protestantes, racionalistas, modernistas provêm, em grande parte, da não compreensão dos termos empregados.

Eis o que a teologia católica ensina a este respeito: A revelação divina dos dogmas é completa desde os tempos apostólicos, de modo que não pode haver mais novas revelações publicas.

A prova é a seguinte, indicada pelo apostolo: A mudança das coisas móveis está terminada para que permaneçam aquelas que são imóveis. Portanto, recebendo, nós, um reino imutável, temos a graça, pela qual, agradando a Deus, o sirvamos com temor e reverencia (Hb12,27,28).

Apesar desta imutabilidade, ha, entretanto um verdadeiro desenvolvimento nos dogmas, no sentido que a doutrina revelada é mais clara e completamente compreendida pelos homens.

O dogma, como verdade revelada, fica imutável; porém, pelo estudo e pela discussão, os homens vão penetrando nestes dogmas, e vão comprehendendo, aos poucos, certos aspectos destes dogmas, que lhes ficavam velados a principio.

Por exemplo: A astronomia não muda; pode-se dizer que é imutável, pois pertence à organização do mundo.

A ciência não muda, mas o conhecimento desta ciência muda continuadamente, pelos estudos dos astrônomos. Os antigos conheciam apenas o sol, a lua e uns grupos de astros, que se elevavam ao numero de 4.146. Inventaram o telescópio, e hoje, só num cantinho, na constelação dos Gêmeos, onde, a olho nu, se enxergam apenas seis estrelas, o telescópio descobre 3.000 ali acumuladas. Que será, pois, da imensidade do firmamento? Arago, Lalande e outros reconhecem um número total de perto de 75 milhões de estrelas visíveis na Via Lactea, que parece apenas um floco de algodão, na imensidade do céu.

Quer isso dizer que o firmamento tenha mudado nestes ultimas tempos? Não, absolutamente, não!

Nada ficou mudado da parte das estrelas; o que mudou, o que se desenvolveu foi a visão dos homens, por meio do telescópio.

As estrelas existiam, mas eram invisíveis ao olho nu. O estudo foi se desenvolvendo, e, pela invenção do telescópio, chegou a penetrar além do horizonte da visão habitual. Assim acontece com os dogmas católicos.

Tais dogmas são imutáveis; mas nós somos mutáveis. O que não entendiamos ontem, podemos entendê-lo hoje ou amanhã.

Os dogmas, como sendo divinos, são de uma altura e profundeza infinitas. O primeiro olhar enxerga apenas a superfície; um segundo penetra mais além e descobre novos tesouros; um terceiro, um quarto olhar penetrarão mais fundo ainda, revelando, cada vez, novos horizontes.

O dogma fica imutável objetivamente, mas muda subjetivamente, conforme o grau de inteligência e de penetração da pessoa que o estuda.

No principio, os grandes mistérios da Trindade, Encarnação e Redenção eram apenas parcialmente compreendidos; hoje, pelo estudo, penetramos mais avante, e podemos, não compreendê-los, mas fixar-lhes a possibilidade, a razão de ser, as analogias do mistério. Nada foi mudado no dogma, mas a nossa inteligência desenvolveu-se e, pelo seu desenvolvimento, trouxe em plena luz o que no começo era bruma e incerteza. Eis o que se entende por desenvolvimento dos dogmas.

Não é o dogma que se desenvolve, é o conhecimento deste dogma.

É um desenvolvimento subjetivo.

Tal desenvolvimento fazendo-se progressivamente, tem uma verdadeira história, como tudo o que se desenvolve. Esta história é o que se costuma chamar: História dos dogmas.

III - Os dogmas e os espíritas

O que devemos ver aqui é a refutação sistemática às asserções espíritas e protestantes, acusando a Igreja; os primeiros, acusam-na de não aceitar novos dogmas, os segundos de proclamar novos dogmas, e afastar-se, deste modo, do ensino de Jesus Cristo.

Tal acusação nasce da ignorância do que é um dogma, e do que é a história dos dogmas.

Procuremos elucidar este ponto.

O que precede mostra o que se chama incremento ou desenvolvimento dos dogmas. Como sempre, a verdade está no meio, entre dois extremos: uns pecam por excesso, outros pecam por defeito.

Pode-se dizer que, em geral, os espíritas pecam por excesso, e os protestantes por defeito.

Os primeiros admitem uma nova revelação, novos dogmas, nova moral, que chamam a terceira revelação. Para eles, a primeira revelação foi feita a Moisés; a segunda, por Jesus Cristo; a terceira é feita pelos médiuns (nevropatas, desequilibrados, senão doidos).

Para os espíritas, há revelação em todos os cantos e em todas as classes. Pouco importa quem fala, desde que faça tremeliques, caia em transe, faça caretas, e dê seus oráculos nas trevas noturnas: o falador ou (como é quase sempre), a faladora, é uma profeta, uma vidente, que serve de canal, ou melhor, de tubo transmissor aos espíritos do outro e deste mundo, para comunicar novidades à humanidade, velhas de 10 seculos, ou velhices, renovadas na hora presente.

Homem, mulher, criança, e até cabras servem de médiuns e de instrumentos para a nova revelação.

Compreende-se que isto não passa de pagodeira e que um homem sério só pode ter para tal revelação compaixão e desprezo.

Refutei tudo isso em meu livro "Os segredos do espiritismo"; não vale a pena atrasar-se sobre este excesso ridículo de revelações.

Do lado oposto aos espíritas estão os protestantes. Espíritas e protestantes querem-se como cão e gato, diante de um assado cheiroso.

Dente num, e dente no outro, é quem levar o pedaço.

IV - Os dogmas e os protestantes

O protestante é mais sensato - digamos melhor - menos insensato que o espírita.

Ele não aceita as revelações espíritas.

Faz muito bem; porém uma dificuldade: O protestantismo, sendo a negação da doutrina católica, desde que a Igreja Católica afirma uma coisa, o amigo protestante nega; e a Igreja negando, ele afirma.

No caso de dogma, a Igreja está firme: não aceita novas revelações nem dogmas; para ela, a ultima revelação ficou encerrada e completada pela morte do último apóstolo, que é São João Evangelista.

A Igreja tem a revelação por terminada e as provas que aduz são:

1) A declaração de Nosso Senhor: Tudo o que ouvi de meu Pai, eu vo-lo dei a conhecer (Jo15,15).

2 ) A promessa feita aos apóstolos: Depois de ter vindo o Espírito da verdade, ele vos ensinará toda a verdade (Jo16,13).

Pode e deve-se inferir que os apóstolos receberam o depósito completo da revelação. A Igreja não admite, pois, novos dogmas, novas revelações públicas, porém ela concede que os dogmas revelados estão sujeitos a ser melhor conhecidos, como o firmamento, sendo mais conhecido, embora não mude, deixa entrever melhor as suas imensas belezas.

Objetivamente, isto é, considerados em si mesmos, os dogmas são imutáveis; mas considerados nas pessoas que os estudam, são susceptíveis de incremento, no sentido que, sendo mais conhecidos, aparecem mais luminosos, mais claros e mais acessíveis.

Tal asserção é certa, é indiscutível. Que fará o protestante? Não quer ser espírita, mas, ainda menos quer ser católico; procura, então, uma terceira posição, e decreta que o dogma é não somente imutável, mas incapaz de incremento subjetivo; tal qual ele é, tal qual fica, porque, conclui o bom protestante: - "A Bíblia é a palavra de Deus. - A palavra de Deus é sempre clara. O que é claro é compreensível para todos. - O que é compreensível para todos, é compreendido por todos. Os dogmas, estando na Bíblia, são, pois, compreendidos por todos igualmente".

E pronto! Para o protestante tudo é luminoso. Até as trevas da noite; tudo é bíblico: até o ódio e a calúnia; tudo é santo: até Lutero e Catarina. As únicas coisas odiáveis, deste mundo, são a Igreja Católica e o Papa; e no outro: a Virgem Maria e os santos!

Isto, sim, é horrenda idolatria!

O espirita peca por excesso; o protestante peca por defeito.

Para o primeiro, tudo é revelação; para o segundo, não há mais nem revelação nova, nem conhecimento novo de dogmas revelados.

Os protestantes afirmam que tudo estâ na Bíblia clara e positivamente exposto, e negam à Igreja o direito de explicar autenticamente os dogmas, não passando todas as definições de corrupções, de falsidades, de novidades e de fraudes.

Conforme este principio, eles acusam a Igreja Católica de inventar novos dogmas, como por exemplo: os dogmas da lnfallibilidade e da Imaculada Conceição, não querendo compre­ender que tais dogmas sempre existiram, mas, tendo sido mais estudados, aparecem hoje em todo o seu brilho. Diante disso, diante da tradição positiva, a Igreja definiu e proclamou o dogma da Infalibilidade e o da Imaculada Conceição, como brevemente proclamará - é a esperança do mundo católico - o da Assunção de Maria SS. ao céu, em corpo e alma; e o da sua mediação universal na distribuição das graças divinas.

Tais dogmas não foram inventados ultimamente, mas estão contidos na Bíblia, não sendo, a principio, bastante bem compreendidos, mas deixando aparecer, pouco a pouco, as sublimes profundezas das palavras divinas.

V - Exemplo de infalibilidade

Para compreender bem o lado teológico da questão, convém fazer uma pequena exposição desta doutrina.

Deus pode revelar os dogmas de diversos modos, isto é, formalmente, quando ele manifesta o dogma, direta e imediatamente, no seu próprio conceito, ou virtualmente, quando Deus revela o dogma servindo-se de outros dogmas (imediatamente e indiretamente) de do que tal dogma deve ser deduzido de outra verdade formalmente revelada.

Tal verdade formalmente revelada, pó de sê-lo explicitamente ou implicitamente, conforme foi revelada por Deus com os próprios termos ou em termos equivalentes.

Um exemplo elucidará estas regras: O papa, ensinando como tal, no que diz respeito à fé e à moral, é infalível.

É um dogma de fé: Notem bem que não se diz que o papa é impecável, mas infalível.

O pecado é cometido pela pessoa; a doutrina é ensinada pela autoridade. É preciso distinguir a pessoa da autoridade de que tal pessoa é revestida.

Não é como homem que o papa é infalível; é como chefe supremo da Igreja.

e o papa é infalível, pela instituição divina.

O Cristo disse a Pedro, e só a Pedro: Eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela (Mt16,1).

E ainda disse, de novo, só a Pedro: Simão, Simão, eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça, e tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos (Lc22,32).

E ainda, sempre, só a Pedro: Simão, filho de João... apascenta os meus cordeiros, apascenta as minhas ovelhas (Jo21,17).

Três passagens que exprimem a plenitude do poder que Jesus entregou a Pedro: O poder de instruir, de governar e de santificar.

O primeiro passo faz de Pedro o fundamento da Igreja; o segundo dá-lhe a infalibilidade; o terceiro faz dele o chefe dos chefes subalternos e dos fiéis do rebanho de Cristo.

Tudo isto é simples, é claro, é positivo, é formal. Não falhar, não desfalecer, não faltar: a palavra exprime tudo isto: ut non deficiat fides tua (Lc22,32), é ser infalível.

Eis, pois, a infalibilidade de Pedro e de seus sucessores proclamada por Jesus Cristo formalmente, mas implicitamente.

Nosso Senhor não empregou a palavra infalibilidade, mas empregou a palavra indefectível: Non deficiat, o que é um termo equivalente.

Se ele tivesse dito infalibilis, tal dogma teria sido revelado formal e explicitamente; tendo empregado um termo equivalente; tal revelação é formal e implícita.

Ora, todas as verdades reveladas formalmente, sejam explicita ou implicitamente, são dogmas de fé divina, porque não pode haver dúvida que, por emprego de um termo equivalente, o Salvador tenha tido a intenção de exprimir a verdade de fé, ou dogma, significado pela expressão.

Quanto às verdades reveladas virtualmente, chamadas também conclusões teológicas, a escola tomista não as admite como objeto de fé, ou dogma de fé divina, mas sim de fé eclesiástica.

Para que uma verdade seja conclusão teológica, ou verdade virtualmente revelada, é preciso que a tal conclusão seja logicamente tirada de duas premissas, das quais a primeira deve ser formalmente revelada, e a segunda naturalmente conhecida.

Assim é o dogma da infalibilidade, que pode servir-nos de exemplo, para mostrar como crescem e se desenvolvem os dogmas, embora fiquem imutáveis; o crescimento ou desenvolvimento é puramente subjetivo, isto é, no conhecimento que nós vamos adquirindo da verdade revelada.

VI - Bíblia e Igreja

Tal é, aliás, a expressão clara da Sagrada Escritura. Estas duas verdades aqui expostas, a saber: a imutabilidade das verdades e o seu incremento estão formalmente indicadas na Bíblia.

São Paulo, comparando o novo Testamento com o antigo, escreve: Se a primeira aliança tivesse sido imutável, não se buscaria togar para uma segunda... Chamando-a nova, deu por antiquada a primeira (Hb8,7,13).

O primeiro era figurativo e moral, o segundo é imóvel. Mudam-se as coisas moveis, para estabelecer as imóveis... recebemos a graça divina, continua o apóstolo (Hb12,27,28).

O depósito da fé, sendo imutável, não pode, pois, ser aumentado; está completo. É por isso que o Salvador mandou a seus apóstolos que ensinassem a guardar todas as coisas mandadas por ele (Mt28,20).

É por isso ainda que São Paulo recomenda a Timóteo que guarde o depósito (da fé) evitando as novidades profanas, de palavras, e as contradições de uma ciência de falso nome (1Tm 6,20).

Podemos deduzir destas palavras que os chefes da Igreja, sucessores dos apóstolos, devem ensinar as coisas que aprenderam de Jesus Cristo, que devem guardá-las como um deposito sagrado, ao qual não é permitido nada acrescentar e nada tirar.

A ordem de nada ajuntar, nem retirar do depósito sagrado é tão rigorosa, que São Paulo não hesita em lançar a maldição sobre aquele que teria a ousadia de fazê-lo, fosse ele até um anjo.

Ainda que nós mesmos, diz ele, ou um anjo do céu, vos anuncie um Evangelho diferente daquele que vos temos anunciado, seja anátema (GI1,8).

Outra prova de que nada de novo pode ser introduzido no ensino da fé.

Tal foi sempre a pratica que vigorou na Igreja - embora os protestantes, por ignorância, ensinem o contrário.

Desde que se trata de definir um dogma, (não criá-lo) a Igreja procura na Bíblia ou na Tradição apostólica se tal dogma está ali formalmente incluído, como se pode ver nos atos dos concílios.

O concilio do Vaticano dá esta regra fundamental: "Nem aos sucessores de Pedro foi prometido o Espirito Santo, para que, sob sua revelação, patenteassem nova doutrina, mas para que com a sua assistência guardassem santamente e expusessem fielmente a revelação anunciada pelos apóstolos, ou o deposito da fé.

VII - Como crescem os dogmas

Apesar desta imutabilidade, os dogmas desenvolvem-se, crescem, e têm uma verdadeira história de crescimento.

Já expliquei em que sentido se toma este crescimento; falta apenas indicar a base bíblica deste crescimento. Secundum quid, como dizem os teólogos, e não simpliciter.

Os dogmas podem desenvolver-se de três modos:

a) Por proposição explicita das verdades que antes eram implicitamente ensinadas.

b) Pela explicação clara de verdades obscuramente contidas no depósito da fé.

c) Pela pregação continua de verdades que só tinham sido notadas de passagem.

Convém notar, de fato, que todas as verdades divinas, por uma permissão de Deus, passam como que por três estados:

1o. - A verdade simples, contida muitas vezes implicitamente em qualquer princípio mais universal.

2°. - A impugnação, objeções e ataques dos inimigos da religião.

3°. - O estudo apurado ou a polêmica na refutação dos ataques, que põem em relevo todas as faces das verdades impugnadas.

Os dogmas da fé, embora revelados por Deus, são apresentados ao nosso espirito gradualmente, como nos são apresentadas as ciências humanas.

O nosso espírito não pode abraçar, nem compreender num só relance verdades e ciências profundas. Só os anjos conhecem intuitivamente, enquanto os homens procedem por análises, comparações, analogias e sínteses.

Ora, tais operações são progressivas, indo do conhecido ao desconhecido, do claro ao escuro, do explicito ao implícito, para, por meio de princípios já conhecidos, descobrir outros ainda desconhecidos.

Tudo isso é um desenvolvimento, um crescimento, um progresso "secundum quid" subjectivo, na pessoa que se entrega a este estudo.

É deste modo que procedia o Cristo ensinando aos seus apóstolos: "Tenho muitas coisas a dizer-vos, diz Ele, mas vós não as podeis compreender agora; quando vier, porém, aquele Espírito de verdade, Ele vos ensinará toda a verdade" (Jo16,13).

Os apóstolos receberam toda a verdade, mas progressivamente e à medida que eram capazes de compreendê-la.

A verdade existia inteira, objetivamente, mas foi crescendo, subjetivamente, no espírito dos apóstolos. Isso é tão claro e logico, que os próprios protestantes atribuem a si mesmos o que eles negam aos católicos.

Por que se aplicam eles ao estudo da Bíblia?

Não é com o fim de conhecerem explicitamente as coisas que só obscuramente nela estão contidas?

E por que negam eles este direito aos católicos?

Terão eles o privilégio exclusivo da inteligência e da assistência do Espírito Santo?

Eles gloriam-se da doutrina sobre a justificação, dizendo ter ela sido ignorada pelos católicos durante muitos séculos, e por ter sido, finalmente, encontrada por Lutero na Bíblia!

Mas, se eles descobrem um segredo na Bíblia, ignorado durante tantos anos, como é que dizem que a Bíblia é tão clara que cada um pode compreendê-la e interpretá-la?

Por que negam eles aos católicos o direito e a sagacidade de descobrir na Bíblia a infalibilidade do Papa, a Imaculada Conceição, os sete sacramentos, o culto dos santos, a grandeza e o poder de Maria Santíssima?.

Por que isso? Não temos nós o mesmo direito que eles? Não temos a mesma inteligência?

Tudo isso é contraditório... é ilógico… é absurdo.

Os protestantes admitem para eles o desenvolvimento dos dogmas, e negam-no para os católicos!

Não pode ser. Não há duas regras nem duas medidas; ou aceitar tal crescimento para todos, ou o negar para todos, isto é, protestantes e católicos.

VIII - Conclusão

É tempo de tirar a conclusão. Já foi tirada diversas vezes.

Os dogmas católicos são imutáveis porque são verdades reveladas por Deus, contidas quer na Tradição, quer na Bíblia. E a palavra de Deus não muda: Verba autem mea non transibunt (Mc13,31).

A inteligência humana, sendo criada, limitada, não pode penetrar completamente as verdades divinas, de relance: A intuição é um privilégio dos anjos; os homens devem raciocinar, comparar e analisar, para chegar à completa compreensão de uma verdade, de modo que a primeira compreensão é incompleta, parcial; a repetição faz crescer, não a verdade, mas a compreensão desta verdade.

É o que se chama desenvolvimento dos dogmas.

A Igreja recebeu de jesus Cristo a missão de ensinar aos fiéis de todos os tempos as verdades reveladas, e de defendê-las contra os ataques dos adversários.

Ora, esta missão inclui forçosamente certos desenvolvimentos na exposição da doutrina revelada.

Dogmas novos não são, portanto, verdades recentemente reveladas, mas simplesmente recentemente propostas à nossa crença pela Igreja.

Entre outros, a Imaculada Conceição e a infalibilidade pontifical, que foram proclamados um em 1854, o outro em 1870, como artigos de fé, já estavam contidos, latentes, na Escritura Sagrada e na Tradição.

A Igreja, ao definir estes dois dogmas, limitou-se a tirá-los do seio da Revelação.

Em resumo: quando, no decorrer dos séculos, vierem novos dogmas inscrever-se nos símbolos da fé, a Igreja sempre os tirará de uma dupla fonte: da Bíblia e da Tradição, onde já se encontram, quer explicita, quer implicitamente.

Os dogmas ficam, pois, imutáveis, simpliciter, como dizem os teólogos, e crescem secundum quid. Em outros termos, permanecem, tais quais são, objetivamente e crescem subjetivamente, pelo conhecimento ampliado que se adquire deles.

Esta exposição serve de refutação aos dois erros extremos que cercam o ensino católico: os espíritas que admitem novos dogmas, e os protestantes que não admitem nem novas proclamações de dogmas existentes.

Ambos estão errados; enquanto a verdade católica permanece clara, positiva, certa e eterna, como é eterno e indestrutível o rochedo sobre o qual está fundada a Igreja: o rochedo de S. Pedro.

Eis o que queria saber o meu consulente.

Tenho procurado satisfazer-lhe o melhor possível.

SÉTIMA POLEMICA

A presciência divina

CONTRA O DETERMINISMO E O FATALISMO

Recebi de um ilustre advogado católico a seguinte cartinha, que respondo com satisfação.

Tal consulta levanta questões doutrinais e filosóficas de primeira ordem, as quais interessarão aos estudiosos de qualquer credo, e cuja solução será um faixo de luz para os próprios católicos.

Ilmo. e Revmo. Padre Júlio Maria

Conheço-o, de há muito, como polemista fervoroso e incansável, sempre manejando habilmente a pena e destilando sobre o papel seu espírito brilhante e seus belos ensinamentos.

Por isso, recorro a ti neste momento, oferecendo-lhe uma ótima oportunidade para esclarecer o crescido número de seus leitores, explicando-lhes, à luz do catolicismo, a delicada questão do "determinismo", encarando-a sob todos os pontos de vista e respondendo aos ataques que um "fatalista" lhe dirigiria, se, porventura, consigo porfiasse.

Como concordar o "livre arbítrio" com a "presciência divina" ?

Esteja certo de que vai beneficiar grandemente os seus leitores, com a resposta satisfatória que irá dar.

Sou sincero amigo e admirador.

1 – Resposta.

A resposta é praticamente simples; porém, entrando nas minucias e nas explicações teóricas, ela apresenta grandes dificuldades.

A inteligência humana pode perscrutar, compreender e expor ciências humanas, porque o que um homem compreende, outro pode igualmente compreendê-lo.

Quando se trata de ciências divinas, o espírito humano pode compreender a sua razão de ser, a sua necessidade e sua prática; porém escapa-lhe o fundo, o cimo, porque as verdades divinas ultrapassam a capacidade intelectual do homem.

No mistério a tratar aqui, um dos mais difíceis e impenetráveis da nossa santa religião, porque diz respeito ao modo de agir do próprio Deus, encontramos dificuldades a cada passo; e no momento que julgamos ter resolvido o problema, ele escapa-nos para mergulhar-se no infinito.

Mas, assim mesmo, procuremos lançar um raio de luz sobre o mistério da presciência divina, e se o mistério for impenetrável, em si, ele nos revelará, entretanto, o sublime objeto que revela, que é a providência paternal de Deus.

Tomo, pois, a questão bem de frente e pelo fundo, para não deixar subsistir nenhum recanto obscuro na parte que pode ser compreendida.

Cinco grandes questões vêm grupar-se em redor do tema central - a presciência divina, as quais podemos ordenar como se segue:

1a - a presciência divina é um atributo necessário, logico, indispensável;

2a - em que consiste;

3a - o homem é inteiramente livre;

4a - não ha nenhuma discordância entre a previsão de Deus e a liberdade do homem;

5a - o determinismo e o fatalismo são erros, indignos de Deus e do homem.

A doutrina católica é clara e positiva sobre os diversos pontos a discutir. Ela ensina que Deus conhece todas as coisas, presentes, passadas e futuras, de modo infalível, sejam as coisas futuras coisas necessárias, livres, ou condicionais, ou possíveis.

De outro lado, a Igreja ensina que o homem é um ser racional, isto é, um ser que se governa e se dirige pela razão e não pelo instinto.

Dirigindo a si mesmo, o homem é, pois, livre.

O determinismo e o fatalismo, que muitas pessoas confundem, negam ambos a liberdade do homem; mas para essa negação apoiam-se sobre coisas diferentes.

O determinismo apoia-se sobre necessidades interiores, e o fatalismo, sobre necessidades exteriores.

Os primeiros ensinam que Deus marca de antemão o destino necessário de cada homem, sem que possa haver mudança.

Os segundos atribuem tudo ao destino da natureza, que se manifesta necessariamente, por meio das causas segundas de que o homem não pode libertar-se. É o axioma dos muçulmanos: Estava escrito.

Os deterministas não entendem a presciência divina, e fazem dela uma lei antecipada. Os segundos nem admitem a presciência divina, mas veem em tudo a sorte da natureza.

A verdade católica eleva-se contra ambos, mostrando a presciência divina e a liberdade do homem, mostrando, deste modo, a bondade de Deus e a grandeza do homem.

Antes de expôr doutrinalmente estas verdades, vejamos um instante a possibilidade e a necessidade desta presciência em Deus, isto é, o atributo de abranger, num mesmo lance de olhar, o presente, o passado e o futuro.

II - Necessidade da presciência

A visão de Deus deve ser uma visão perfeita, porque tudo o que é de Deus é perfeito.

Ora, uma visão que se limita apenas ao presente e ao passado sem o futuro, é incompleta, falta-lhe uma das partes constitutivas do tempo.

O homem é um ser incompleto, imperfeito; por isso a sua visão limita-se ao presente e ao passado.

Há uma lei na própria natureza que nos mostra a necessidade da presciência em Deus.

Seguindo a escala dos seres vivos, descobre-se a seguinte lei: À medida que o ser vivo vai subindo na escala orgânica dos seres, a sua visão se vai dilatando.

É um fato fisiológico, que nenhum livro menciona ainda, mas que há de entrar um dia nas leis do desenvolvimento dos vivos.

Dos mais ínfimos vamos subindo até aos mais perfeitos; e depois, passando pelo homem, pelo anjo, chegamos até ao próprio Deus, que é o protótipo perfeito da criação.

Os animais inferiores, - zoófitos, moluscos, vermes, articulados, anelados, peixes e répteis, possuem apenas a percepção do presente.

Animais mais desenvolvidos, como os vertebrados, aves e mamíferos têm, além da percepção presente, uma certa lembrança, pela memória sensitiva, do passado. Entre eles há certas categorias, como o cão, o cavalo, o jumento, etc., que conservam quase a vida inteira uma lembrança nítida do passado.

Chegando ao homem, o ser racional, vemos que, além do presente e do passado, ele começa, pelo raciocínio, a penetrar parcial e condicionalmente o futuro.

O horizonte conserva os seus segredos, mas certos homens sabem já desvendar uma parte desses segredos, pela perspicácia no raciocínio.

Os anjos, puros espíritos, além do passado e do presente, percebem intuitivamente os futuros necessários, escapando-lhes, entretanto, o futuro livre.

Acima de todas as criaturas está o criador, o protótipo de toda a criação, o Ser perfeito, integral, infinito, que possui na plenitude e em grau infinito tudo o que ele repartiu com suas criaturas.

É, pois, lógico, que ele possua a plenitude da visão, tanto do passado e do presente, como do futuro, não simplesmente por intuição, mas por essência. ele conhece o futuro, mais do que o homem pelo raciocínio; mais do que o anjo pela intuição; mas, como Deus, conhece o futuro livre e necessário, condicional e possível; e tudo isso de modo infinito, isto é, sem limites.

Para Deus, é preciso que o passado, o presente e o futuro se confundam num único ponto, porque Deus é simples, é um ato puro, isto é, sem composição e sempre em ação.

A simplicidade exige a presciência; o ato puro exige que seja tudo num mesmo momento.

Eis como chegamos pelas criaturas a conhecer o criador, e pelo conhecimento destas criaturas, chegamos a conhecer a presciência divina, que é como o resumo de todos os seus conhecimentos divinos.

Os animais superiores unem, pelo instinto, o passado ao presente.

O homem, pela razão, não só une o passado ao presente, mas prevê um certo futuro condicional.

O anjo, pela intuição, junta o passado, o presente e o futuro necessário.

Deus, pela presciência, reúne num único ponto simples o passado, o presente e o futuro.

Em Deus, a presciência é um atributo essencial, pelo qual ele se conhece e conhece toda a sua obra.

Sem este atributo, Deus deixaria de ser Deus, pois seria limitado pelo tempo e pelo espaço.

Ora, o tempo e o espaço são obras de suas mãos. Deus não pode ser limitado, nem dominado pelas obras de suas mãos.

Nós dizemos que Deus prevê tudo: é um termo de analogia: Deus não prevê. Ele vê.

III - Extensão da presciência divina

Tendo bem compreendido a necessidade de tal presciência divina, podemos agora examiná-la de perto em Deus, para depois ver como ela se combina e completa admiravelmente pela liberdade do homem. A presciência divina consiste no fato de Deus conhecer o futuro, de prever o futuro, como nós dizemos.

Deus conhece tudo, porque tudo é obra de suas mãos; um operário não pode executar uma obra sem conhecê-la; é impossível.

Para fazer uma casa, o pedreiro deve conhecer a planta da casa; para fazer uma mesa, o marceneiro deve conhecer a mesa; toda obra, antes de ser realizada na matéria, deve ser calculada no espírito: Nihil volitum, nisi praecognitum, dizem os filósofos: Não se pode querer, sem conhecer.

Deus conhece tudo sem exceção: a sua ciência é universal. A sagrada Escritura diz: O Senhor conhece toda a ciência... Não há criatura alguma invisível à sua vista, porém, todas as coisas estão nuas e patentes aos seus olhos (Hb4,13).

E não somente conhece o presente, mas conhece o que nós chamamos o futuro.

Eis que tu, Senhor, conheceste todas as coisas, as novíssimas e as antigas... conheceste as passadas e julgaste das futuras. De longe entendeste todas as minhas cogitações... e previste todos os meus caminhos. (Ps138,3-5).

O futuro abrange necessariamente quatro pontos: as coisas necessárias, livres, possíveis e condicionalmente livres. Todas estas coisas são conhecidas por Deus, de modo infalível.

São Paulo diz, de fato, que ele chama as coisas que não são, como as que são (Rm4,17).

Eis o que é certo; mas de que modo, ou como Deus conhece todas as coisas?

Este como é, propriamente dito, o mistério, porque a existência, o objeto, a possibilidade, etc., são apenas dificuldades para quem não penetra no fundo da doutrina católica, de modo que a dificuldade é mais aparente que real.

IV - Como Deus conhece o futuro

Um ser é perfeito quando se conhece a si mesmo, e conhece todas as coisas em que se estende a sua ação.

O homem é um ser imperfeito porque é limitado, tanto pelo conhecimento interior de si mesmo, como pelo conhecimento exterior de sua ação.

Deus, sendo o ser perfeito e infinito, abrange tudo de modo infinito, isto é, até ao fim das coisas.

Notem agora que para Deus só existe uma coisa - é o infinito; o resto é tudo obra de suas mãos. O tempo e o espaço, que nós computamos e calculamos, são obras de Deus e só existem neste mundo criado; porém, o tempo e o espaço só existem para os homens; não existem para Deus, ou melhor, existem fora de Deus, como sendo obra de suas mãos.

Deus não é, pois, limitado, nem pelo tempo, nem pelo espaço: ele é a eternidade, sem tempo e sem espaço.

Ora, Deus sendo a eternidade, tudo que é ou há de ser está presente para Deus desde a eternidade, pois a eternidade é um ponto único e imóvel que se chama: o presente.

Deus, criando o tempo para o uso dos homens, dividiu-o em presente, passado e futuro, enquanto Ele, eterno, ficou acima e fora desta sucessão do tempo, em sua imóvel eternidade.

Para Deus não há, pois, futuro; tudo lhe é presente.

Quando nós dizemos: Deus conhece o futuro, prevê, etc., usamos de uma figura tropológica, adaptando ao nosso modo de ver o que não podemos exprimir em termos próprios.

Deus não prevê: ele vê como presentes todas as coisas, que foram ou que serão.

A eternidade existindo toda inteira, simultaneamente, circunda e reúne todo o tempo num único momento presente.

Os homens preveem (prever é: ver antes) e prever supõe necessariamente um futuro que não existe ainda. Prever para o homem é uma imperfeição da natureza limitada.

Deus, o ser perfeito, não prevê, mas vê; Deus não penetra o futuro: ele vê o futuro criado, presente em sua eternidade.

É o nó da questão.

São Tomás, no comentário sobre Aristoteles, exprime excelentemente esta verdade (lib. arb.1,14) embora de modo um tanto abstrato.

"Deus, diz ele, está inteiramente fora da ordem do tempo, como que constituído na fortaleza da eternidade, que é tota simul, à qual está sujeito todo o decurso do tempo, segundo um e simples intuito. E por isso dum só lance de vista, vê todas as coisas que se fazem seguindo o decurso do tempo, e cada uma segundo o que é em si mesma, e não como se tivesse de acontecer, mas vê assim omnino aeternaliter cada uma das coisas que são.

Deus conhece certíssima e infalivelmente todas as coisas que se fazem no tempo, e todavia as que se sucedem no tempo não são nem se fazem por necessidade, contingentemente".

V - O livre arbítrio

O homem é livre porque é racional. - Totius libertatis radix est in ratione constituta, diz São Tomás (De voluntate).

Um ser sem liberdade, dominado pela necessidade, não é um ser racional: é um animal.

O animal não raciocina: segue o seu instinto; o homem raciocina e julga o que deve fazer, e esta escolha provém da liberdade.

Sem liberdade, não haveria mais vontade, e sem vontade não haveria mais sinão um animal.

Há duas espécies de liberdade: a liberdade psicológica e a liberdade moral.

A primeira dirige os atos das faculdades da alma.

A segunda é uma libertação de toda necessidade, o que dá ao ato um valor moral.

A alma humana possui três grandes faculdades: ela conhece, ela quer, ela ama.

A inteligência procura a verdade; A vontade procura o bem; O coração procura o amor.

Verdade, bem e amor, é todo o homem: seu fim, caminho e meios.

A alma sendo livre, de uma liberdade moral, cada uma de suas faculdades é livre.

A inteligência e o coração não possuem senão uma liberdade relativa, enquanto dependem da vontade; a vontade, porém, tem urna liberdade absoluta, inviolável, espontânea, independente.

A inteligência não é sempre livre de pensar em uma coisa antes que em outra, de lembrar-se ou de esquecer; como o coração não é livre de amar ou de desprezar o que é amável; porém não pode forçar a vontade, impondo-lhe um consentimento que ela desaprova.

Em outros termos, pensamentos, lembranças, imaginações, paixões, inclinações, desejos, movimentos dos membros podem ser involuntários, mas o consentimento não o pode ser.

Todos os atos do homem podem ser coagidos (de fora), afora a vontade. - É a liberdade psicológica.

A liberdade moral distingue-se da liberdade psicológica.

Como faculdade moral, esta liberdade é uma libertação, é uma indiferença.

É a libertação de toda necessidade.

Um ato necessário, embora espontâneo, não é um ato moral. Se a espontaneidade fosse bastante para constituir a liberdade, precisaríamos considerar como livres os animais e até as plantas.· A liberdade moral é contingente: é uma possibilidade de consentir ou não consentir, de querer uma coisa ou de querer outra; daí três espécies de liberdades que os teólogos chamam liberdade de contradição, de oposição e de especificação.

A vontade deve tender sempre ao bem, é sua essência. Afastando-se do bem, ela cai no mal… e o mal, não sendo o objeto da vontade, não pertence mais à sua essência, é a queda, é um defeito da liberdade, é a sua ruína: - é a escravidão, a escravidão de pecado, como diz S. Paulo (Rm7,23).

O homem não é livre de escolher entre o bem e o mal; o bem é o objeto próprio da vontade; o pecado é o objeto do desvio da vontade; não é o uso, mas, sim, o abuso da vontade.

É claro que, embora a vontade seja livre, cada ato da vontade não é igualmente livre, pois há coisas que influem no ato, diminuindo ou aumentando a liberdade, como são a ignorância, a concupiscência, o medo e a força.

VI - Presciência e liberdade

Eis, pois, duas verdades provadas, e - espero - claramente compreendidas: Deus vê tudo no momento presente, conhece atualmente o futuro do homem, sabe tudo que lhe ha de acontecer no futuro, e, entretanto, o homem conserva toda a sua liberdade de ação.

É o nó da dificuldade; procuremos desfazê-lo e lançar um raio de luz sobre este mistério, senão para compreendê-lo, pelo menos para ver claramente o objeto que o mistério nos revela, e que tem a sua importância, tanto na procura da verdade, como na do bem.

Este bem, sobretudo, como sendo o objeto próprio de nossa vontade, deve aparecer-nos luminoso, amável e atraente.

Este bem, objeto do mistério da presciência divina, é a Providência de um pai amoroso, que dirige, sustenta e consola o filho em caminho da salvação.

Como combinar estas duas verdades certas e aparentemente contraditórias?

Devem combinar-se, e combinam-se de fato, admiravelmente, embora não nos seja dado penetrar o modo desta combinação.

A presciência divina não prejudica a liberdade do homem; e a liberdade do homem não depende da presciência divina, como o efeito depende da causa.

A base do raciocínio é a seguinte: As coisas não acontecem de tal ou tal modo, porque Deus as previu, mas ele as previu porque sabia que haviam de acontecer livremente.

O homem age livremente... Deus está vendo esta ação livre, quanto ao presente, não há dificuldade... mas, para o futuro, encontramos a barreira de nossa ignorância. Deus sabe o que há de acontecer daqui a cem anos. Nós dizemos que é previsão; e para nós o é, deveras, mas para ele é visão atual: o futuro confundindo-se para ele no presente.

Ele vê o que acontece, de modo que a liberdade do homem é completa, como é completa a visão de Deus, sem que um perturbe ou destrua o outro.

Santo Agostinho esclarece este dogma pela seguinte comparação: A memória infalível que nós temos do passado não prejudica em nada a liberdade dos atos passados; assim a presciência divina não prejudica em nada a liberdade dos atos futuros Delib. arb. II lib.,3,c.4,n.11).

Para bem compreender esta comparação, é preciso lembrar-se que a eternidade abrange todos os tempos; Deus vê o futuro diante de si, como nós vemos o passado e o presente.

Outra comparação elucidativa: Representemo-nos um circulo. O ponto central é Deus. A humanidade é a circunferência que vai de baixo para cima sobre a circunferência em plano vertical. Do centro Deus vê tudo, os de baixo e os de cima, os que descem e os que sobem; enquanto os de baixo veem com os olhos apenas a parte que percorrem, e pela memória veem a parte percorrida.

Para eles, há um desconhecido, um futuro; enquanto para Deus, que forma o centro, tudo é visível, tudo é presente.

A comparação é material e incompleta, é certo, mas permite formar uma ideia da simultaneidade das três partes do tempo: o presente, o passado e o futuro.

VII - Conciliação entre as duas verdades

Já compreendemos que a simultaneidade da presciência divina e da liberdade humana é possível. Vamos adiante, e digamos que ela é necessária; de modo que uma é a prova da outra, isto é: Deus prevê o ato do homem, e por isto este ato é livre, porque Deus o previu.

Cada termo é uma verdadeira tese de filosofia. É como se disséssemos: da existência do homem, concluo a existência de Deus. Seria certo, pois não há efeito sem causa; o homem é um efeito: deve haver uma causa que é Deus.

Do lado oposto pode-se raciocinar também e dizer: Da existência de Deus conclui-se a existência do homem, pois não há causa eficiente sem efeito.

Deus é um ato puro e causa eficiente de tudo o que existe; ele é, pois, o criador dos homens, e o homem existe porque Deus existe, e sem Deus ele não poderia existir.

O mesmo acontece com a presciência divina e a liberdade humana.

Deus prevê (sempre no sentido trópico) os acontecimentos tais quais hão de ser, e por esta razão serão livres, porque Deus previu e quis que fossem livres.

Os atos livres do homem, que Deus conhece de antemão, realizam-se infalivelmente, mas não necessariamente; pois Deus previu, não somente o ato, mas ainda a liberdade do ato, de modo que a sua presciência, em vez de destruir a liberdade do homem, é a causa desta liberdade.

Por exemplo, vejo alguém caído no chão: a minha vista não o obriga a estar caído, mas antes o que está caído me obriga a vê-lo.

Este homem não caiu porque eu o vejo; mas eu o vejo porque caiu; assim o homem não age porque Deus o vê ou prevê, mas Deus o vê porque o homem age.

E como o que Deus prevê deve acontecer infalivelmente, segue-se que esta previdência é a causa da liberdade do homem.

Em resumo: Deus prevê os acontecimentos porque sabe que hão de realizar-se livremente, e os acontecimentos devem realizar-se livremente, porque Deus previu que assim seria.

Santo Agostinho ilustra esta doutrina com outro exemplo: Assim como tu com a tua memória não obrigas a fazerem-se as coisas passadas; assim Deus, com a sua presciência, não obriga que se façam as coisas que hão de acontecer.

VIII - Objeções e respostas

Após estas considerações doutrinais chegamos à objeção proposta pelo digno consulente: o determinismo e o fatalismo.

Estes erros podem resumir-se na seguinte objeção: Deus previu desde toda a eternidade se devo ser salvo ou condenado. Posso fazer o que quiser, não poderei mudar o meu destino.

Tal objecção não passa de sofisma.

A primeira parte é certa; a segunda é completamente errada.

Não, não, Deus não previu as coisas deste modo!

Ele previu e decretou que sereis reprovados se viverdes e morrerdes em pecado; ou que sereis salvo, se viverdes e morrerdes em sua graça.

A reprovação ou a salvação é a consequência da boa ou má vida e não a consequência da presciência divina; de modo que será réprobo quem quiser; e será salvo quem quiser; depende da vontade de cada um. Somos nós a causa de nosso eterno destino; o que não impede que, sendo este destino futuro conhecido por Deus no presente, ele conheça de antemão como havemos de empregar a nossa liberdade, se para o bem, ou se para o mal.

Somos livres e Deus respeita esta liberdade, ao ponto de ele não permitir seja ela violada.

Com esta liberdade, nós pomos a causa de nossa salvação, que é o bem; ou a causa de nossa perdição, que é o pecado.

Um outro sofisma consiste em confundir a infalibilidade com a necessidade e a fatalidade.

Se Deus prevê que eu serei salvo, a salvação será realizada infalivelmente: tal consequência é necessária, porque a presciência divina não pode estar sujeita ao erro; entretanto a minha salvação não é uma coisa necessária ou fatal, pois não se realizará sinão por meio de minha própria cooperação.

Por exemplo: vendo eu um menino correr, é manifesto que ele não pode ficar sentado neste momento; a consequência é necessária e entretanto a corrida fica sendo um ato inteiramente voluntario e livre da parte dele.

Assim acontece com Deus: ele está vendo o homem correndo para a perdição: é manifesto que não pode estar sentado na salvação.

Deus vê isso, ou prevê, como nós dizemos; entretanto a tal corrida para a perdição é um ato inteiramente voluntário daquele que corre: ele corre porque. quer e Deus vê que ele corre porque corre; mas como é no futuro, nós dizemos alegoricamente que Deus prevê.

IX - Conclusão

Terminemos estas considerações, um tanto abstratas, à primeira vista, mas que se iluminam de uma luz divina, quando bem compreendidas, deixando aparecer através do véu do mistério o objeto que ele oculta: a doce, a vigilante, a paternal providência de Deus, que nos segue com o olhar e o coração, como uma mãe segue o filho no meio da multidão.

A negação destas verdades constitui o determinismo e o fatalismo, que são erros simplesmente ridículos, deprimentes e contrários ao bom senso.

Deus previu se devo ser salvo ou condemnado. Faça eu o que quiser, assim há de ser, diz o ímpio.

Se a esposa dissesse ao marido: Meu amigo, Deus previu desde toda a eternidade se hoje tu devias jantar ou não. Faça eu o que quiser, há de suceder o que Deus previu. Eu vou passear, e o teu jantar que se arranje como puder.

Se o filho dissesse ao pai: Papai, Deus previu desde toda a eternidade se eu devia hoje faltar ou não à escola. Faça eu o que fizer, não poderei mudar o meu destino. Então vou brincar em vez de ler ou escrever.

Se assim dissesse, eu penso que o interpelado não teria grande dificuldade em responder, e mesmo chamá-lo à razão.

Pois bem; é esta mesma resposta que se deve dar a quem faz tal objeção.

A presciência de Deus não tira a nossa liberdade e, embora a nossa fraca razão não possa sondar o fundo deste mistério, podemos entretanto compreendê-lo bastante, para ficarmos certos de sua existência e de seu exercício.

Acima de todas as sutilezas, nós sentimos perfeitamente que somos livres em nossas determinações - a inteligência tende à verdade, a vontade quer o bem, o coração quer o amor - a vontade é a faculdade dominadora, inviolável.

O homem não é livre de escolher entre o bem e o mal, porque o bem é o objeto próprio da vontade, enquanto o mal, o pecado, é um desvio da vontade, mas no bem a vontade pode escolher, seja por contradição, como amar ou não amar e odiar; seja por especificação, como passear ou ler.

Neste momento, eu sinto que depende de mim escrever este estudo ou não escrever, prolongá-lo ou encurtá-lo; como depois, ao ler este trabalho, o leitor sentir-se-á livre em ler ou em parar a leitura. Ambos somos livres.

Terminemos, procurando reter o grande princípio já enunciado, que resolve todas as dificuldades: Deus conhece o futuro, como nos conhecemos o presente e o passado.

Nossa visão do presente, a nossa lembrança do passado, nada modificam a natureza das coisas. Assim a ciência do futuro, em Deus, não destrói, nem altera em nada a contingência dos fatos.

Por conseguinte, usemos bem da nossa liberdade, ante a vista daquele Deus, que dará a cada qual segundo as suas obras.

OITAVA POLÊMICA

A providência divina

EM RELAÇÃO COM O BEM E OS MALES NESTE MUNDO

Na segunda elucidação, tratei da presciência divina, refutando os erros: determinismo e fatalismo, a pedido de diversas pessoas estudiosas e desejosas de conhecer estes grandes e sublimes mistérios da nossa santa religião.

Tenho recebido diversas cartas de felicitações sobre a exposição, dizendo que é a mais luminosa que já encontraram.

Outras pessoas me escrevem, pedindo que entre em mais minúcias sobre as consequências da presciência divina.

Tais consequências podem reduzir-se aos dois grandes problemas, que são: A Providência divina e a predestinação dos homens.

1 - A consulta

Recebi diversas consultas que se referem a cada um destes respectivos pontos.

Um funcionário do Banco do Rio de Janeiro escreveu a um amigo, que me transmitiu a carta, da qual extraí esta parte: "Li o artigo do padre Júlio Maria sobre o determinismo e me convenci completamente das verdades por ele ditas. Na verdade, o padre Júlio revelou, por esse artigo, uma grande cultura, inteligência rara e um modo de expressar-se que convence a qualquer pessoa. Fiquei satisfeito com o que li. Uma coisa, entretanto, ficou sem resposta. Eu não devia ficar duvidando das verdades da Igreja, e sim aceitá-las incontinenti, mas, já que tenho alguma dúvida em certos pontos e encontro quem ma esclareça, não devo deixar de exteriorizá-la. "Como é que Deus, sendo infinitamente bom, consente que o homem sofra o castigo eterno do inferno? Você diria: se ele é infinitamente bom, é também infinitamente justo, senão não seria Deus; e, para fazer justiça, deve dar o céu aos bons e o inferno aos maus; mas digo eu: se ele vê que o homem, por vontade própria, irá cair no pecado e por isso sofrer a pena eterna, ele não deveria consentir que esse homem nascesse ou então deveria dar a morte a esse homem enquanto fosse criança e inocente".

Retiro o que disse há pouco, dizendo que ele não deveria consentir o nascimento, pois é sabido que Deus fez o homem para que esse participe da felicidade eterna. Mas que morra, como já disse, enquanto criança, pois assim evitaria ofender a Deus mais tarde e, depois da morte, sofrer o castigo do inferno. Deste modo não deixaria de ser justo"

II - A resposta

O consulente entra no domínio dos mais árduos problemas das obras divinas, e levanta muitos pontos de doutrina, geralmente pouco compreendidos.

É uma razão de lançar um raio de luz sobre estes admiráveis e quase terríveis mistérios, tanto para divulgar os belos e harmoniosos ensinos do dogma católico, como para dissipar os erros que deturpam a verdade.

São mistérios, porém convém notar que se o como do mistério nos escapa, por estar acima da nossa inteligência, o objeto do mistério, sendo uma realidade, o objeto pode ser estudado, e a nossa inteligência pode entrar em contato com as harmoniosas e luminosas verdades que o mistério nos revela.

É o caso da providência divina.

Há, nesta verdade, segredos impenetráveis; há também verdades de grande alcance doutrinal que só os estudiosos podem perscrutar; e há verdades práticas, consoladoras, e ao alcance de todos.

Procuremos entrar nos arcanos destas verdades, e mostrar acima e apesar das vicissitudes deste mundo, a providência paternal de nosso Pai Celestial, que tudo dirige e governa.

III - O que é a providência

Para bem compreender as respostas dadas às consultas feitas, é preciso ter uma noção clara do que é a providência divina.

Pode-se dizer que a providência, em Deus, é o que é a prudência nos homens.

A prudencia, de fato, é a virtude que faz com que um homem, tendo de alcançar um fim, prevê e dispõe, de antemão, todos os meios necessários para atingí-lo.

providência é uma palavra admirável oriunda de duas outras palavras que exprimem suas duas grandes funções: praevidere, providere: prever e prover.

Deus é o fim de tudo. Como tal, ele indica o fim próprio a todas as criaturas, prevê os meios necessários para atingir este fim. É isso que se chama providência de Deus.

Nesta providência é preciso distinguir duas coisas: o plano e a execução.

O plano é eterno; a execução é temporária.

Isto é claro.

O plano da ordem, ou a ordenação dos seres para o seu fim, pertence à providência propriamente dita; enquanto que a execução pertence ao governo divino.

A providência é eterna, porque Deus prevê e provê, desde toda a eternidade, o que deve desenrolar-se no decurso dos tempos.

O governo se exerce no tempo e existe só no tempo, visto que os seres, que deve reger e mover, só existem no tempo.

A providência é natural, quando dirige os seres na ordem da natureza; é sobrenatural, quando dirige os homens no caminho da salvação.

Neste particular da ordem sobrenatural, a providência divide-se necessariamente em duas partes: É geral e especial. A providência geral prevê e provê para todos os homens auxílios suficientes para se salvarem.

A providência especial assegura aos eleitos graças eficazes para lhes fazer alcançar, infalivelmente, a gloria eterna.

É esta providência especial que se chama predestinação.

IV - Provas da providência

Este dogma é negado pelos ateus, pelos deístas, pelos materialistas e pelos fatalistas.

Não quero alongar-me aqui para provar minuciosamente a providência de Deus. É uma verdade certa, é um dogma de fé, provado pela Sagrada Escritura e pelo bom senso.

Não ha outro Deus senão Tu que tens cuidado de todas as coisas (Sb12,13).

Deus dispõe de fim a fim, fortemente, e dispõe todas as coisas suavemente (Sb8,1).

Não se vendem dois pássaros por um real, e todavia nem um só deles cairá sobre a terra sem a permissão de vosso Pai (Mt10,29).

Por isso vos digo que não estejais solicitas na vossa alma sobre o que comereis, nem do que haveis de vestir... porque o vosso Pai sabe que precisais destas coisas.

Todos os cabelos da vossa cabeça estão contados; não estejais com temor, pois valeis mais que muitos pássaros (Mt6,25).

Estes textos, e muitos outros, da Sagrada Escritura nos mostram claramente a inefável providência divina, que se estende a todos os seres criados, aos mínimos tão bem como aos maiores.

A simples razão, aliás, convence-nos desta verdade.

A providência de Deus deve estender-se tão longe que a sua ação; ora, a ação divina estende-se neste mundo a todos os seres: aos gêneros, às especies, aos indivíduos, às substâncias, às faculdades e até ao movimento destas faculdades.

Logo, a providência divina, eternamente, devia ocupar-se de tudo isto.

Existe, pois, uma providência, um Pai celeste, como diz o Evangelho, que previu tudo, que proveu a tudo, que ordenou tudo, num plano eterno.

E este plano é imutável e executa-se infalivelmente, porque o que Deus decide não muda.

Sto. Agostinho diz muito bem: "Deus quer mudanças em suas obras, Ele inova incessantemente todas as coisas, mas os seus planos não mudam: Mutat opera, non mutat consilia" Quem não reflete, pensa que tal concepção da providência parece-se com o fatalismo.

Há um abismo entre os dois.

A providência é um Pai inteligente e bom que prevê, prepara e dispõe tudo de antemão; o fatalismo é um destino cego, sem entranhas, que empurra tudo, sem respeitar nem a liberdade criada, nem a causalidade, nem sequer o bem e o mal, a virtude ou o vício.

V - O bem e o mal

Depois destas noções da providência divina, entremos agora resolutamente no amago das objeções feitas pelo digno consulente.

Como acabamos de ver tudo o que acontece é a realização de um plano formado desde a eternidade, no pensamento divino, a cuja execução preside urna vontade infalível, imutável, à qual nada escapa.

E entretanto, olhando em redor de nós, encontramos o mal sob todas as formas.

O mal penetrou em todas as partes do bem, nos seres superiores, como no anjo e no homem; corno nos seres inferiores, no animal, na planta, no mineral: tudo se estraga, perde a forma, corrompe-se, desaparece. Como dizia Virgílio, parece que até os objetos inanimados possuem lágrimas.

Sunt lacrimae rerum!

Mas o mal encontra-se sobretudo no homem.

Temos aqui as objecções do consulente.

Como é que Deus deixa o mal entrar em sua obra?

Mostrei acima que nada escapa, nem resiste à vontade divina.

Mas então terá Ele querido este mal?

Neste caso, a responsabilidade remonta primeiramente a Ele.

E como dizer, neste caso, que Deus é bom e justo?

Supondo mesmo que Deus não tenha querido este mal, como o permitiu então?

Deve tê-lo previsto... que digo, este mal deve ter entrado em seu plano divino?

Como é possível tudo isso?

Um operário inteligente pode permitir que um defeito venha viciar a sua obra?

Este problema, como se vê, é extenso, e vou até ultrapassando as objeções de meu consulente, para tornar mais luminosa a resposta, e mostrar que não há em tudo isso nenhuma contradição.

O assunto tem as suas obscuridades… mas tem também luminosos horizontes.

Penetremos nestas obscuridades a passo firme, apoiando-nos sobre a infalível doutrina da Igreja de Jesus Cristo.

VI - O que é o mal

O mal é o oposto do bem.

A este título o mal não é um ser, mas não é também um não-ser absoluto.

De fato, se fosse um não-ser absoluto, a consequência seria que tudo o que não existe seria um mal, o que é absurdo.

Neste sentido, o homem seria um mal porque não tem a agilidade do veado, e o veado seria um mal, porque não tem a força do leão.

O mal é uma privação, nada mais.

O mal existe nas coisas; o seu sujeito é o bem.

O mal é, na existência de um ser, a privação de uma perfeição, de uma qualidade que este devia ter.

A cegueira, a surdez, por exemplo, são males, porque é a privação da vista, ou da audição.

Todo ser é bom. O bem é o sujeito do mal.

Há neste mundo duas espécies de males: o mal físico e o mal moral.

O primeiro afeta a natureza e não se encontra, propriamente falando, senão nos irracionais.

O segundo afeta a vontade, e não se encontra senão nos homens.

A razão é que o irracional tende sempre para um bem particular, e com tal tendência, só pode estar sujeito a um bem particular.

O homem, ao contrário, pode conhecer e procurar o bem geral, absoluto; daí provém que o mal, enquanto afeta a inteligência e a vontade, reveste-se de um caráter particular, que nós chamamos: mal moral.

Este mal é duplo: é uma falta, ou é a pena de uma falta.

No primeiro caso é o pecado; no segundo, é a pena do pecado.

O mal físico e moral está espalhado em toda a natureza.

Um corpo se corrompe, perde a sua forma: é um mal.

O mal moral tem uma extensão mais vasta que o mal físico.

O pecado e a pena estão em toda parte. O pecado começou nas alturas do céu, pela revolta dos anjos rebeldes, continuou no paraíso, pela desobediência de nossos primeiros pais, e atravessa os séculos, manchando tudo de crimes e de obras horríveis.

O pecado arrasta consigo a pena em toda parte.

A pena do pecado é tudo o que atormenta: é a morte com seu séquito de moléstias e de males.

O salário do pecado é a morte, diz o apóstolo. Stipendia peccati mors (Rm6,23).

VII - A causa do mal

Sabemos agora o que é o mal e a pena do mal; procuremos agora a sua causa e qual é a parte de Deus na produção do mal.

A primeira raiz do mal é a própria natureza do ser criado, porque o ser criado e o bem criado são essencialmente defectíveis. De fato, o ser criado e o bem criado, não sendo por si mesmos nem o Ser, nem o Bem (que é Deus), devem ser privados de uma parte deste ser ou deste bem.

Daí vem o mal.

A morte é um mal; mas donde provém a morte? Provém do próprio ser criado, que é mortal.

O pecado é um mal; donde vem ele primeiramente? ele vem da defectibilidade da vontade humana.

Eis um relâmpago no meio das trevas que envolvem os horrores do mal.

Procuremos saber como é que Deus deixou o mal introduzir-se neste mundo.

É muito simples.

A razão primeira e fundamental é a própria essência das coisas.

No momento em que Deus resolveu fazer as criaturas, Ele não podia escolher: tinha que fazê-las necessariamente defectíveis. Pois só Ele é, e pode ser indefectível; devia assim introduzir necessariamente em sua obra a possibilidade do mal.

Para que o mal possa existir, é preciso que o bem exista. e é o bem que é a causa do mal.

O bem causa o mal de dois modos, diz Sto. Tomás:

1o - Enquanto este próprio bem é essencialmente defeituoso.

2° - Enquanto faz acidentalmente o mal 1).

1) Uno modo bonum est causa mal! in quantum est defflciens; alio modo per accidens (Sum. q. l; De Maio, a1).

Todo bem que existe neste mundo é imperfeito, neste sentido que podia ser melhor ainda. O único Bem perfeito é Deus.

Daí a palavra de Nosso Senhor: Uma árvore ruim não pode produzir frutos bons (Mt7,18).

Deste modo o mal é universal ao bem, como o efeito à sua causa.

O fruto não é culpado de ser ruim; a causa é a árvore, embora esta árvore seja um bem; mas é um bem defeituoso.

O bem pode ainda produzir o mal acidentalmente. Por exemplo, uma mosca põe seu ovo sobre uma fruta, e a corrompe.

O ovo, ou o bem (pois um ovo de mosca não é um mal em si mesmo) produz acidentalmente este mal.

No homem as coisas passam-se mais ou menos da mesma forma. A vontade humana é viciada por si mesma, porque é defectível. A moralidade, ou a bondade de um ato humano, provém de sua conformidade com a regra suprema que dirige este ato: a lei divina.

A lei que deve dirigir a vontade humana é a razão. Se a vontade, num ato particular, desviar-se da lei, é a própria vontade que é a causa deste desvio. Sendo, de fato, a vontade livre, ela tem em si o poder de agir ou de não agir, de seguir ou de afastar-se dela.

E assim, até uma vontade boa, querendo, pode fazer o mal. De novo, a primeira causa do mal é o próprio bem.

VIII - O mal no mundo

Vejamos agora como Deus deixou entrar o mal neste mundo.

Como já disse, Deus devia deixar entrar no mundo o mal, mas a primeira raiz do mal é a defectibilidade dos seres.

Digo que devia, pois é da essência das coisas o serem defectíveis, ou então devia deixar de criar os seres; não havia termo médio.

Só Deus é a perfeição indefectível. Suas obras, por perfeitas que sejam, não podem igualar-se a ele mesmo, e são necessariamente inferiores ou defectíveis.

A criação, mesmo imperfeita, é um bem.

Por causa de poder haver certos males neste bem, Deus não devia deixar de criá-lo: Seria sacrificar um bem maior por causa de um bem menor. Seria como si dissesse ao sol: Pára teus raios, porque se de um lado produzem a fecundidade, de outro lado podem produzir as secas.

Mas Deus, pela sua providência, conduz todas as coisas, do mal como do bem, de modo que nenhum mal acontece, sem ter em vista um bem maior.

Deus não quer o mal diretamente; Ele quer o bem; mas acontece, às vezes, que a este bem está ligado um mal, de modo que não se pode querer o bem sem aceitar o mal; neste caso, Deus permite o mal, sem querê-lo.

Se na natureza o mal existe, é porque é ligado a um bem, e não se produz senão para o bem, devendo este bem ser real ou aparente e, na estimação daquele que age, maior que o mal que o segue.

O homem pode enganar-se na procura do bem, é certo, e por falta de juízo ou de consideração, ele pode prosseguir um bem menor do que o mal que está ligado a este bem.

O homem pode errar, porém a natureza não erra; de modo que, geralmente falando, pode-se afirmar que o mal não se produz no mundo, senão para um bem superior.

Tal é a regra dogmática de Deus na direção deste mundo.

pode e deve permitir o mal, mas para conseguir um bem superior.

E assim acontece.

O mal que presenciamos não é casual; é a providência divina que o permite, mas que, pela sua presciência divina, dispõe tudo, para deite tirar um bem maior.

Este bem escapa, muitas vezes, a nossas vistas e percepções, mas ele existe e há de produzir-se infalivelmente.

Para o mal físico é claro e palpável.

O mineral, pela sua destruição (é um mal) dá vida ao vegetal, (é um bem); a morte da planta (mal) dá vida ao animal (bem).

A destruição do animal (é um mal) permite ao homem alimentar-se (é um bem).

Os inferiores servem de alimento aos superiores; os mais fracos são comidos pelos mais fortes... De um mal resulta um bem maior.

A mesma lei governa os homens.

A morte é um mal, mas é um mal necessário para ceder lugar aos vivos.

A natureza troca seres velhos e gastos por seres novos e fortes; e assim faz as criaturas mortais atravessarem os tempos, assegurando-lhes a perpetuidade da espécie.

Tudo isso é admirável, é divino!.

Os inferiores servem de alimento aos superiores, e quando estes últimos morrem, seus restos recaem nos reinos inferiores, que remontam ao que tinham dado.

O mineral alimenta a planta, a planta alimenta o animal, o animal alimenta o homem; o corpo do homem, após a morte, recai no reino mineral, para recomeçar o mesmo círculo.

Estão vendo que não há aí um mal propriamente dito, mas um gérmen de bem maior.

Ainda uma vez: É admirável... é divino!

IX - O mal moral

É tempo de elevar-nos à ordem moral ou imaterial. É a mesma providência divina, são as mesmas maravilhas, que se vão sucedendo.

O mal moral é duplo. Ele compreende a pena ou castigo do pecado; e o pecado.

Chama-se pena do pecado tudo o que neste mundo aflige os homens: moléstias, sofrimentos, morte, inferno.

A razão de ser destes males, os bens que nos comunicam são múltiplos. E isto deve ser bem notado, pois os bens são como o fim destes males.

Primeiramente, eles têm por fim fazer evitar o pecado pelo temor e pelo medo que inspiram.

A pena é um dique oposto ao crime; sem ele os pecadores não sentiriam mais nenhum freio.

Segundo, tais males são feitos para castigar o pecado cometido. Estão aí para garantir a justiça, e fazer resplandecer esta justiça sobre os pecadores.

De fato, do mesmo modo que a justiça brilha na recompensa dada aos bons, ela brilha também no castigo infligido aos maus.

O castigo produz, pois, inúmeros benefícios.

E o próprio pecado?... o grande mal moral?.. o único mal moral? A fonte de todos os outros males. Que dizes dele?

Aqui ainda vamos encontrar a mesma providência paternal de Deus.

Deus, podendo impedi-lo, por que não o impediu? É a pergunta de meu consulente.

Qual é o bem superior, pelo qual Deus consentiu que um mal tão imenso penetrasse em sua obra?

Aqui o homem deve inclinar a cabeça e exclamar com o apóstolo: Oh! profundidade das riquezas, da sabedoria e da ciência de Deus; quão incompreensíveis são os seus juízos, e imperscrutáveis são os seus caminhos. Porque, quem conheceu o pensamento do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? (Rm11,33).

Não podemos penetrar o mistério, mas podemos, entretanto, levantar um canto do véu espesso, que encobre os desígnios divinos.

Experimentemos.

X - Ó feliz culpa

No canto do Exultet, no Sábado Santo, a Igreja tem uma exclamação misteriosa, mas divinamente profunda, de ternura e de amorosa audácia. Ela canta: Ó pecado de Adão, verdadeiramente necessário, pois o Cristo o apagou com a sua morte!

Ó feliz culpa, que nos mereceu um tão grande Redentor!

Nesta passagem sublime, através do pecado acima, infinitamente acima do pecado, aparece a figura radiante e misericordiosa do Redentor.

Atrás da desobediência da criatura - que é o mal moral - percebo a obediência de Cristo - o grande bem.

Vejo a queda no paraíso, os sofrimentos, as desordens, as lutas, a morte: mas, acima de tudo isto, vejo o estábulo de Belém, vejo Nazaré, Jerusalém, o lago de Genesaré, o templo, o Cenáculo, o jardim das Oliveiras, os açoites, a coroa de espinhos, a Via Sacra, o Calvário, o túmulo glorioso, a Ascensão, o pentecostes, o triunfo da Igreja, o sangue dos mártires, a pureza das virgens, o heroísmo do amor. E diante deste quadro divino, sinto os joelhos tremerem, e, prostrando-me, tenho vontade ele repetir o brado do Exultet: Ó feliz culpa!

Ó feliz culpa que nos mereceu um tal Redentor!

O mal é sempre um mal, mas o mal eclipsa-se perante o bem que trouxe à humanidade.

E este bem, que é o Cristo, é infinitamente maior que o mal causado pelo pecado. Não se pode fazer o mal para que dele resulte o bem; porém Deus deve respeitar a liberdade do homem, e tirar o bem do mal que o homem comete.

XI - A figura do Cristo

Deus, criando o homem à sua imagem e semelhança, sabia, pela presciência divina, o que aconteceria com a raça deste homem.

Enquanto formava este corpo, e animava-o com o seu sopro divino, o mundo desenrolava-se diante de seus olhos.

ele viu tudo... tudo... o paraíso terrenal e, além do paraíso, os séculos acumulados com tudo que encerravam de bem e de mal.

Viu a degradação da obra de suas mãos, contava sob a fronte que desenhava as inteligências rebeldes que ultrajariam o seu nome, tantos olhares soberbos que se levantariam contra o seu poder; viu sobre estes lábios desanimados o riso da vergonhosa volúpia; ouviu as palavras da mentira, das paixões, da impiedade.

E neste coração, onde ia circular um sangue puro, ele sentiu já ferver todas as concupiscências.

Em todos estes órgãos, tão nobremente esculpidos pelas suas mãos, não encontrava nem uma veia sequer, que não se abriria ao assassínio, ao homicídio, a todos os venenos, a todas as vinganças.

Ele viu esta cabeça dominadora, que se levantaria para o céu, virar-se violentamente para a terra, abdicar a sua realeza, e queixar-se de não ter sido feito semelhante aos animais.

Deus viu tudo isto, ouviu tudo isto, sabia tudo isto, e não quebrou a estátua que tinha diante de si, como um artista descontente de sua obra.

Por que isso?

Tertuliano nos dá a resposta: Mais alto que a ingratidão dos homens, diz ele, Deus enxergava a misericordiosa figura do Redentor dos homens.

Christus cogitabatur homo futurus!

É uma palavra genial. É a solução do problema do mal.

Pergunta-me: por que Deus deixou penetrar o mal moral neste mundo?

- Por que?

- Porque era inevitável, sendo o homem um ser defectível, e tendo a liberdade de fazer ou de não fazer, liberdade que Deus deve respeitar, sob pena de fazer do homem uma simples máquina.

- Mas, permitindo a invasão do mal, a providência divina dispõe tudo, para que deste mal resulte um bem maior.

Não podendo evitar o mal, ele o permite, mas tira o bem do mal.

Deus é sumo bem, ele só quer o bem.

O homem é defectível e o é essencialmente; devia fazer o bem, mas, não o fazendo, Deus serve-se do mal para realizar um bem maior.

Que bela, que harmoniosa, que sublime disposição da providência divina.

É impossível imaginar coisa mais terna, mais misericordiosa, mais divina do que os estratagemas divinos do Deus de amor.

A figura do Cristo domina tudo, suplanta tudo, reforma tudo, eleva tudo até Deus.

O mal desce, mas o bem resultado deste mal sobe!

Vede a imagem do Cristo crucificado, glorificado!

XII - Conclusão

Não é preciso responder a cada uma das consultas feitas. As respostas estão desenvolvidas nas paginas precedentes.

Um último ponto ficou sem resposta, e é por ele que quero terminar.

O consulente fala do inferno, dizendo que Deus não devia permitir que alguém caísse nele.

O inferno é o castigo do mal. O mal não vem de Deus, só o castigo vem d'Ele. Deus criou o castigo para afastar os homens do mal. Ora, quem não quiser o castigo, não cometa o mal - quem não quiser o efeito, não ponha a causa. É lógico.

Não é Deus que lança os homens no inferno; são eles mesmos que lá se precipitam.

Deus nos avisa, nos mostra o inferno, como sendo o castigo tremendo do pecado, pede, supplica que os homens se afastem dele; que poderia Ele fazer mais?

Que pode Ele fazer, se um diz: "vejo o inferno, sei que é terrível cair nele, mas não o quero evitar. Pouco me importa se terminar em suas chamas!.

Deus nada mais pode fazer; fez tudo. Avisou, ameaçou, suplicou. O homem não quer escutar. Deus deve respeitar a liberdade do homem, porque criou-o livre, e não pode retratar esta liberdade.

Eis o que é a providência divina, no governo deste mundo, e como e por que Deus deixou entrar o mal em suas obras.

Não havia outro jeito.

Deus é um só, e só Ele é indefectível.

A criatura não pode ser o criador, deve ficar abaixo do criador, e como tal eleve ser essencialmente defectível.

Deus pôs à sua disposição os meios para não cair; mas o homem é livre, e cai livremente, não empregando os meios para não cair.

O bem, todo o bem vem de Deus.

O mal vem unicamente do homem.

Deus fez o homem para a felicidade.

É o homem que se precipita na desgraça.

Perditio tua, Israel... in me auxilium tuum (Os13,9).

A nossa perda vem de nós. O nosso auxilio está em Deus, disse o profeta.

Aproveitemos a lição e o aviso.

NONA POLÊMICA

A predestinação dos homens

OU HARMONIAS DO PLANO DIVINO

Eis um assunto demais ignorado, embora de suma importância para a direção de nossa vida.

As trevas que envolvem este tremendo mistério são a causa de que se estude pouco o mistério da predestinação.

Entretanto, quantos erros e mal entendidos correm a este respeito.

A predestinação, assim como a providência divina, são como que as consequências de outro mistério já estudado na sétima polemica: a presciência divina.

A providência, exposta no capitulo precedente, tem duas fases, ou dois aspectos distintos.

Ela é geral, quando se refere ao governo do mundo em geral, e particular, quando diz respeito a cada homem em particular.

É esta providência particular que se chama predestinação dos homens, e é deste mistério que quero tratar aqui.

1 - A consulta

O que me obriga a tratar do difícil e espantoso assunto é a consulta de um ilustre professor, que assim me escreve:

Revmo. Padre julio Maria.

Li com muito interesse e proveito o seu incomparável estudo sobre a presciência divina.

A sua exposição é luminosa; mas, atrás das verdades expostas por V. Revma., quantas outras verdades ficam escondidas!...

Seria temeridade pedir à sua admirável perspicácia penetrar um pouco até atrás do véu, e revelar-nos em que consiste exatamente a predestinação dos homens?

Muito já tenho lido sobre isso, porém não estou satisfeito.. vejo sempre uma nuvem e sinto diversas dúvidas, que não posso resolver, como por exemplo:

1°. Deus predestina o eleito ao céu e o réprobo ao inferno?

2°. Por que Deus permite que haja homens réprobos?

3°. - A perda de uns e a salvação de outros, não parece quase uma injustiça da parte de Deus?

4°. - Pelo menos é cruel.

5°. - Podendo salvar os homens por que Deus os deixa se perderem?

6°. Não é uma barbaridade a existência do inferno? etc., etc.

II - A resposta

Em poucas palavras eu podia responder às perguntas do distinto consulente, porém, encontrando-se tais respostas curtas em qualquer livro de doutrina, prefiro tomar o assunto de frente e pela base, respondendo a todas as questões mesmo acidentais que o assunto faz nascer, e provando solidamente a tese enunciada.

Deste modo teremos um estudo sólido e novo, que possa satisfazer ao consulente e interessar a todas as almas desejosas de conhecer, a fundo, a religião.

A predestinação é um dos mistérios mais profundos e mais impenetráveis da religião, porém esta dificuldade não é razão de não estudá-la, é apenas um aviso, para penetrarmos em suas profundezas com prudência e precaução, sem nos afastarmos do ensino dos grandes doutores.

Pode-se definir a predestinação: O ato misericordioso, pelo qual, desde toda a eternidade, Deus amou gratuitamente, escolheu livremente e orientou eficazmente para a suprema beatitude aqueles que devem salvar-se.

Os predestinados são eleitos, amados, pois esta escolha supõe o amor. E escolhendo Deus este eleito, ele chegará infalivelmente, embora pela sua livre cooperação, ao termo da salvação.

A predestinação é mais que a providência comum, mais que a providência sobrenatural em geral; é uma providência especial, que assegura ao eleito graças eficazes para o tempo e a glória para a eternidade.

A predestinação é um efeito do amor.

A sua tríplice graduação é: amar, eleger e predestinar (1) donde diz Sto. Tomás: todos os predestinados são eleitos e amados (2).

Todos os seres não são predestinados; há uma eleição, e toda eleição supõe uma escolha entre diversos, dos quais uns são tomados e outros deixados.

É o amor que faz esta eleição.

Nosso amor não causa nossos amigos; ao contrário são as qualidades dos nossos amigos que causam nosso amor.

1) Predestinatio secundum rationem presupponit electionem et electio dilectionem (Summ. P.1.q. 13 a 4).

2) Unde omnes praedestinati sunt electi et dilecti (ibld).

Li São estas qualidades que determinam a nossa eleição e provocam nosso amor, de modo que, entre os homens a eleição precede ao amor.

Em Deus é o contrário. É porque Deus ama um ser, que este ser existe, e existe de preferência a outro; de modo que o seu amor é a razão da eleição e da predestinação.

III - Existência da predestinação

As noções precedentes, embora ainda gerais, nos fazem penetrar no âmago da questão. Mostremos aqui que tal predestinação é um fato certo, absoluto, uma verdade incontestável.

Em primeiro lugar temos a palavra de jesus Cristo: Vinde, benditos de meu Pai, possui o reino do céu que vos está preparado, desde o princípio do mundo (Mt25,34).

Deus preparou, pois, desde toda a eternidade, para os seus eleitos, a beatitude e a glória; e esta preparação é uma eleição, uma predestinação especial, visto não ter sido concedida a todos os homens, nem sequer a todos os cristãos.

São Paulo é o doutor da predestinação: É preciso citar na integra este passo sublime do apóstolo, que condensa toda a teologia da predestinação: Nós sabemos, diz ele, que todas as coisas concorrem para o bem daqueles que amam a Deus, para o bem daqueles que, segundo o seu desígnio, são chamados santos, porque os que ele conheceu na sua presciência, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, para que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aqueles que ele predestinou, também os chamou; e aqueles que justificou, também os glorificou (Rm8,28-31).

Este texto não precisa de comentário; ele é de um rigor e uma exposição inteiramente teológicos: o amor, a eleição, a predestinação, a justificação e a glória.

O apóstolo atribui ao ato da predestinação três grandes efeitos:

1 - A vocação à salvação;

2 - A justificação pela graça;

3 - A glorificação no céu.

A razão teológica confirma admiravelmente o texto sagrado.

A perfeição de Deus imutável, cuja ciência infinita desce a todas as minúcias, exige que Ele ordene e regule, desde toda a eternidade, o que executará no tempo.

Devendo, pela Sua graça, realizar um dia a beatitude de seus eleitos, Ele o quis e decretou desde toda a eternidade, e destinando, de antemão, esta beatitude a tais e tais, ele determinou ao mesmo tempo os meios que lhes devem assegurar eficazmente a sua possessão.

Ver este fim e estes meios sobrenaturais, preparar seguramente os meios para o fim, é isto o que nós chamamos predestinação.

Na inteligência divina é obra de profunda sabedoria!

Na vontade divina é obra de uma misericórdia gratuita e infinita!

IV - Efeitos da predestinação

Estes efeitos são os que S. Paulo indica no texto citado, e que se podem resumir nos três termos seguintes:

1°. - Vocação.

2°. - justificação.

3°. - Glorificação.

São os efeitos diretos, sobrenaturais, que levam o homem a seu destino supremo.

Os efeitos indiretos, naturais, constituem um conjunto de fatos, de circunstâncias ou de realidades, coordenados pela providência para a salvação.

São, entre outros, a saúde, a riqueza, a prosperidade, etc., que podem tornar-se auxiliares da virtude e meios de amar a Deus.

Na mesma ordem devem ser colocados a moléstia, infelicidade, desgraças, sofrimentos, etc.; enquanto permitidos por Deus como ocasião de paciência e de mérito, tudo isso procede do amor infinito.

É a aplicação da palavra de S. Paulo: Para quem ama a Deus, tudo concorre ao bem (Rm8,28).

Sobre os efeitos indiretos, não há nenhuma dificuldade; basta um pouco de espírito de fé na providência divina.

Estudemos, aqui, os efeitos diretos, sobrenaturais, que se relacionam imediatamente com a predestinação.

Primeiramente, a vocação, que é o começo da vida. São as graças que solicitam a inteligência e a vontade para levar as almas à salvação; são também os auxílios externos, como a pregação, bons exemplos, etc.

Deus chama à salvação. - Aqueles que Deus predestinou, lambem os chamou (Rm8,30), diz o apóstolo.

O primeiro decreto divino é, pois, a vocação.

Todos os homens são chamados?

Não! Todos são chamados à glória, mas poucos são eleitos (Mt20,16).

A gloria é uma recompensa que é proposta a todos, mas que apenas um pequeno número consegue: Quão estreita é a porta e quão apertado o caminho que conduz à vida, e quão poucos são os que acertam com ele (Mt7,14).

Todos que não são, pois, chamados. Mas, por que Deus não faz este chamamento a todos? É o nó do mistério.

O certo é que Deus quer a salvação de todos os homens (1Tm2,4) e a nossa em particular, visto nos ter feito nascer na religião verdadeira.

É certo ainda que Deus é infinitamente justo e bom, e como tal nos dá todos os meios de salvação ao ponto que esta salvação está em nossas mãos.

Ora, admitidos estes principias incontestáveis, podemos dizer que é nossa culpa, se formos reprovados em vez de sermos salvos.

Procuremos, agora, elucidar esta doutrina básica, sendo a justificação e a glorificação como que as consequências desta primeira eleição. Deus, de fato, escolhe, justifica e glorifica.

V - Os decretos divinos

Sigamos um instante o modo de proceder de Deus na obra da predestinação.

Deus predestina à glória, independente dos méritos dos homens.

Pode-se colocar do seguinte modo os decretos divinos a este respeito e resumi-los nos seguintes princípios:

1 - Deus quer sinceramente a salvação de todos os homens, e não predestina a ninguém ao pecado e à perdição.

2 - Antes de toda previsão dos méritos do homem, unicamente pela sua bondade Ele escolhe tal e tal para a glória eterna.

3 - Em virtude desta escolha, Ele lhes prepara os auxílios e as graças que os farão chegar infalivelmente, mas pela sua cooperação pessoal, à salvação e à beatitude.

4 - Igualmente, antes de toda previsão dos atos humanos, ele permite, que outros homens, pela sua própria culpa, não cheguem à gloria, e sejam reprovados.

5 - A estes últimos ele prepara, entretanto, todas as graças necessárias para a salvação, de modo que, perdendo-se, não é a falta de graça, mas falta de boa vontade da parte deles: - É a reprovação negativa.

6 - Depois de ter previsto que os homens, abusando da graça e do livre arbítrio, se entregarão ao mal, Deus decreta puni-los. É a reprovação positiva.

Esta doutrina pode resolver-se neste texto, do Concilio de Kiersy: Que tais homens se salvem, é o dom de Deus; que tais outros se percam, é a sua culpa (Denzinger).

Nesta exposição, conservo-me à margem de toda polemica: as teologias católicas dão a critica dos diversos sistemas.

O que é certo, é que a predestinação, tomada em seu conjunto, é inteiramente gratuita, é um puro dom de Deus, um ato de sua infinita bondade; pois é de fé que ninguém pode preparar-se à graça por suas próprias forças: a graça é essencialmente um dom divino que supera todas as forças humanas.

Aqui, apresenta-se uma dificuldade mais aparente que real, a qual convém resolver, por ser ela a grande objeção apresentada pelo consulente.

VI - A escolha divina

Por que Deus escolhe, de preferencia, uns aos outros?

Sendo a predestinação um efeito da vontade divina, é preciso procurar a causa nesta mesma vontade divina.

Ora, esta vontade não tem causa. Deus é essencialmente livre e independente. Deus quer por­ que quer: é o seu bel-prazer, sua pura vontade, nada mais.

Não havendo causa da vontade divina, nesta própria vontade, procuremos se não haverá nos efeitos desta vontade.

O efeito é a beatitude eterna. Este efeito pode ser considerado em suas partes.

Estas partes são a vocação, a graça e a glória.

Ora, uma é a preparação da outra.

A vocação é gratuita: - é a bondade divina.

Nada há na criatura que possa merecer esta vocação à glória.

Admitida a gratuidade deste primeiro passo, é fácil resolver os outros, pois um é a causa do outro.

Uma vez chamado por Deus, o homem recebe as graças necessárias e superabundantes para salvar-se: - a eleição divina é a causa da justificação - como a justificação é a causa da glorificação.

A glorificação, termo final da predestinação, é, pois, diretamente a obra de Deus, e indiretamente a obra do homem, pela correspondência, de modo que se pode dizer que na glorificação Deus coroa a sua própria obra.

Neste profundo mistério tudo se refere, deste modo, à pura e simples vontade divina; a seu bel-prazer, a seu livre amor, sem que qualquer coisa tenha podido influir sobre a sua determinação.

E não haverá nenhuma explicação mais clara e mais positiva desta preferencia?

Nenhuma, absolutamente nenhuma.

Quem somos nós, para que Deus nos preste conta de sua administração?

Quem foi o seu conselheiro? diz o apóstolo: Quis consiliarius ejus fuit? (Rm11,34). Não somos nós que escolhemos a Ele; mas Ele que nos escolheu. - Non vos me elegistis (Jo15,16).

VII - Os eleitos e os réprobos

Falando da providência, mostrei que, ao lado do bem, Deus tinha deixado entrar certos males, tirando destes males bens superiores.

Na escolha dos eleitos e na reprovação dos maus é a mesma lei que dirige Deus.

Seria ímpio dizer que Deus quis, desde a eternidade, e que realizou, no tempo, a perda dos homens.

Deus permite o pecado, mas não o quer, e ainda menos o faz, de modo que ele também não quer, nem faz a reprovação, que é a consequência do pecado.

A responsabilidade destas coisas recai absolutamente sobre o pecador, que peca livremente e livremente se condena.

Que digo! Não somente Deus não causa o pecado, nem a danação, mas Ele dá ao pecador a graça superabundante de não pecar.

É o que estamos vendo na ordem natural.

Do mesmo modo que o mesmo sol se levanta sobre os bons e os maus, assim a palavra divina é igualmente anunciada a todos; os sacramentos que são a fonte da vida, estão à disposição de todos.

Nesta marcha que leva o pecador à sua perda, a conduta de Deus é puramente negativa: - ele deixa fazer, porque deve respeitar a liberdade do homem.

Tal vontade divina pode ser misteriosa, porém não é injusta.

Ninguém pode acusar a Deus se recusa os seus dons a quem livremente os despreza.

Toda a honra da salvação do eleito recai sobre Deus, mas toda a responsabilidade da reprovação do mau recai sobre ele mesmo.

É o que fazia dizer ao profeta, falando de Israel: - Perditio tua ex te, Israel, tantunmmodo in me auxilium tuum (Os13,9).

São Paulo tem sobre isto uma página de luz inigualável, expondo com a sua costumada lógica e vigor o grande dogma da liberdade de Deus em predestinar a uns, e em deixar perder a outros.

Leiamos e meditemos bem esta pagina sublime: Eu amei Jacó e aborreci Esaú, escreve ele.

Que diremos, pois? Há, porventura, injustiça em Deus? Longe disto.

Porque ele disse a Moisés: Eu terei misericórdia com quem me aprouver ter misericórdia; e terei piedade de quem me aprouver ter piedade.

Logo, isto não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus, que usa de misericórdia.

Porque a Escritura diz a Faraó: Para isso te suscitei afim de mostrar em ti o meu poder, e afim de que seja anunciado o Meu nome por toda a terra.

Logo, Ele tem misericórdia de quem quer e endurece a quem quer.

Dir-me-ás, porém: De que se queixa Ele ainda? Quem pode resistir à sua vontade?

Ó homem, quem és tu, para replicares a Deus? Porventura, o vaso de barro diz a quem o fez: Por que me fizeste assim?

Porventura o oleiro não tem poder para fazer da mesma massa um vaso para uso honroso, e outro para uso vil? (Rm9,13-21).

É impossível dizer melhor, como é impossível dizer mais. Deus escolhe livremente a quem Ele quer.

VIII - O bem superior

O fim dos desígnios de Deus no governo do mundo e das almas é tirar o bem do mal: - é o bem superior.

Como já vimos, o mal é inevitável; Deus deve permiti-lo, para salvaguardar a liberdade do homem, mas o mal não fica como mal, ele se converte em bem, pela providência divina.

Encontramos na predestinação a mesma reversibilidade do mal em bem. Deus não só preparou para todos os meios de salvação, mas ainda os meios de reprimir o mal e de não deixá-lo triunfante.

Ele o reprime, armando contra ele a Sua justiça.

É um bem imenso o reino da justiça sobre o iníquo. É por isto que Ele mesmo criou o inferno.

E não é simplesmente a sua justiça que inspirou a. criação do inferno, mas são também a sua bondade e seu amor, pondo deste modo um freio ao mal.

Com muito acerto, Dante escreveu sobre a porta do inferno: - Quem me fez foi a primeira justiça e o primeiro amor!

Deus faz concorrer o mal à manifestação de seus atributos e à harmonia de sua obra.

É fácil de compreender isto.

O bem é uma luz. O mal é uma verdadeira sombra. A sombra serve, num quadro, para fazer sobressair a luz; uma dissonância serve numa sinfonia para preparar os acordes harmoniosos: o mal, tal uma sombra, tal uma dissonância, faz sobressair os dons concedidos aos bons.

Aliás, a comparação é de São Paulo: Deus, diz ele, querendo mostrar a sua ira e tornar manifesta o seu poder, sofreu com muita paciência os vasos de ira, preparados para a perdição, afim de mostrar as riquezas da sua glória sobre os vasos de misericórdia, que preparou para a glória (Rm9,22).

Em outra parte, o apóstolo diz ainda: Numa grande casa não há somente vasos de ouro e de prata, mas também vasos de pau e de barro, e uns para usos honrosos, outros, porém, para usos vis (2Tm2,20).

Sim, no fundo do duplo desígnio de predestinação e de reprovação, há um fim de beleza e de harmonia.

É a Sagrada Escritura que o diz; podemos pois, repeti-lo: Deus é um ser simples, contendo na unidade uma infinidade de perfeições diversas.

O mundo é feito para manifestá-las, é a sua imagem.

Ora, esta divina unidade não pode ser manifestada por uma única espécie de seres; há mister uma multidão deles.

É a razão da grande variedade de criaturas no universo, no mundo inferior como no mundo superior, desde a violeta escondida, até ao cedro das montanhas; desde o regato que murmura, até ao oceano que brama; desde a poeira da estrada até à montanha que penetra nas nuvens.

Assim, na ordem espiritual, o mal acha-se ao lado do bem, a revolta ao lado da obediência; o pecador acotovela o justo, o demônio tenta o homem.

É preciso que a justiça divina seja conhecida como a sua bondade, que a sua justiça resplandeça no castigo, como o seu amor brilha na recompensa.

É um quadro perfeito, harmonioso, feito de luz e de sombras, de majestade e de simplicidade.

Semelhantes a certos espetáculos da natureza, que não podemos contemplar sem uma espécie de vertigem, estas verdades espantam a nossa imaginação; entretanto são realidades.

A obra divina deve a sua harmonia, não somente às irradiações celestes, mas também às sombras do pecado e da reprovação.

Esta obra divina deve ser iluminada, não somente pela glória dos eleitos, mas também pelo horror terrível e sublime do inferno.

A primeira é a luz; a segunda é a sombra que faz sobressair esta luz.

IX - Solução das perguntas

Depois destas noções doutrinais podemos agora, com segurança, dar a resposta direta às perguntas do nosso consulente.

1 - Deus predestinou o eleito ao céu e o réprobo ao inferno?

Deus predestinou o eleito ao céu, sim; mas não predestinou o mau ao inferno.

Não há predestinação para a perdição.

O mau perde-se porque quer. Deus não o predestinou à gloria porque sabia pela presciência que ele não corresponderia às graças, de modo que ele se perde, não porque Deus o predestinou à perdição, mas porque ele mesmo quer perder-se.

2 - Por que Deus permite que haja réprobos?

Deve permitir que haja réprobos, porque o homem é livre; e sendo livre, pode fazer ou não fazer o que Deus manda como condição de salvação.

3 - A perda de uns e a salvação de outros não inclui nenhuma injustiça da parte de Deus, pois Deus nada nos deve; a salvação é dom gratuíto de Deus, e Ele pode dar este dom a quem quiser.

O dono de um objeto não pode dispôr dele à vontade? Vejam a comparação de São Paulo, do obreiro fazendo do mesmo barro um vaso de luxo e um vaso imundo.

4 - Não há, tão pouco, crueldade, pois o homem não se salva porque não quer empregar os meios para isto. Note bem que o homem não se perde porque Deus não o predestinou, mas ao contrário: Deus não o predestinou porque sabia (pela presciência) que este homem abusaria das graças.

5 - Podendo salvar os homens, por que Deus os deixa se perderem?

Deus os deixa perder-se porque eles querem - e Deus não deve suprimir a liberdade do homem. A liberdade é o grande dom de Deus, feito ao homem; violentando este dom, Deus se retrata, muda o seu plano, o que não pode fazer, porque suas obras são extensas e seus desígnios imutáveis.

6 - Não é uma barbaridade a existência do inferno?

Absolutamente não; como provei, é uma necessidade: é uma obra de sua justiça e de seu amor.

Se Deus deve recompensar os bons, deve, pela mesma razão, castigar os maus.

O céu é a manifestação do seu amor; o inferno é a manifestação da sua justiça.

O quadro da grandeza divina completa-se pela luz de cima e pelas trevas de baixo. O primeiro é o desenho da majestade divina; o segundo são as sombras que dão relevo a este desenho.

Tal é o grande mistério da predestinação.

É um mistério. Não podemos penetrar em sua essência, mas podemos compreender os seus acidentes, o objeto que nos esconde as suas harmonias, as suas grandezas, terríveis e fulminantes sem dúvida, porém justas, misericordiosas, amorosas.

É o bastante para a nossa inteligência e para o nosso amor.

X - Conclusão

Não quero terminar este grande assunto, de certos lados tão terrível e perturbador, sem mostrar quantos estímulos para nossa vontade e quantas consolações para a nossa piedade nele encontramos.

Não pensemos com os fatalistas que, tendo-nos Deus predestinado e devendo o decreto desta predestinação executar-se infalivelmente, nada tenhamos de fazer. Tal ideia é um erro gravíssimo. As obras dos homens não mudam o decreto divino, é certo, pois estão incluídas neste decreto, fazem parte dele, são o efeito dele e não a causa.

No plano da predestinação, de fato, são predestinados e incluídos, não somente o fim a atingir (a salvação), mas também os meios (as boas obras).

Considerando os efeitos da predestinação, notamos que um efeito é causa de outro. As orações e boas obras nos obtêm o argumento da graça; a graça nos obtêm a glória. A glória sendo, pois, o fruto de uma vida santa, as orações e boas obras são soberanamente necessárias; o seu fim não é causar a predestinação ou mudar a sua ordem, mas cumpri-la. É o que fazia São Pedro dizer: Portanto, irmãos, ponde cada vez mais cuidado em tornardes certa a vossa vocação e eleição, por meio das boas obras, porque, fazendo isto, não pecareis jamais (2Pd1,10).

Eis o estímulo para a vontade. Vejamos agora a consolação para a nossa piedade.

A nossa salvação está nas mãos de Deus; é a verdade que domina todas as outras.

Ora, devemos lembrar-nos que Deus é um Pai amoroso, misericordioso, que não nos pode enganar.

Se a nossa sorte, em vez de estar em mãos tão seguras, estivesse em nossas mãos, ah! então, sim, devíamos recear de tudo; mas como está nas mãos de um tal Pai, o receio é injustificado.

O justo pode alegrar-se neste pensamento; pois ele tem a certeza de sua salvação. Sei em quem pus a minha confiança, e estou certo de que Deus é poderoso para guardar o meu depósito até esse dia (2Tm1,12).

O próprio pecador encontra motivo de esperança neste pensamento.

A vista de suas quedas podia desanimá-lo, se contasse com as próprias forças; mas pensando que o seu destino depende de Deus, ele tem o direito de esperar, enquanto estiver neste mundo.

Como se vê, do mesmo modo que no fundo de um abismo cresce uma flor pura e delicada, a mais bela das flores que possa embalsamar o coração humano sai como que naturalmente do fundo deste mistério e deste abismo, que é a pre­destinação do homem.

Diligentibus Deum omnia cooperantur in bonum (Rm8,28). - Tudo concorre para o bem dos que amam a Deus.

- Esperemos, pois; tenhamos confiança em nosso Pai celeste, sirvamos-lhe com amor e perseverança, e a salvação será um fato, a gloria eterna será nossa!

DÉCIMA POLÊMICA

A vocação

OU DETERMINAÇÃO DE UM ESTADO DE VIDA

A vocação...

Eis um assunto que merece ser tratado com muito carinho, por ser como o farol que ilumina a nossa vida - farol, cuja ausência abre diante de nossos pés um abismo, em que se vão precipitando tantos infelizes, que ignoram ou não apreciam os desígnios de Deus.

Este assunto vem admiravelmente colocar-se em lugar próprio, após as questões tratadas da presciência, da providência e da predestinação.

O que me convida a tratar o assunto é a consulta de uma distinta e inteligente filha de Maria, que me dirigiu a seguinte carta:

1 - A consulta

Sendo leitora assídua dos vossos artigos e observando, por meio deles, a vossa erudição sobre todos os pontos, resolvi dirigir-me a vós, porém confiada apenas na vossa nobre missão que é missionaria e portanto caridosa, afim de pedir-vos esclarecer-me num ponto, para mim bastante confuso, consequência de varias opiniões.

Certa estou no vosso esclarecimento e segura de tal elucidação.

Tal é: Desejo saber se há fatalidade, ou melhor, se as coisas tendo que se suceder não há desvio. Assim, por ex., a morte: Terá o seu dia marcado?

E assim todas as demais coisas! Um estado, por ex., a tomar já está notado? Terá que suceder?

Bem confiada na vossa bondade e não no meu apelo, despeço-me muito agradecida e bastante sensibilizada.

Lançai-me a vossa benção.

II - A resposta

Ninguém há que não compreenda a importância da questão da vocação.

As almas iluminadas apenas pelos princípios da fé reconhecem que, da escolha que fazem de um estado, depende a felicidade ou a infelicidade da vida.

Os pais que refletem e se preocupam, com razão, da vocação de seus filhos, como todos os diretores de almas, sabem que não se pode, sem perigo, afastar-se neste negócio das regras da prudência e da sabedoria cristã.

Mas, onde encontrar estas regras?

Onde tomar uma idéia justa dos estados de vida?

Não pode ser, naturalmente, nas máximas do mundo, mas sim na Sagrada Escritura, na Tradição católica, nos escritos dos Santos Padres e dos mestres da vida espiritual. Hoje em dia, é certo, ha muitos livros e brochuras que tratam do assunto; porém, porque escondem a verdade - fazem-no com uma superficialidade que desconcerta e, às vezes, com sérios desvios da verdade teológica, escriturária e patrística.

Ha muitos erros a respeito da vocação, porque os escritores, às vezes, não querem desagradar a seus leitores, ou querem adaptar-se às opiniões correntes.

É um mal.

A verdade não se adapta, nem verga. Somos nós que devemos nos adaptar a ela.

Somos nós que devemos vergar e dobrar o joelho e a fronte diante de seu sceptro immortal .

- Veritas Do mini manei in aeternum (Ps116,2).

O meu fim não é de exortar a tal ou tal estado de vida; nem sequer de protestar contra certas ideias contrárias à doutrina verdadeira, as quais correm o mundo, mas expôr simples e conscienciosamente a doutrina católica ensinada pelos grandes mestres.

Sto. Tomás; Suarez e Santo Afonso nos fornecerão a base doutrinal do assunto.

III - Existe uma vocação determinada?

Como de costume, tomemos logo o assunto pela base e de frente.

Que é a vocação? haverá uma vocação determinada para cada pessoa? haverá obrigação de seguir esta vocação?

Três perguntas de longo alcance, que correspondem já às perguntas de minha consulente.

A vocação é uma realidade, e faz parte da providência divina.

Como vimos no estudo da providência, Deus toma conta de todas as criaturas, pequenas e grandes; nada pode subtrair-se a seu domínio, a seu governo, a seus cuidados.

E não somente Deus toma conta de todos os seres pela providência geral, mas ele toma conta, em particular, de cada homem, de cada faculdade deste homem, e em consequência do caminho que este homem deve trilhar.

Se Deus ocupa-se da direção interna do homem, de seu destino, de sua felicidade, é natural que ele marque para cada um o caminho que deve seguir, para não romper a admirável harmonia que resplandece nas obras divinas.

Percorrendo a Sagrada Escritura, ficamos admirados em ver o carinho com que Deus prevê tudo, provê a tudo, e indica a cada um o caminho a seguir.

Ele escolhe seus sacerdotes, os juízes, os príncipes do povo, punindo rigorosamente aqueles que se atrevem a usurpar funções que não lhes são próprias. "Não sois vós que me escolhestes, mas fui eu quem vos escolhi a vós, diz ele (Jo15,16).

Numa única frase, o divino Mestre esclarece esta doutrina: - Toda a planta, que meu Pai celestial não plantou, será arrancada pela raiz (Mt15,13).

Quando, após a ascensão, os apostolas trataram de eleger um substituto para o traidor Judas, dirigiram a Deus esta prece: Tu, Senhor, que conheces os corações de todos, mostra-nos, destes dois, o que escolheste (At1,24).

É prova desta vocação especial o exemplo de Ciro, anunciado por Isaías (55,1-3), antes que aparecesse no mundo, nomeando-o pelo próprio nome, e predizendo seus futuros triunfos.

É um exemplo frisante como Deus predestina os homens à carreira própria que devem seguir, e às obras que devem executar.

Eis o que diz o Senhor a Ciro, meu ungido, a quem eu tomei pela mão, para lhe sujeitar ante a sua face as nações, e fazer voltar as costas aos reis, e abrir diante dele as portas, sem que nenhuma lhe seja fechada.

Eu irei diante de ti, e humilharei os grandes da terra; arrombarei as portas de bronze, e quebrarei as trancas de ferro.

E dar-te-ei tesouros escondidos e riquezas aferrolhadas, afim de que saibas que eu sou o Senhor, o Deus de Israel, que te chamou pelo teu nome (Is55,1-4).

Esta profecia foi executada ao pé da letra pelo fundador do império persa, Ciro, 400 anos antes de jesus Cristo.

IV - Haverá obrigação de segui-la?

Obrigação rigorosa, sob pena de desviar-se do caminho traçado por Deus, e privar-se dos auxílios aí predispostos por Ele, e até, talvez, expondo a sua eterna salvação.

De fato, acreditando na providência divina, devemos acreditar que Deus traça para cada homem o caminho que ele deve seguir na terra.

Não é mister que haja uma revelação particular que lhe revele o seu destino, mas Deus, pelas inclinações que dispõe na alma, e pelas condições exteriores com que o cerca, faz-lhe sentir claramente por que caminhos deve dirigir os seus passos.

É o conjunto destes atrativos interiores e destas circunstâncias exteriores que constitui e manifesta a vocação.

O essencial para uma criatura é de estar em seu lugar no mundo, como é essencial para uma roda de relógio ocupar o lugar que lhe é próprio e destinado.

Daqui segue-se" que a vocação é um negócio capital, e este negócio é o principio de uma vida feliz ou infeliz.

No caminho da vida, encontramos obrigações, perigos, sofrimentos; a cada volta da estrada, Deus prepara-nos a luz, a força e a consolação de que precisamos.

Tomando um caminho errado, que não é aquele que nos preparou a providência, ficamos entregues à nossa fraqueza, às nossas trevas e à solidão.

Antes de correr, diz Santo Ambrósio, escolhe bem o caminho.

São Paulo nos adverte, como Santo Ambrósio, de bem examinar a nossa estrada.

Irmãos, examinai bem a vossa vocação, diz ele (1Cr1,26).

É necessário, continua ele, que cada um persevere na vocação, para a qual foi chamado (1Cr7,20).

Provada esta verdade básica, que Deus marcou o nosso lugar neste mundo, podemos tirar dela duas conclusões, que convém examinar atentamente.

V - Felicidade e salvação

Esta obrigação pode resumir-se nos dois principias seguintes, sendo ambos a negação da asserção afirmativa.

Fora de nossa vocação seremos infelizes neste mundo.

Uma simples comparação nos fará compreender uma tal asserção.

Uma pessoa dá um passo em falso, cai e desarticula o braço: - é uma luxação.

A consequência é inevitável. Impossibilidade de mover o braço sem uma dor lancinante; e assim ficará até remeter o osso em sua cavidade própria.

Nada há de quebrado; é uma simples deslocação.

É a imagem de uma pessoa que está fora de sua vocação: - é uma luxação espiritual. Não há quebra, nem destruição; é urna simples deslocação. Deus lhe tinha preparado o logar próprio; saiu fora deste lugar, está fora de sua vocação.

Tal pessoa está, assim como o braço, numa situação falsa e deste modo dolorosa.

Ela tem talentos, mas não pode aproveitá- los.

Ela tem deveres, mas não está preparada para cumpri-los.

Ela tem tentações, mas não está armada para vencê-las.

Ela sofre por não estar em seu lugar, e ela faz sofrer.

É a desordem, é o mal-estar . é a infelicidade.

Quantas pessoas há que são infelizes, porque não estão em sua vocação.

O segundo princípio é mais terrível ainda: Fora de nossa vocação, a nossa salvação está seriamente comprometida.

A nossa vida é a preparação à eternidade.

Há uma relação necessária entre os dois: Tal vida, tal morte, tal eternidade.

Estando no lugar marcado por Deus, encontramos nele, ao lado dos deveres de estado, adaptados aos nossos talentos, as graças para cumpri-los, e a graça facilita tudo, suaviza tudo.

Fora deste caminho, encontramos deveres, talvez não proporcionados com os nossos talentos, e Deus não tem obrigação de dar-nos as graças próprias para cumpri-los.

Não exageremos. Em qualquer condição honesta o homem pode salvar-se, pois tem sempre à sua disposição a oração, que pode comunicar-lhe as graças necessárias, e os sacramentos que são fontes de força e de generosidade.

Uma pessoa fora de sua vocação tem estes recursos; porém não basta tê-los; é preciso fazer uso deles; e aqui quantas dificuldades se apresentam!

Quem não tiver a generosidade de seguir o caminho que Deus lhe marcar, como terá a coragem de afastar os perigos, de reagir contra o ambiente contrário que o cerca, de recorrer aos meios de santificação?

A experiência é de todos os dias. Fora de sua vocação, a salvação é possível, porque Deus nunca abandona quem a Ele recorre; porém esta salvação corre perigo, é difícil, está seriamente comprometida.

VI - Meios de conhecer a vocação

É, pois claro, que cada um deve seguir a vocação para a qual Deus o destina, tanto para alcançar a felicidade neste mundo, como para obter a salvação eterna.

É uma questão fundamental.

Para abraçar a tal vocação é preciso conhecê-la.

Para conhecê-la, é preciso refletir, consultar, e, sobretudo, rezar.

São três elementos necessários para conhecer a vontade divina a nosso respeito.

A oração é a primeira necessidade. Sendo Deus que nos chama, é Deus ainda quem nos deve mostrar o caminho.

Senhor, ensinai-me a fazer a Vossa vontade, porque sois o meu Deus, dizia o salmista; mostrai-me o caminho que devo trilhar, porque elevei a minha alma até vós (Ps142,10,11).

Devemos consultar aqueles que podem orientar-nos na escolha, e exclarecer as nossas dúvidas.

Aqui, porém, há grande perigo. O Espírito Santo nos avisa de não consultar os insensatos, pois só podem amar o que lhes agrada (Ec8,20), nem tratar de santidade com um homem irreligioso, nem de piedade com um ímpio (Ibid.37,12).

"Quando se pede um conselho, diz Santo Ambrósio, é preciso dirigir-se a uma pessoa que se recomenda pela probidade de sua vida, pelas suas virtudes, pela sua benevolência na provação, e pela pratica da sobriedade... porque quem não sabe dirigir a sua própria vida, como poderá dirigir a vida dos outros?"

Em terceiro lugar, devemos refletir.

É só deste ponto que quero tratar aqui. A reflexão é o exame próprio para conhecermos a vontade de Deus.

Para conhecer a vocação, é necessário concentrar a atenção sobre dois pontos, que são as pedras de toque de toda vocação: a aptidão e o atrativo.

Deus manifesta a cada um a sua vocação por meio destes dois elementos.

A aptidão é um fator bastante complexo, que depende da família, do temperamento, da inteligência e do coração.

O atrativo, por sua vez, é, às vezes, de difícil averiguação, porque apresenta-se em degraus variáveis e acompanhado de diversas inclinações secundárias que suplantam, às vezes, ou pelo me­ nos abafam o atrativo verdadeiro.

Procuremos lançar um raio de luz sobre estas questões tão importantes e tão ignoradas.

Talvez que estas simples noções servirão para orientar umas almas no caminho da vida, e assegurar-lhes, deste modo, a felicidade e a salvação.

VII - A aptidão e o atrativo

Há, em muitas almas, uma duvida insolúvel.

Não podem decidir-se.

Diante delas o horizonte abre os seus caminhos, porém elas, inexperientes e tímidas, hesitam e ficam sempre hesitando.

A hesitação, filha da duvida, é um verme roedor que paralisa, e, muitas vezes, corta pela raiz a árvore da paz e da felicidade.

Que é que Deus quer de nós?

Diante dos olhos abrem-se os três estados de vida cristã conhecidos: o casamento, a virgindade no mundo, a vida religiosa.

É tempo de escolher.

Escolhamos!

Examinemos primeiro o atrativo.

É uma parte da voz de Deus, da consciência e do dever.

Que é o atrativo?

O atrativo é uma espécie de desabrochamento de nossas qualidades morais, encontrando seu objeto próprio.

Toda qualidade é uma força.

Toda força procura, por si mesma, entrar em ação.

O atrativo é o sentimento desta necessidade, a tendência para o objeto, que pode corresponder-lhe.

Uma certa satisfação acompanha o atrativo; a satisfação dá a perfeição ao ato, e o desenvolvimento à faculdade: - ela será no céu a ultima evolução de nosso ser.

Este atrativo não é a inclinação sensível, ou de sentimento, que alguém pode experimentar em frente das vantagens materiais de um estado; mas, sim, a inclinação refletida, que se pode chamar o atrativo da razão, diante de um ideal de vida santa, que nos levará ao céu com mais segurança.

Não é, pois, nem o entusiasmo da piedade, nem o anelo de uma alma sensível, nem o enlevo de um coração amoroso, nem o ardor de uma imaginação ardente; é a convicção firme, estável, da razão que vê no estado a abraçar um meio de adquirir a felicidade na terra e no céu.

É preciso que este atrativo não se limite aos interesses mundanos, porque, neste caso, não passaria de grosseiro egoísmo.

Deus, em sua sabedoria infinita, dando o atrativo, concede ao mesmo tempo as qualidades exigidas, de modo que o atrativo e a aptidão devem necessariamente corresponder-se, completar um ao outro.

Pode acontecer, sem dúvida, que Deus peça, às vezes, coisas inteiramente contrárias aos nossos gostos, mesmo sobrenaturais, porém, neste caso, Ele deposita no fundo da alma a santa paixão do sacrifício, que é mais do que um atrativo natural; é o heroísmo do amor, heroísmo que ultrapassa o atrativo, como o amor de Deus ultrapassa os sentimentos da natureza.

O atrativo é, pois, a inclinação racional que nos apresenta a felicidade num estado de vida.

A aptidão são as qualidades necessárias para exercer os deveres do estado escolhido.

Se alguém sente o atrativo para um estado, para o exercício do qual não tem aptidões necessárias, conforme o juízo de pessoa prudente, deve considerar este atrativo como um simples efeito da imaginação.

E se alguém, tendo aptidões necessárias, não sentir nenhum atrativo, deve recorrer também ao juízo de pessoas prudentes, para examinar se a falta de tal atrativo, no caso particular, seja um impedimento.

Convém notar, de fato, que o amor supera o simples atrativo e pode, como tal, substituí-lo.

Assim, para os mártires.

Talvez sentissem eles pouco atrativo para os sofrimentos do martírio; porém o amor de Deus, substituindo e elevando a uma ordem superior o simples atrativo, comunicou-lhes uma força e um entusiasmo que o atrativo não lhes podia dar.

Nas coisas da vida natural, o atrativo, entretanto, não deve faltar, pois sem ele os atos, em vez de serem dirigidos ao fim pelas forças vivas da natureza, seriam atos mandados; e tais atos não se sustentam, senão por forças continuadamente renovadas.

E onde encontrariam eles estas forças?

A prática da religião as pode dar; a natureza não pode. Seria, pois, expôr-se ao desgosto, ao aborrecimento, à contrariedade e, às vezes, ao desespero.

VII - Os dois caminhos

Após estas considerações, devemos elevar o olhar e fixar de frente o ideal de nossa vida, pois este ideal deve formar, para nós, a felicidade na terra e a felicidade no céu.

Examinemos aqui, de perto, um ponto importante da vida cristã, geralmente bastante mal entendido.

Quero tratar aqui dos estados de vida cristã.

Recorramos ao Evangelho, que nos vai dar toda a explicação desejada.

Lemos no Evangelho de S. Mateus o seguinte fato: E eis que aproximando-se de Jesus um jovem, disse-lhe: Bom Mestre, que bem devo eu fazer para alcançar a vida eterna?

Jesus respondeu-lhe: por que me interrogas acerca do que é bom? Um só é bom: Deus; porém, se queres entrar na vida, guarda os mandamentos.

Quais? perguntou ele.

E Jesus lhe disse: Não matarás; não cometerás adultérios; não roubarás; não dirás falso testemunho; honra a teu pai e a tua mãe e ama teu próximo como a ti mesmo.

Disse-lhe o jovem: Eu tenho observado tudo isso desde a minha mocidade; que me falta ainda?

Jesus disse-lhe: Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens e dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu e depois vem e segue-me (Mt19,16-19).

Eis uma página divina que deve ser mais conhecida do que é, porque, abrindo o horizonte da vida cristã, mostra à mocidade até onde pode elevar-se, e onde deve colocar o ideal da sua vida.

Esta passagem indica-nos os dois ideais de vida cristã, em outros termos, os dois caminhos:

1°. - o da salvação.

2°. - o da perfeição.

A palavra de Jesus Cristo é positiva e luminosa.

O jovem pergunta-lhe o que deve fazer para salvar-se.

A resposta é simples: Guarda os mandamentos.

É o caminho único da salvação.

É o caminho dos simples fiéis. Sua vida é designada sob o nome de vida comum, ou vida cristã, porque, por si mesma, não eleva as almas acima do comum e não exige delas senão o rigorosamente necessário para salvar-se, ou a observância dos mandamentos.

Ora, o jovem de que fala o Evangelho era bom, piedoso, e desde a infância tinha observado a lei de Deus.

Ele aspira a coisa mais alta, e por isso pergunta ao divino Mestre se, além disso, não é possível fazer mais.

Jesus vai dar-lhe a resposta desejada, não mais sob forma de mandamento que obriga rigorosamente, mas sob forma de conselho, de convite, que não obriga em todo o rigor, mas que é o grande caminho da perfeição... o meio de alcançar a santidade.

Se queres ser perfeito, diz ele, vai, vende o que tens, e dá-o aos pobres e depois vem e segue-me.

A' primeira pergunta Jesus responde: Se queres salvar-te.

A' segunda consulta ele responde: Se queres ser perfeito.

Salvar-se simplesmente e ser perfeito sublimemente são os dois caminhos que se estendem diante dos olhos de todos os homens.

O primeiro é de preceito.

O segundo é de conselho.

Vida cristã e vida religiosa

Eis as duas vidas · que jesus Cristo propõe àqueles que o querem seguir:

1. - A vida cristã, pela observância dos mandamentos.

2. - A vida religiosa, pela observância de outras condições que jesus Cristo enumera e que se chamam conselhos evangélicos.

Estas condições são:

1. - O desprezo das coisas terrestres: Vai, vende o que tens e dá-o aos pobres.

2. - A obediência: Vem, segue-me, obedecendo.

3. - A castidade. É a consequência dos dois primeiros conselhos. Com efeito, como alguém poderá vender tudo o que tem e seguir a jesus Cristo, estando comprometido pelo casamento, e tendo obrigação de família? Seria impossível!

Eis, pois, os três conselhos dados por Nosso Senhor, como sendo o caminho da perfeição.

A instituição onde se obriga a praticar estes três conselhos chama-se a vida religiosa, ou vida consagrada a Deus.

Esta instituição, cuja essência é a pratica destes conselhos, dados por jesus Cristo, é, pois, uma instituição divina.

Em outra passagem do mesmo evangelista o Salvador enumera os sacrifícios que tal vida exige, e as recompensas que lhe são reservadas: Todo o que deixar a casa, ou os irmãos, ou as irmãs, ou o pai, ou a mãe, ou a mulher, ou os filhos, ou os campos, por amor do meu nome, receberá o cêntuplo, e possuirá a vida eterna (Mt19,29).

Para a vida cristã ele exige apenas a observância dos mandamentos, em qualquer condição ou estado, seja como jovem, casado, viúvo pobre, rico; - é para todos.

Quando se trata da vida de perfeição, o divino Mestre é mais exigente, e seus conselhos ultrapassam muito os mandamentos, como as recompensas ultrapassam as promessas da simples salvação.

As exigências são:

1 . - Deixar a casa e a família para consagrar-se a Deus.

2. - Renunciar ao matrimônio: deixar mulher e filhos, para viver só para Deus.

Quanto à recompensa deste sacrifício, ela é única; em parte nenhuma do Evangelho Jesus Cristo formulou recompensa igual a esta: o cêntuplo nesta vida, e a vida eterna na outra.

Notem bem estas distinções, feitas pelo Salvador.

Para as pessoas do mundo, a salvação consiste na observância rigorosa dos mandamentos As almas religiosas, voando mais alto, devem ser, primeiro: perfeitos cristãos; e em seguida procurar a maior gloria de Deus pela prática dos três grandes conselhos: pobreza, obediência e castidade.

Os fiéis no mundo estão num estado de vida cristã; as almas religiosas estão num estado de perfeição, isto é, num gênero de vida estabelecido e organizado para praticar oficial e regularmente os conselhos evangélicos.

Um estado de vida supõe necessariamente uma vida estável, que não se possa revogar vontade.

O estado religioso exige, pois, um laço que obriga continuamente a viver religiosamente e perfeitamente. Este laço são os votos de prática estes três conselhos.

Jesus Cristo deu muitos conselhos; sem dúvida, porém, os três aqui citados encerram e resumem toda a perfeição, por serem opostos à tríplice concupiscência de que fala S. João: concupiscência da carne, dos olhos e orgulho da vida (1Jo2,16).

A pobreza desapega dos bens terrestres.

A obediência exige a dependência de nossa vontade.

A castidade impõe a renuncia aos prazeres sensuais.

X - Conclusão

Terminemos aqui as considerações sobre a vocação. Muito haveria a dizer sobre o assunto, porém é antes matéria de um livro do que de resposta a consultas.

As considerações permitem agora dar uma resposta clara e precisa às perguntas da digna filha de Maria.

Se há fatalidade?

Não! a fatalidade não existe; tudo neste mundo é dirigido pela providência divina, ao ponto que nem um cabelo cai de nossa cabeça, sem a vontade do Pai celeste (Mt.10,30).

Se há desvio nos acontecimentos?

De novo, não. Tudo acontece como foi previsto e marcado por Deus. Convém notar, entretanto, que as coisas acontecem, não porque Deus assim marcou - o que suprimiria a liberdade do homem - mas Deus marcou as coisas, porque sabia que assim aconteceriam.

Prever é o nosso modo de falar.

Deus não prevê; ele vê; tudo é presente para ele, havendo apenas, para nós, passado e futuro, isto é, o tempo.

O tempo é criado por Deus. ele está acima e fora do tempo, porque é o Ser infinito, imutável, enquanto o tempo é uma mudança continua, é uma sucessão ininterrupta de momentos.

A morte.

A morte está marcada para cada um de nós, e morreremos nesse dia, infalivelmente, porque Deus não pode enganar-se.

Morreremos, não porque Deus o previu, mas porque Deus sabia que em tal hora haveríamos de morrer.

E assim todas as demais coisas?

Sim, sem excepção nenhuma.

Um estado a tomar já está notado?

Perfeitamente. Ao nascer, todos os homens têm o seu destino marcado, porque este destino, futuro para nós, é presente para Deus. Ele vê tudo, o uso e abuso da liberdade, e vendo, marca o resultado de tudo, sem contrariar a nossa liberdade. Antes mesmo de nascermos, Deus nos conhece. Conhece-nos desde a eternidade, e destina cada um de nós para a vocação própria.

Uns seguem esta vocação . outros desviam-se dela . outros perdem-na...

Deus vê tudo, e conhece o resultado de tudo, com peso e medida.

E assim sucederá!

Daí a importância de procurarmos conhecer a vontade divina.. a nossa vocação.. pelo atrativo e pela capacidade, como o expliquei acima.

E uma vez conhecida a nossa vocação, abracemo-la com firmeza, perseverando nela até ao fim, para receber a recompensa eterna.

E Deus já marcou esta recompensa.

Cabe a nós merecê-la e conquistá-la.

Deus, chamando-nos a um estado de vida, prepara-nos todos os meios necessários para cumprirmos os deveres deste estado e de encontrarmos nele a salvação e a santidade: - termo de toda vocação.

DECIMA PRIMEIRA POLÊMICA

Salvação e santificação

OU CONSIDERAÇÕES SOBRE OS ESTADOS DE VIDA

julgava ter bastante elucidado o caso da vocação, mas eis que, logo depois da publicação deste assunto, chega-me às mãos outra consulta, relacionando-se com a mesma verdade, e pedindo que, do ponto básico já explicado, tirasse as conclusões praticas para a orientação das almas.

1 - A consulta

Uma outra filha de Maria escreve-me, perguntando:

1. - O que é melhor: casar-se, ficar solteira no mundo ou entrar no convento?

2. - Como se pode conhecer que alguém tem vocação para um destes gêneros de vida?

3 - Em que e por que a vida religiosa é superior à vida de mãe de família?

4. - Há obrigação, em consciência, de seguir a vocação para um destes estados?

5. - Não é egoismo ou pusilanimidade afastar-se da sociedade para levar uma vida calma e tranquila no convento?

6. - Todos os estados não são igualmente agradáveis a Deus, dependendo a santidade apenas do fervor da pessoa?

Queira V. Rvma. desculpar a minha insistência, mas apreciei tanto a sua luminosa resposta a uma digna colega minha, filha de Maria, que desejava possuir mais umas noções sobre a mesma verdade, tanto para meu próprio governo, como para minhas amiguinhas, que conheço, e aspiram também a solução destas perguntas.

II - A resposta

De boa vontade respondo a esta consulta, antepondo-a a muitas outras, que ficam esperando a solução.

A consulta é, de fato, a continuação logica do que ficou tratado na questão da vocação.

Entremos, pois, plenamente no assunto, e perscrutemo-lo até ao fundo, mesmo contrariando certas ideias e opiniões contrárias, que correm o mundo e acham agasalho no espírito da mocidade.

A verdade é uma; e é esta verdade que quero fazer resplandecer em todo seu brilho e majestade.

A respeito de salvação e santificação há muitas ideias erradas, mal compreendidas, que convém endireitar e explicar nesta resposta. Procurarei fazê-lo com simplicidade e clareza.

Salvar-se e ganhar o céu, e não perder a sua alma; é fugir do mal e praticar o bem rigorosamente imposto.

Santificar-se é elevar-se acima do comum; não é somente fugir do mal, mas adquirir virtudes positivas, não rigorosamente exigidas.

Deste modo pode-se distinguir dois estados de vida.

1. - O estado comum, dos simples fiéis que observam os mandamentos da lei de Deus e da Igreja.

2. - O estado de perfeição, daqueles que se consagram a Deus, aplicando-se, além da observação supra, à pratica das virtudes e das obras cristãs de sua vocação.

Os primeiros pretendem salvar-se.

Os segundos aspiram a ser santos.

Os primeiros são bons operários.

Os segundos são artistas.

Os primeiros são bons católicos.

Os segundos são católicos fervorosos.

Compreende-se logo a diferença entre estas duas categorias.

III - O caminho do céu

O plano geral da salvação e da perfeição está esboçado e já bem indicado; convém agora entrar nos pormenores e na prática da vida de cada um destes estados.

Um velho missionário, pregando à mocidade, costumava dizer pitorescamente que havia três modos de ir ao céu: A pé, a cavalo, de automóvel.

E explicava a comparação pelo seguinte modo: Ir a pé: a viagem é certa, porém através de mil obstáculos e dificuldades, sob o calor do dia e no frio da noite, debaixo da chuva, e, às vezes, no meio da lama do caminho.

Chega-se ao termo, mas a caminhada é vagarosa e fatigante.

Ir a cavalo: a viagem é mais rápida, há menos perigos; evita-se a lama das estradas, os animais perigosos. Existem perigos, é certo, pode-se cair, o animal pode estrebuchar, pode cair até, porém, fora dos perigos inevitáveis, a viagem é menos fatigante, menos vagarosa, mais agradável e mais segura.

Ir de automóvel. É o ideal das viagens. Havendo boas estradas, a viagem é rápida, ficando-se ao abrigo do sol, da chuva e da lama. pode-se até adormecer de vez em quando; o automóvel continua a sua marcha; o chofer sobe, desce as montanhas, penetra nos vales, beira os precipícios, enquanto o viajante é carregado ao termo de seu destino.

Há, de certo, buracos no caminho, que ministrem ao viajante uma sacudidela, um sobresalto, porém, sem consequência e sem perigo.

Estes três modos de viajar são a imagem do modo de realizar a grande viagem da salvação.

- Viajar a pé é o casamento.

Viajar a cavalo, é guardar a castidade no mundo.

- Viajar de automóvel, é entrar na vida religiosa.

São os três estados de vida que se apresentam diante das aspirações ou tendencias da mocidade.

Temos de dizer umas palavras sobre cada um deles.

IV - O casamento

O casamento legítimo é um estado santo, abençoado por Deus, e por ele elevado à dignidade de sacramento.

Sendo um estado santo, é permitido abraçá-lo.

A palavra de São Paulo é conhecida: Aquele que casa a sua filha, faz bem. Não.. peca (1Cr7,37). Salvar-se-á pela educação dos filhos, se permanecer na fé e na caridade e na santidade, unidas à modéstia (1Tm2,15).

Este mistério é grande, mas eu o digo, em relação a Cristo e à Igreja (Ef5,32).

O matrimônio, pois, é bom, porque conserva o homem no dever e o preserva de cair em pecado.

São Tomás reduz a três as grandes vantagens do matrimônio: os filhos, a fidelidade, o sacramento.

O nascimento dos filhos, continua o doutor angélico, torna o matrimônio um estado santo (Suppl. q.49. A,4) - A mulher se salvará, diz o apóstolo, pela educação dos filhos.

A fidelidade é o laço que prende mutuamente o marido à sua esposa e a esposa a seu marido, pelo qual eles se dão um ao outro um direito que prometem nunca violar.

O sacramento é o laço conjugal indissolúvel, que nunca pode ser rompido.

Sendo o matrimônio um sacramento dos vivos, seria um sacrilégio recebê-lo, sem estar em estado de graça, donde a necessidade de confessar-se e de comungar antes de recebê-lo, para com ele receber a benção divina, tão necessária para a felicidade do lar.

Não é inútil lembrar que o matrimônio é um só: aquele que é contratado perante o ministro de Deus. O que chamam casamento civil, não é matrimônio ou casamento é um mero contrato, civil, perante a autoridade civil, tendo exclusivamente efeitos civis É uma garantia, um preservativo de grande utilidade para os bens dos casados, porém nenhum valor tem perante Deus e perante a consciência.

É preciso distinguir a lei divina da lei humana, e no dizer do Salvador: Dar a Deus o que é de Deus, e à autoridade civil (César) o que lhe pertence.

A lei moral depende de Deus; os bens materiais são salvaguardados pela lei civil.

V - O matrimônio obrigatório?

Umas perguntas e respostas completarão esta breve resposta.

O matrimônio é de preceito?

A teologia ensina que o matrimônio foi uma obrigação de direito natural, para nossos primeiros pais, depois da queda; porém, este preceito não obrigava senão no caso de necessidade de propagação ou de conservação da raça humana, como o preceito da esmola não obriga senão no caso da necessidade de um indivíduo: Tal é o ensino de Suarez (lib.IX.De cast. c.1).

O catecismo do concilio de Trento diz que a raça, tendo-se multiplicado, hoje não somente não há obrigação de casar-se, mas antes a castidade é soberanamente recomendada, e aconselhada pela Sagrada Escritura (De matr.14).

Dirão, talvez, que o matrimônio é um meio de evitar as quedas.

Não digo o contrário, mas faço notar que, além deste meio, há muitos outros meios de evitar as fraquezas.

Suarez é do mesmo sentimento.

Não admito, diz ele, que um homem possa estar exposto a um tal perigo moral de cair em faltas contra a castidade, que seja obrigado a casar-se, pois restam-lhe sempre os meios de fugir das ocasiões, de vencer as tentações pela oração, o jejum e outros remédios deste gênero (lib. IX,c.2).

Um filho ou uma filha são obrigados a obedecer aos pais, que querem obrigá-los a se casarem?

A opinião comum dos doutores é que não são obrigados, pois os pais, (fora de uma causa urgente) ultrapassam os seus direitos. Os pais devem orientar, dirigir, aconselhar os filhos neste passo importante, mas não devem obrigá-los, pois são os filhos que devem depois sustentar os encargos e as consequências do casamento e não os pais.

Por esta razão, os filhos não têm obrigação de lhes obedecer neste ponto peculiar.

Santo Afonso diz que um pai não pode, de nenhum modo, obrigar um filho a casar-se, se este filho pretende escolher um estado mais elevado, como são a castidade no mundo ou a vida religiosa (Teol. mor. 1.6-tr.6).

Fora de uns casos particulares, o matrimônio não é, pois, de preceito.

O ensino de S. Paulo, a esse respeito, é de uma luz meridiana. Citemos apenas este trecho: Se alguém julga que parece ser desonra, quanto à sua filha donzela, o ir-lhe passando a idade de casar, e que assim convém fazer-se lhe o casamento, faça o que quiser: não peca se casar.

Mas o que resolveu firmemente, dentro de si, não o obrigando a necessidade, mas podendo dispôr à sua vontade, e determinou no seu coração conservar virgem a sua (filha), faz bem.

Aquele, pois, que casa a sua virgem, faz bem, e o que não casa, faz melhor (1Cr7,36-38).

São Tomás faz o seguinte raciocínio: Ninguém tem direito à recompensa por ter violado um preceito.

Ora, uma recompensa especial, a auréola é devida às virgens.

Logo, o matrimônio não é de preceito (q.41,a,2).

VI - O matrimônio aconselhado?

O matrimônio será de conselho?

Deixo Santo Afonso responder a esta pergunta. O santo escreve a um jovem que o consultara sobre a escolha de um estado: "Quanto ao estado conjugal, não posso aconselhar, visto S. Paulo não aconselhá-lo a ninguém, a menor necessidade que haja em consequência das quedas habituais, o que, de certo, não existe para vós."

São Paulo, inspirado por Deus, disse de fato: Digo aos solteiros e às viúvas que lhes é bom para eles se permanecerem assim, como também eu; mas se não se contêm (guardando a castidade) casem-se; porque é melhor casar-se do que abrasar-se no fogo da torpeza (1Cr7,8,9).

Santo Agostinho faz sobre este texto a seguinte reflexão: "O apóstolo não diz que é melhor casar-se que guardar a castidade, pois a castidade é melhor, mas diz que é melhor casar-se, que cair em pecado, do modo que aconselha absolutamente a continência, como sendo melhor, e diz positivamente: Eu queria que todos vós fôsseis como eu (1Cr7,7), mas ele prefere o casamento ao pecado.

Mas, dirá talvez alguém, eu sinto vocação para o casamento, é a vontade de Deus, devo obedecer!

Será mesmo? Talvez!

Mas tal vocação não é de preceito; pode-se, pois, segui-la ou contrariá-la. Não há nenhum mandamento da lei de Deus ou da Igreja que a impõe.

Não é de conselho também, pois o apóstolo aconselha o contrario e só aconselha o matrimônio como meio de evitar o pecado, provando, deste modo, a superioridade da castidade sobre o matrimônio.

Tal vocação é, pois, uma simples, ou melhor, complicada inclinação natural.

O matrimônio sendo um estado santo, é geralmente permitido seguir uma tal inclinação, desde que se propõe um fim honesto, porém, convém fazer a distinção entre uma inclinação natural, entre um preceito, ou um conselho.

Não quero deprimir nem diminuir o matrimônio; é um estado santo, é um sacramento; mas isso não prova que entre os diversos estados não haja estados superiores, mais santos ainda e mais agradáveis a Deus. É esta verdade que quero salientar aqui.

O estado de pecado: é um estado lamacento.

O estado do matrimônio: é um estado santo.

O estado de castidade: é um estado mais santo.

O estado religioso: é um estado mais santo ainda, é a escola da santidade.

O estado sacerdotal: supera os outros pelo poder e a dignidade.

O estado episcopal: deve ser a santidade adquirida.

Há uma gradação natural, logica e fundamental entre estes diversos estados, que ninguém pode negar.

VII - Os fins do matrimônio

O assunto tratado seria incompleto, si não assinalássemos os fins do matrimônio.

Não basta sentir a inclinação para o matrimônio; é preciso também considerar o fim proposto e os motivos que determinam esta inclinação.

Seria um crime ligar-se pelo matrimônio excluindo os fins essenciais deste estado, ou com a resolução de não respeitar os deveres sérios e as leis sagradas.

Ora, o matrimônio, diz Santo Afonso, tem dois fins essenciais e intrínsecos, que são:

1. - O direito mutuo que os esposos dão um ao outro.

2. - O laço indissolúvel que os une.

Aquele que contraísse matrimônio, excluindo positivamente estes dois fins, não só pecaria, mas o seu matrimônio seria inválido (Theol. M.1.VI).

O matrimônio contém ainda dois outros fins intrínsecos, mas acidentais, que são: a geração dos filhos, e o remédio contra a concupiscência.

Tais fins são honestos, e um deles pelo menos deve ser desejado por aqueles que pretendem contrair matrimônio.

Os outros motivos, como beleza, riqueza, posição, não sendo maus intrinsecamente, não impedem a santidade do matrimônio, desde que não sejam contrárias ao fim do sacramento.

A Sagrada Escritura não censura Jacó por ter preferido Raquel a Lia, por causa de sua formosura.

Conta-se que um dia alguém consultou a Temístocles, para saber se era melhor casar a filha com um pobre virtuoso, do que com um rico sem virtude.

O general ateniense respondeu: "Em seu lugar, eu preferiria um homem sem dinheiro, do que dinheiro sem homem".

A mocidade hodierna não sabe elevar-se sempre à altura da sabedoria deste pagão.

VIII - O celibato

É o segundo estado de vida cristã. Estado sublime, caluniado pelos viciados, porque não sabem praticá-lo nem compreender as suas grandezas.

Para evitar mal entendidos, é preciso declarar logo que, no sentido cristão, celibato é sinônimo de continência, de castidade; celibato sem castidade é uma utopia.

A continência é, pois, a abstinência completa, no individuo normal, do exercício das funções sexuais.

Esta continência abrange o afastamento dos maus pensamentos, profanação da vida e do ato sexual.

Tal abstinência é possível. Não quero mais prová-lo aqui, fisiológica e psicologicamente, o que já fiz em outro livro (1).

Tratemos aqui o caso, perante a lei de Deus, as Escrituras e a consciência.

O celibato é passível.

Não pode haver dúvida, sob o ponto de vista fisiológico; está provado. Existe no homem um estímulo sexual, mas não existe nenhuma necessidade sexual.

Não havendo necessidade, o homem é livre de fazer ou de omitir, e sendo livre, ele é dirigido pela vontade, e não pela inclinação sensual.

É certo que, sem a graça de Deus, o homem, devido à decadência original, é incapaz de guardar por muito tempo a castidade, porém, pela oração e pelo afastamento dos perigos, o homem pode elevar-se a esta altura. E Deus não recusa esta graça a quem lha pede.

1) Cf. O Anjo das trevas, 15° Lampejo, onde o assunto é tratado com todas as suas minúcias e aplicações.

Deus não pode dar conselhos irrealizáveis.

Seria uma contradição.

Ora, a Sagrada Escritura está repleta de conselhos deste gênero.

O Salvador disse claramente: Ha pessoas que ficam forçosamente virgens; mas há também pessoas que abraçam voluntariamente este partido, para chegar com mais certeza ao reino do céu (Mt19,12).

E S. Paulo, interpretando a palavra do Mestre, conclui: É bom que o homem não toque mulher (1Cr7,1).

Digo . aos solteiros e às viúvas que lhes é bom se ficarem como eu (1Cr7,18).

Se alguém casar a sua filha, não peca...

mas se a conservar virgem, faz melhor (1Cr7,36,40).

Eis o que é bem claro; mas não é dado a todos, porque todos não recorrem aos meios necessários para conservar a castidade, os quais são: a oração e o afastamento dos perigos.

Jesus Cristo disse: Não são todos que compreendem esta palavra, mas somente aqueles a quem é dado (Mt19,11).

jesus Cristo recomenda a castidade, a continência, o celibato, pois estes termos completam-se mutuamente. O celibato cristão exige a prática da continência, e esta ultima qualidade lhe é essencial na significação religiosa.

IX - O celibato aconselhado

O celibato continente é, pois, possível, com a graça de Deus; mas é ele de preceito ou de conselho?

Não é de preceito, pois o matrimônio legítimo é um estado permitido, santo, e não existe nenhum preceito divino, que proíba o matrimônio, como não há nenhum preceito que obrigue a casar-se.

Mas fora dos preceitos temos os conselhos, e o celibato é de conselho, como sendo um meio eficaz de evitar o pecado e de agradar a Deus.

Escutem S. Paulo: Cada um, irmãos, permaneça diante de Deus no estado em que foi chamado. Quanto às virgens, não tenho mandamento do Senhor, mas dou conselho, como quem alcançou misericórdia do Senhor para ser fiel.

Entendo, pois, que isto é bom por causa da instante necessidade.. estás ligado a uma mulher?

Não busques desligar-te.

estás livre de mulher? Não busques mulher.

Mas se tomares mulher, não pecarás.

E se uma virgem se casar, não peca; todavia estes terão tribulação da carne; e eu quisera poupar-vos delas.

Ora, eu quero que vós vivais sem inquietação. O que está sem mulher, está cuidadoso das coisas que são do Senhor, como há de agradar a Deus; mas, o que está casado, está cuidadoso das coisas que são do mundo, como há de dar gosto à sua mulher; e está dividido (1Cr7,24-34).

E São Paulo termina esta longa instrução com as seguintes palavras que resumem tudo: Case-se com quem quiser, contanto que seja no Senhor, (não só no civil), porém será mais feliz se permanecer assim, conforme o meu conselho (no celibato) e julgo que também eu tenho o espírito de Deus (1Cr7,40).

Estes textos são claros e positivos. O matrimônio é permitido, mas no Senhor; o celibato, porém, é melhor, é mais perfeito, é mais agrádavel a Deus.

O matrimônio é permitido, sem ser aconselhado, senão em caso de necessidade; o celibato é sumamente aconselhado, pertencendo aos conselhos evangélicos, e tendo sobre o matrimônio a prestância e o mérito de uma virtude positiva, enquanto o matrimônio, embora sendo um estado santo, não pode figurar como virtude.

O celibato, além de ser igualmente um estado santo, entra na categoria das virtudes, desde que são observadas as suas condições essenciais, já mencionadas, que são o afastamento dos perigos, dos prazeres e dos atos sexuais e sensuais, pela pratica da castidade perfeita ou da virgindade.

Esta doutrina, muitas vezes mal entendida, parece quase uma novidade para certas pessoas; entretanto ela é de fé. solenemente definida pelo concílio de Trento.

X - A doutrina da Igreja

Não será inútil provar bem esta ultima asserção, para pôr logo uma barreira às ideias protestantes, modernistas e materialistas, que combatem este dogma da Igreja católica.

O catecismo do concilio de Trento diz claramente: A virgindade é soberanamente recomendada e aconselhada a cada um, na Sagrada Escritura, porque ela é mais vantajosa e inclui em si mesma mais perfeição e santidade que o estado de matrimônio (De Matrim. no.1).

O mesmo concílio chega a lançar o anátema contra quem sustentasse o contrário: Se alguém disser que o estado conjugal deve ser preferido ao estado de virgindade ou de celibato, e que não seja melhor e mais feliz guardar a virgindade ou o celibato, que ligar-se pelo matrimônio, seja anátema (Sess. 24, Can.10).

"Sustentar tal verdade, diz muito a propósito S. jerônimo, não é desprestigiar o matrimônio e preferir-lhe a virgindade (1).

A prata não deixa de ser prata, por causa do ouro ser mais precioso que ela.

Não é fazer injúria à árvore, em preferir os seus frutos às folhas e às raízes.

"Do mesmo modo que a árvore produz frutos, assim o matrimônio produz o celibato", diz o mesmo S. jerônimo (Contr. Jovin.1,1)" e mais se estima o celibato, maior honra se tributa ao matrimônio, que dá origem às virgens (Ad Eustach. 1,22).

S. João Crisóstomo compara os esposos a dois escravos fugitivos, que uma mesma peia acorrenta estreitamente. Não podem senão dar uns passos, porque os movimentos de um incommodam os do outro (De virgin. c.41).

"É certo, diz Santo Afonso, que a mulher casada podia merecer muito, pela própria privação da felicidade de orar ao Senhor, suportando com paciência a servidão a que está reduzida... Ela podia, mas em meio de tanta preocupação, ser-lhe-ia difícil ter esta resignação; mas oxalá as mulheres casadas não merecessem outra censura do que a de serem impedidas de realizar os seus desejos de devoção!. Oh! quantas ocasiões há de perder a Deus (Verd. esp.).

Do que precede, pode-se já compreender a razão por que a Igreja exige que seus ministros ou sacerdotes prometam solenemente guardar a continência ou celibato perpétuo.

1) Ad Eustochium, 1,1, e. 7. - Nem podem acusar-nos deste desprestígio, pois o que escrevemos no livro "Luz nas trevas", prova em que consideração temos este Sacramento, defendendo a sua santidade e indissolubilidade contra os agressores da moral cristã.

A virtude de castidade é, pois, um ato grandemente meritório; o voto de guardá-lo é mais meritório ainda, pois, além do mérito da virtude de castidade, tem este outro mérito da virtude de religião, que vem sancionar e firmar a castidade.

A virgindade é uma auréola gloriosa, composta de sete privilégios únicos, cada um mais glorioso que o outro. Citemo-los sem comentários:

1. - As virgens formam a família angelical que jesus Cristo veio fundar neste mundo.

2. - A virgindade foi procurar no céu o modelo que quer imitar na terra.

3. - A virgindade é um holocausto perfeito, consagrando a Deus o corpo e a alma.

4. - A virgem é a esposa de Cristo; e nada pode igualar a esta dignidade.

5. - A virgem é a predileta do Senhor, pois o Senhor ama a quem o ama; a virgem, preferindo jesus Cristo a todos os homens, o Senhor deve amá-la acima das outras criaturas.

6. As virgens são a gloria do cristianismo . Só o cristianismo tem virgens; nenhuma seita religiosa soube cultivar este estado.

7. - As virgens terão no céu uma recompensa e uma coroa especial, formando o préstito próprio do Cordeiro divino.

Eis as admiráveis glorias da virgindade.

É o bastante para elevar os pensamentos daqueles que ainda não escolheram um estado de vida, e mostrar-lhes que acima do estado comuns há estados mais belos, mais meritórios, mais agradáveis a Deus; e, entre estes estados, ocupa Jogar saliente a virgindade, guardada por amor de Deus, como simples virtude ou com voto particular, sendo o voto público reservado à vida religiosa.

XI - Conclusão

Como conclusão, quero responder simplesmente às perguntas da digna filha de Maria que quis consultar-me a respeito destas questões.

Não deixo, neste capítulo, a solução completa de todas as questões, reservando o resto, devido à sua importância, para o seguinte capítulo.

1. - O que é melhor? Casamento para quem quer simplesmente salvar-se, sem grandes sacrifícios.

Solteiro ou casto, para quem deseja agradar ao Senhor.

Religioso para quem quer ser santo.

2. - Os signais estão indicados: inclinação racional, aptidão e consulta a um sacerdote prudente: o que constitui a vocação.

3. - Por ora, direi apenas que o celibato é superior ao matrimônio, porque afasta mais do perigo, faz praticar melhor a virtude, une mais inteiramente a Deus, e recebe mais belas recompensas da parte de Deus.

4. - Sim; há obrigação de seguir a sua vocação.

5. - Não; a vida de castidade e a do convento não tem por fim levar uma vida mais calma, e, sim, mais perfeita e mais santa.

6. - Não; todos os estados não são igualmente agradáveis a Deus.. O estado é um grande meio de santificação.

Os diversos parágrafos deste capítulo resolvem plenamente as diversas perguntas feitas.

Podemos resumir tudo, dizendo que: - Deus destina a cada homem o caminho que deve seguir, preparando-lhe, neste caminho, os auxílios necessários para salvar-se.

- O homem deve, pois, seguir este caminho, sob pena de ficar privado destes auxílios.

A vocação ou vontade de Deus manifesta-se pelo atrativo, pela capacidade e pelo conselho de um sacerdote prudente, como ministro de Deus.

- O homem não deve seguir cegamente o simples atrativo natural, mas o atrativo racional, religioso, que lhe dita a consciência e que lhe confirma o ministro de Deus.

- O estado comum é o casamento, sendo lícito e permitido por ser um estado santo.

- O estado mais perfeito é a castidade guardada no mundo, sem ou com voto; este estado é de conselho.

- O estado de perfeição, a realizar, é a vida religiosa, que, além da castidade, oferece todos os meios de santificação, pelo afastamento dos perigos, a prática das virtudes, a união com Deus, pelos sacramentos e pela oração.

Resta-nos apenas explanar este último estado, para nada faltar à nossa explicação do grande assunto da vocação.

DECIMA SEGUNDA POLÊMICA

O estado religioso

OU ESCOLA DA PERFEIÇÃO

Para que a resposta à digna consulente seja completa e capaz de orientar a quem sinceramente procura a perfeição e a glória de Deus, é preciso tratar aqui do estado religioso, infelizmente muito desconhecido ou conhecido apenas através dos preconceitos e dos ataques dos inimigos da Igreja.

Umas elucidações a este respeito serão grandemente instrutivas e práticas, pois correm a este respeito erros grotescos e deprimentes.

Estudemos, pois, este assunto com toda imparcialidade, mas toda firmeza, tomando por única base a doutrina oficial da Igreja e de seus doutores.

1 - Origem do estado religioso

O estado religioso, no que o constitui essencialmente, foi instituído imediatamente por jesus Cristo, de modo que é de direito divino, não no sentido que Deus obrigue a abraçá-lo, mas o aconselhe.

Jesus Cristo, de fato, como vemos no Evangelho, instituiu duas classes de vida cristã:

1. - A vida comum, para cumprir os mandamentos da lei de Deus.

2. - O estado religioso, para fazer-se observar os grandes conselhos evangélicos.

Temos tudo isso claramente indicado no Evangelho, na passagem já citada.

O Salvador diz: Se queres entrar na vida, guarda os mandamentos (Mt19,14). É a vida comum.

Se queres ser perfeito, vai, vende tudo quanto tens, e dá-o aos pobres . depois vem e segue-me (Mt19,21). É o estado religioso ou estado de perfeição a adquirir.

Eis claramente indicados o estado cristão, para entrar na vida, e o estado religioso para atingir a perfeição.

Estes dois estados não supõem que esteja jà adquirido o respectivo fim: vida e perfeição, mas são meios para adquirí-lo.

A observação dos mandamentos é o meio de adquirir a vida eterna; a observação dos conselhos é o meio de adquirir a perfeição.

Esta distinção é essencial, para se compreender que o estado não dá nem a vida eterna, nem a perfeição, mas que são meios necessários para adquirí-las.

pode haver, no estado comum de vida cristã, almas mais fervorosas e até mais perfeitas do que no estado de perfeição, porque as pessoas são distintas do estado, o que não impede que tal estado seja mais apropriado e mais útil para adquirir o fim do que o outro.

A vida religiosa é um estado de perfeição, para os que o abraçam, mas só dará a perfeição aos que cumprem todos os deveres deste estado.

O estado religioso é de conselho e não de preceito (pelo menos em regra geral) e para abraçá-lo é preciso ter vocação sobrenatural: isso é, o atrativo racional, a capacidade e o convite da graça divina.

Chama-se o estado religioso e estado de perfeição a adquirir (status perfectionis adquirendae) para distinguí-lo do episcopado, que é um estado de perfeição a comunicar (status perfectionis exercendae).

Em virtude de seu cargo, o bispo deve trabalhar para aperfeiçoar os outros, o que supõe, de sua parte, uma grande perfeição pessoal. O religioso trabalha para adquirir a perfeição e o bispo trabalha para comunicá-la aos outros.

II - Instituição divina

Convém assinalar aqui uns erros fundamentais que correm a respeito desta instituição.

Certos autores fazem acreditar que o estado religioso é uma obra humana, que remonta apenas ao século terceiro.

É um erro gravíssimo.

O estado religioso é de origem divina.

É fácil prová-lo.

Deve-se distinguir em toda organização a parte essencial e a parte acidental.

Ora, tudo o que foi instituído essencialmente por Jesus Cristo é obra divina, embora a Igreja, depositária da autoridade divina, tenha dado a estas instituições uma forma acidental, mais expressiva e mais determinada do que tinha no princípio.

Ninguém contesta, nem pode contestar que os sete sacramentos são de instituição divina. É dogma de fé.

Entretanto, Jesus Cristo não indicou as cerimônias acidentais, nem do batismo, nem da confirmação, nem da penitência, nem de nenhum outro sacramento.

Ele indicou a matéria e a forma, ou parte essencial, deixando à sua Igreja o cuidado de enquadrar esta parte nas cerimônias acidentais, que mais combinam com a dignidade, os efeitos da instituição e a disposição das pessoas.

A santa missa é essencialmente a reprodução do sacrifício do Calvário e da última ceia; porém em seus acidentes, como são os ritos, as preces, as cerimônias, é de instituição eclesiástica.

Devemos fazer a mesma distinção no estado religioso.

A essência desta vida é tender à perfeição pela prática dos conselhos de pobreza, de castidade e de obediência.

Ora, estes conselhos foram dados por Jesus Cristo em pessoa e constituem a essência da vida religiosa; logo, a vida religiosa é uma instituição divina.

A vida ou pratica, porém, é distinta do estado.

A instituição divina dos conselhos, como meio de perfeição, não pode ser discutida, a menos que se rejeite o Evangelho.

A discussão versa sobre o estado que obriga a praticar os conselhos.

Aqui existem discussões, porém não é difícil dirimi-las, pois provêm da falta de distinção entre vida e estado, aplicando esta divisão às palavras de Jesus Cristo.

Examinemos de perto este ponto importante.

III - Vida e estado religiosos

Não somente Nosso Senhor deu estes conselhos para serem praticados isolada e particularmente, mas deu-os como sendo a base de um estado de vida.

Há uma grande diferença entre um ato e um hábito: O ato é transitório, o hábito é permanente; a repetição do ato produz o hábito.

Há a mesma diferença entre a prática de um conselho e o estado para praticar tal conselho; a prática pode ser transitória; o estado é permanente; a prática continua e perseverante produz o estado.

Praticar os três conselhos evangélicos, no mundo, não constitui um estado de perfeição, constitui um ato de perfeição.

Todo estado supõe um laço que prende e que obriga a permanecer neste estado.

O casamento é um estado, porque tal união é indissolúvel.

A castidade no mundo será um estado, se ficar firmada pela promessa de conservá-la para sempre.

A perfeição, para ser um estado, exige os votos, pelos quais alguém se obrigue a perseverar para sempre na pratica dos conselhos.

jesus Cristo instituiu a prática dos três conselhos, não simplesmente como ato transitório, mas como estado de vida, como se depreende de suas próprias palavras: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo quanto tens e dá-o aos pobres, e depois vem e segue-me (Mt19,21).

Depois de ter vendido tudo, e dado o preço aos pobres, torna-se impossível reaver estes bens, de modo que tal ato de renúncia não é um ato transitório, que se possa retratar, mas constitui um estado permanente, estável.

Se assim não fosse, o Salvador teria dito, como diz mais tarde S. Paulo: que os que usam deste mundo, façam como si não usassem (1Cr7,30).

ele pregaria o desprendimento, mas não exigiria a renúncia, o que é completamente distinto.

Ele não diz não ter apego, entregar a administração dos bens a outrem, ou colocar os fundos em um lugar seguro ou produtivo, nada de tudo isso; Ele tira toda propriedade, todo uso, todo usufruto, sem deixar nada, constituindo deste modo o candidato à perfeição num estado estável de pobreza.

Quem pode ser mais pobre de estado que aquele que vende tudo e dá o preço aos pobres?

Não pode, pois, haver dúvida.

Jesus Cristo lançou as bases da perfeição, pelos três grandes conselhos evangélicos, e determinou, ele mesmo, o estado em que estes conselhos devem ser praticados: fundou, pois, a vida e o estado religioso.

É lamentável que haja autores que afirmem que o estado religioso é uma instituição eclesiástica, do terceiro século, tirando apenas do Evangelho seus princípios constitutivos, de modo que o Salvador seria fundador da vida e não do estado religioso.

De novo: é um erro... e um erro gravíssimo, que nenhum teólogo ou exegeta pode aceitar.

E o que fica dito da pobreza, pode ser dito dos dois outros conselhos: da castidade e da obediência.

Vê-se claramente que os conselhos dados por Nosso Senhor, na expressão de seus termos, determinam, não somente a vida religiosa, mas fixam perfeitamente o estado em que deve ser passada esta vida: o estado religioso.

IV - Estado e Institutos religiosos

Ha uma nova distinção a fazer. A vida religiosa e o estado religioso são distintos, formando dois componentes da instituição divina.

São igualmente distintos o estado religioso e um instituto religioso.

Se o estado religioso é uma instituição divina, tal ou tal instituto religioso, canonicamente regido e aprovado pela Igreja, é de instituição eclesiástica.

Os institutos, congregação ou ordem, são fundados pelos homens com a aprovação da Igreja, e tais institutos são um meio de realizar o estado religioso: são um meio, mas não são um fim.

O instituto é um meio de realizar o estado religioso; como o estado religioso, por sua vez, é um meio de praticar os conselhos evangélicos, e como a prática dos conselhos é um meio de adquirir a perfeição.

O fim último é, pois, a perfeição.

Todos os institutos religiosos têm, pois, uma base comum: a pratica dos três conselhos evangélicos; e cada um tem uma feição particular, conforme o fim a que destina os seus membros.

Assim, uns são missionários, outros são pregadores, outros contemplativos, outros professores, outros hospitaleiros, outros penitentes, etc., etc.

O estado religioso, em seu fim particular, abrange todos os ramos da beneficência humana, mas em seu fim geral, cada um procura a perfeição, pela prática dos conselhos evangélicos.

O estado religioso, através da diferença de hábito, de ministério, de vida e de costumes, conserva, pois, em todos os institutos, a unidade completa de ideal, que é a perfeição.

Esta unidade completa é uma das provas de sua instituição divina. Só as obras divinas são imutáveis.

O protestantismo é dividido em perto de 1000 seitas (em 1935), que não possuem nenhum laço comum na interpretação da mesma Bíblia e na consecução da perfeição.

A Igreja católica forma centenas e centenas de institutos religiosos diferentes pelo modo de trajar, de viver, de trabalhar, mas estreitamente unidos pela mesma lei essencial, pelo mesmo ideal, pela mesma obediência que os prende à autoridade suprema da Igreja. Todos querem alcançar a perfeição pela prática dos mesmos conselhos evangélicos, interpretados pela mesma autoridade que é o Papa.

V - O Cristo, primeiro religioso

Dos princípios irrefutáveis que precedem devo tirar umas conclusões teológicas igualmente irrefutáveis, que vão lançar um raio de luz sobre outros erros, a respeito do estado religioso.

Para uns será quase uma heresia, para outros quase uma revelação.

Que fazer? É sempre assim: a verdade se encontra entre dois extremos.

Nem heresia, nem revelação, mas a verdade.

Os Atos dos Apóstolos trazem, no primeiro capitulo, no primeiro versículo, uma verdade de primeira importância: - Caepit jesus facere et docere: - jesus começou a fazer e a ensinar (At1,1).

Ele não ensinava nada que não fizesse; o seu ensino era o eco de suas ações.

Ele praticava para depois ensinar.

Ora, é ele quem ensinou os três conselhos evangélicos.

É ele ainda quem ensinou a necessidade de desapegar-se de tudo, de renunciar a tudo, de deixar pai, mãe, casa, etc., de renunciar a si mesmo, de carregar a cruz, de ensinar os povos, etc., etc., todas estas coisas que constituem a essência, a substância, e até os acidentes do estado religioso.. Ele ensinou tudo isso.

Logo, Ele o praticou também.

Não somente Ele fundou o estado religioso em geral; ele fundou até o primeiro instituto; a primeira comunidade religiosa.

Jesus Cristo foi o primeiro religioso; os seus apóstolos foram seus primeiros companheiros.

Ele foi o primeiro superior; os apóstolos foram os primeiros súditos. eles formaram a primeira comunidade religiosa!

Quem sabe se não hão de me acusar de heresia, de exagero, de idealismo, de utopismo?

Tanto pior!

A acusação não recairá sobre mim; mas, sim, sobre aqueles santos e teólogos que disseram uma tal verdade, muito antes de mim.

Os culpados são eles, ou melhor, os reveladores são eles.

Vejamo-lo: jesus Cristo, diz Suarez, estabeleceu um instituto religioso particular, reunindo nele alguns homens e traçando-lhes um modo de vida religiosa.

Eles fizeram verdadeiramente os três votos de pobreza, de castidade e de obediência; e eles os fizeram como referindo-se ao estado de perfeição.

jesus Cristo chamou-os à vida mista, isto é, a uma vida contemplativa e ativa ao mesmo tempo, e deu-lhes como fim especial a pregação do Evangelho (Suarez1.III. e.2,9).

Eis já duas provas de valor.

A primeira, evangélica, fundada diretamente sobre a palavra do divino Mestre; a segunda, enunciada por uma autoridade teológica que ninguém desconhece.

Uma terceira prova provém da perpetuidade do estado religioso, que, desde os apóstolos, conservou-se na Igreja, até aos nossos dias, e se conservará até ao fim do mundo.

É o fato confirmando a doutrina: - Ab esse ad posse valet consecutio.

VI - Os apóstolos e sucessores

Mas tal asserção, que contradiz plenamente àqueles que afirmam que o estado religioso nasceu no século III, de instituição eclesiástica, exige mais umas provas e uns comentários.

Provemo-los, pois tais provas devem existir.

Um fato de tal importância não pode ficar despercebido nem duvidoso.

Ha teólogos de renome que fazem desta verdade uma tese doutrinal que não sofre contradição. Entre eles há o formidável padre Alberto Weiss, em sua Apologia do Cristianismo (Tom.10), o admirável padre Eduardo Hugon, em seus estudos teológicos (a fraternidade do sacerdócio), o popular padre Berthier, em seu "Etats de vie chrestienne", etc.

Limitemo-nos em resumir umas paginas do padre Hugon: "Jesus Cristo não devia, nem podia fazer propriamente votos. O voto é feito a Deus; e o Cristo é Deus. Mesmo como homem perfeito, a sua vontade estava imutavelmente firmada no bem; gozando da visão beatífica desde o primeiro instante de sua vida mortal, ele não podia afastar-se de Deus nem da virtude; porém ele praticou, de modo supereminente, o que faz o fundo da vida religiosa, e tudo que ha de excelente nos três votos. ele era o grande CONSAGRADO a Deus: - o religioso perfeito.

É certo, diz o padre Hugon, que depois de Nosso Senhor os apóstolos foram os primeiros sacerdotes e os primeiros religiosos. Os testemunhos dos Santos Padres a este respeito são inumeráveis.

"Os apóstolos começaram o que fazem os monges de nossos dias", diz S. João Crisóstomo (Horn.67).

A Igreja primitiva, ajunta S. jerônimo, foi o que os monges procuram realizar ainda hoje. (De viris III. c.11).

"Após os apóstolos, diz santo Epifânio, quantas almas levaram no mundo a vida monastica?" (Hoeres58).

O texto de Cassiano é celebre: "A disciplina cenobítica começou com a pregação dos apóstolos" (Coll.18,c.5).

Sto. Tomás não é menos expressivo: "Os apóstolos, diz ele, ofereceram as coisas que pertencem ao estado de perfeição, quando, deixando tudo, seguiram a jesus Cristo" (2a.2ae.q.88,a4).

Em seguida, os bispos com seu presbyterium constituem uma espécie de comunidade religiosa, pois é certo que a instituição dos párocos, vigários, curas, não é anterior ao quarto século, e provam-no os novos centros cristãos, cada vez mais numerosos, que precisavam de sacerdotes.

Os santos das épocas seguintes procuraram ressuscitar o estado primitivo.

Santo Atanásio introduziu em Alexandria as instituições monásticas entre o clero.

S. Basílio, S. Gregório de Nazianzo, S. João Crisóstomo eram bispos e religiosos; viviam em comunidade religiosa com seus sacerdotes. Assim também Santo Eusébio, em Verseil, S. Martinho em Tours, Santo Hilário, em Poitiers, S. Cesário, em Arles e muitos outros bispados formavam comunidades religiosas, formavam comunidade com seu clero.

Na Igreja da África, S. Cipriano em Cartago, Santo Agostinho em Hipona, e outros viviam em comunidade com seus sacerdotes, seguindo a regra monástica.

Na Igreja latina a mesma organização: Santo Ambrósio uniu a vida religiosa às funções episcopais, como diz Barônio (Annal ad ann.-374).

S. Gregório Magno, Papa, foi monge de Santo André e continuou no Vaticano a sua vida monacal.

S. Crodegando, nas Gálias, organizou a vida religiosa entre o seu clero.

O Concilio Nacional de Aix-la-Chapele, em 816, tornou esta reforma obrigatória em todas as dioceses das Gálias.

Mais tarde, S. Pedro Fourier, S. Carlos Borromeu, S. Caetano de Tienna, o venerável Holzhauser empenharam-se, e com certo sucesso, em restabelecer a vida regular entre o clero secular.

É inútil prolongar estas citações. Encerremo-las com uma palavra de autoridade que eclipsa a todos os teólogos, a do Santo Padre Pio IX, tirada de um breve de 17 de Março de 186ô.

"Vemos, escreve este Pontífice, que as antigas leis da Igreja não somente aprovavam mas ordenavam que os padres, os diáconos e subdiáconos vivessem juntos, pondo em comum o estado religioso tudo o que lhes vinha do ministério das Igrejas: e era-lhes recomendado que tendessem com todas as suas forças a reproduzir a vida apostólica, que é a vida comum. Não podemos, pois, senão louvar e recomendar todos aqueles que se unem para levar este gênero de vida eclesiástica" - Convém notar, de fato, que não há dois sacerdócios: padres seculares e padres regulares, todos têm o mesmo caráter, a mesma fisionomia divina.

Irmãos pela ordenação, devem ficar irmãos na pratica da perfeição; e para isso devem aproximar-se o mais possível do ideal sacerdotal - o Cristo jesus, que foi o grande Consagrado a Deus e o modelo de toda perfeição.

VII - A obra de jesus Cristo

Na Igreja existe uma hierarquia estabelecida por jesus Cristo.

Esta hierarquia compreende três elementos essenciais, indestrutíveis, que são:

1. - O Papa, como chefe supremo da Igreja inteira, autoridade independente de toda autoridade criada.

2. - O Episcopado, com a plenitude da ordem, relevando juridicamente da plenitude de jurisdicção do Pontificado romano: Posuit Episcopos regere ecclesiam. (Act.20,20).

3. - O Sacerdócio, ou auxiliares dos bispos na administração dos sacramentos e na pregação da palavra divina: "Sacerdotem opportet praedicare" (Pont. De Ord. presb.).

Esta hierarquia é essencial na Igreja, de modo que o Papa não pode destruir nem o Episcopado, nem o Sacerdócio, em geral, embora possa demitir tal ou tal em particular.

O sacerdócio é composto de duas categorias: o sacerdote regular, ligado a Deus pelos conselhos evangélicos, e o sacerdote secular, ligado por um destes conselhos, pela castidade sobretudo.

Como pertencendo ao mesmo sacerdócio, padres regulares e seculares, pela Ordem, estão na mesma linha: são ministros de Deus.

Como consagrados a Deus, com a obrigação de tender à perfeição, os regulares tomam o primeiro lugar, pois, além do sacramento que lhes dá o poder espiritual, eles estão no estado de perfeição, que os obriga a trabalhar para a santidade pessoal.

Estão mais intimamente unidos a Deus por este novo laço, que vem apertar mais estreitamente o laço que lhes é comum com o sacerdote secular.

Parece que isso é simples e lógico.

O estado religioso, em si, não é, sem dúvida, da essência da Igreja, porém é uma parte constitutiva para a integridade da mesma, e como tal é uma parte indestrutível necessária.

A gloria de Deus exige que haja, na terra, cristãos inteiramente consagrados ao seu serviço, cuja vida seja como o reconhecimento oficial de sua autoridade suprema sobre as criaturas.

E este titulo, diz Sto. Tomás, está reservado, por antonomase, àqueles que se consagram a Deus, como um holocausto: - Et ideo antonomastice religiosi dicuntur illi.

É a razão de ser do estado religioso, da parte de Deus.

A economia da Igreja o exige igualmente.

A Igreja deve fazer reviver, na medida do passível, a perfeição ideal de Jesus Cristo, seu papel de santificador e a sua santidade pessoal.

Seu papel de santificador é confiado ao sacerdócio.

Sua santidade pessoal deve ser reproduzida pela vida religiosa.

A auréola brilhante que a verdadeira Igreja manifesta, a nota magnifica que a caracteriza, exigem que haja nela não simplesmente santos, mas sim um estado de santidade; não somente urna santidade comum, mas uma santidade eminente, perfeita, que se faça notar e que junte à observação dos mandamentos o resplendor dos conselhos (Pio IX. Enc. Quanta Cura).

Deste modo haverá na Igreja um estado permanente de perfeição, uma escola oficial, onde se ensina, aprende e adquire a santidade.

O estado religioso, diz o teólogo E. Hugon, pertence deste modo à integridade da Igreja, sendo necessário para fazer resplender a auréola da santidade.

Como o sacerdócio, o estado religioso foi instituído por Nosso Senhor, e ordenado por Ele, que é o Pontífice eterno, ao mesmo tempo que o Religioso do Padre Eterno.

A Igreja sem os institutos religiosos seria um corpo incompleto, dolorosamente amputado, faltando-lhe o que mais a exalta e glorifica: a legião gloriosa de seus religiosos e religiosas.

Seria sempre a Igreja, mas a Igreja sem auréola, sem o mais belo e mais suave fruto de sua doutrina, a abnegação, o desapego das coisas do mundo, praticados não acidentalmente, mas obrigatoriamente no Estado Religioso.

VIII. - Excelência deste estado

Eis-nos plenamente no sobrenatural, numa região divina, onde não se penetra bastante.

Deus vem a este mundo regenerar, restaurar, elevar as ideias e a vida.

E, de fato, eleva o mundo a uma altura que o paganismo antigo ignora, e que o paganismo moderno despreza.

Jesus veio a este mundo, viveu neste mundo, e como um homem não pode viver senão num estado determinado, Ele escolheu, como convinha à sua dignidade, o estado mais perfeito, mais santo que pode haver.

Não posso dizer o mais santo que existiu, pois o estado religioso não existia ainda, e por isso Jesus Cristo fundou-o, abraçou-o, e o fez adotar por seus apóstolos.

De modo que é o estado mais santo que hoje existe. Esta doutrina é irrefutável.

Se tem havido, às vezes, erros e dúvidas a este respeito, é por falta de reflexão e de compreensão da distinção que existe entre os três grandes estados de vida: o estado matrimonial, o estado celibatário, de castidade, e o estado religioso.

É Suarez que vai confirmar esta doutrina com uma logica sem replica: "A perfeição essencial de todo estado, diz este grande teólogo, exige que o homem esteja disposto a cumprir todos os preceitos do Senhor, ela consiste na vida da graça" (Suar.1.1,4,4).

"A profissão do cristianismo é feita para que o homem alcance, pelo menos, esta perfeição, e ela lhe forneça os meios necessários e suficientes para adquirí-la.

O estado de perfeição tem também em vista a observação dos mandamentos. Depois da remissão dos pecados é sobretudo necessário conservar a graça e evitar o pecado mortal.

Como isso é bastante difícil à natureza decaída, jesus Cristo instituiu um estado, onde houvesse menos ocasiões de pecado e menos perigos de perder a graça, e este é um dos fins do estado de perfeição" (Suar.1.1,c.11,9). "Emfim, a perfeição à qual tende o estado religioso consiste no desejo de cumprir a vontade de Deus, não somente no que ela manifesta pelos mandamentos, mas ainda no que nos faz conhecer pelos conselhos" (lb.11), O doutor angélico, Sto. Tomás, não é menos expressivo a este respeito; ele fala como mestre incomparável. Citemos apenas o seguinte trecho, que resume a doutrina aqui exposta: "Ser religioso é fazer atos que tributam um culto a Deus; ora, um dos atos principais, é oferecer a Deus sacrifícios; e o mais perfeito dos sacrifícios é o holocausto, pelo qual não se oferece somente ao criador uma parte da vítima, mas a vitima inteira.

A prática dos três conselhos evangélicos, ou os três votos, fazem do homem um holocausto completo.

O homem tem três espécies de bens: da fortuna, que sacrifica pela pobreza; do corpo, que sacrifica pela castidade; da alma, que consagra a Deus pela obediência.

Fazendo este holocausto completo, o homem pratica o mais excelente dos atos de religião, e deve ser chamado religioso por excelência" (Sto.Tom. Sum. 2,2, q.186, a7, Opusc. 18, c.11).

Eis, pois, uma base solida, inatacável, que abate completamente essas opiniões errôneas que fazem acreditar que o estado religioso é apenas de instituição eclesiástica ou vagamente indicado pelo Salvador, sem ter sido praticado por ele e por seus apóstolos.

Tal erro, que se encontra em bastantes livros, é absolutamente condenado pela Igreja, pelos teólogos, como pelo simples bom senso. Mas vamos adiante, temos outros horizontes a descortinar.

IX - Parte essencial do cristianismo

Para dar o seu justo valor ao estado religioso, não é preciso que tenha havido conventos no tempo dos apóstolos; não havia nem Igrejas ainda; sem remontar a Sto. Elias e a São João Batista, como outrora fizeram uns historiadores ( Sozomeno: Hist. eccl.1,12) tudo isso é inútil, pois a maior glória da vida religiosa é ter sido instituída e praticada por Jesus Cristo.

A gloria do estado religioso está no Evangelho, tanto em seus princípios como em sua forma.

É a razão por que os Santos Padres não hesitam em chamá-la "a verdadeira vida, a única vida evangélica e apostólica" (1).

"Aqueles que escolheram a vida religiosa, diz Sto. Agostinho, são os soldados, a tropa escolhida que Jesus Cristo opõe a seus inimigos". (2).

Estes são os seus verdadeiros discípulos que observam integralmente a lei e procuram viver de tal modo que o Cristo esteja no meio deles, como outrora no meio de seus apóstolos" (3).

"A sua vida não é outra coisa senão a imitação da vida dos apóstolos" (4).

1) Basil: Ep. 295. - Cassiano: Collat. 21 - Rupert: Tuit, Vita. vera a.postal.5,14.

2) S. Aug., C. Faust., V,9 ; Ep. 220,12.

3) S. Aug., ln Psa.lm., 132,9.

1) S. Bern., Dlv. Serm., 22,2; 27,3;38,7.

Que concluir disso?

Que tal vida não é de invenção humana, mas ele instituição divina, como sendo o grande meio necessário para alcançar a perfeição.

Ora, a Igreja não tem simplesmente por fim salvar os homens; ela tem também, e sobretudo, por fim elevá-los à santidade.

Tal é o seu fim essencial.

E para alcançar este fim, um meio absolutamente necessário é o estado religioso, que tem por fim próprio, pela sua instituição divina, a perfeição ou santidade das almas.

Donde se deve concluir que o estado religioso é uma parte essencial do Cristianismo.

Aqui vou de encontro a muitos preconceitos e ideias populares. Pouco importa; a verdade é uma, e os erros são muitos.

Há muitas pessoas que admitem que o estado religioso é de grande utilidade na Igreja, que tem feito grande bem na evangelização do mundo, etc.; mas que, se não existisse a Igreja, podia muito bem passar-se deste, e continuar a sua obra civilizadora e santificadora.

Ah! se assim fosse, digam-me, por que os inimigos da Religião concentram todo o seu ódio contra os conventos e religiosos, seja pela imprensa, pela palavra ou pela violência?

Será porque eles julgam que estes conventos são a parte mínima da Igreja que odeiam?

E o demônio estará tão mal avisado que, querendo destruir a Igreja de Cristo, começará por desaninhar passarinhos e matar moscas, como sendo uma parte inofensiva do reino que quer conquistar?

Ou Satanás terá ficado tão idiota que ele quer apenas ser adorado como deus das moscas e dos passarinhos, fazendo primeiramente a guerra a eles?

pode haver católicos que acreditem nisso?

O mundo também tem olhos, e até olhos de Argus, para ver a realidade.

O mundo sabe, como o sabe Satanás, que a força viva, a força militante, a força conquistadora, a força heroica, a força invencível da Igreja está escondida atrás destas portas de convento, onde se vive, onde se luta, onde se morre pelo triunfo da santa Igreja.

Ele o sabe, e eis por que dirige todas as baterias, todas as metralhadoras da pena, da língua e da força bruta contra o estado religioso.

Ele sabe que aí está a força da Igreja, e esta força seria apenas um adorno, um enfeite, um acidente da Igreja?

Não, mil vezes não. O estado religioso é uma parte principal, substancial e essencial da Igreja, é uma de suas bases (1) é seu coração. (2).

Aquele que ataca o estado religioso não tira simplesmente da Igreja uma parte acidental, inventado arbitrariamente e supérfluo, mas tira-lhe o que há de mais essencial, a medula, a flor, a pedra fundamental (3).

É o que fez dizer a um distinto canonista, que não era religioso: - "É falso pretender que só o clero secular é necessário à Igreja, e que esta podia muito bem dispensar o clero regular.

É o contrário que é a verdade, a saber, que o clero secular não é necessário à Igreja e que esta podia muito bem existir, mesmo se não houvesse nenhum clero secular no mundo inteiro" (4).

1) S. Bern., Apost. ad Guilh.. 10,24.

2) S. Bern,. ad part. in Syn. V,76,d.

3) S. Jeron.. Epist. 46,10.

4) Bonix, De jure regularium (2), l.174. Cf. Brandere, Jus Can., 1 .445. - Cresson, Ma.n. Jur. Ca.n. n.2.508. - Thomassin, Vetus e nova Eccl. disc. 1,1,3. - Hugon, Fraternité du Sacerdoce, e. II. - Alb. Weiss, Apol. du Chriet, conf. XV.

A Igreja poderia - embora nunca o faça suprimir o clero secular e obrigar todos os seus membros a tornarem-se religiosos, como fizeram Santo Eusébio de Verceil, e outros bispos (1); mas não poderia, sem ir de encontro ao Evangelho, suprimir o clero regular e obrigá-lo a tornar-se secular; porque seria negar a palavra divina, a instituição divina, a vida de Jesus Cristo, e suprimir o que é essencial à vida da Igreja, o estado de perfeição, representado pelo estado religioso.

1) Bonix, De jure regaul (2), I, 176 seg.

X - Novidade moderna

Tal doutrina parece quase uma novidade.

Sim, é uma novidade no meio das ideias falsas propagadas pela impiedade e a ignorância, como o Evangelho de Cristo é uma novidade para aqueles que o ignoram.

Conta-se de Luiz XIV, que tendo ouvido falar da grande popularidade de um missionário que pregava em Paris, que excitara um entusiasmo geral, ele perguntou a um dos príncipes da corte o que havia de particular nos sermões do religioso.

- É uma novidade, respondeu o cortesão, e vossa majestade sabe que o povo francês gosta ele novidades.

- E qual é esta novidade?

- Este padre prega o Evangelho.

Estamos um pouco no mesmo caso.

Têm-se publicado tantas calúnias contra jesuítas e frades, tendo havido tantas perseguições, que o povo, sem acreditar nas calúnias, julga, entretanto, que aí há muitos absurdos, muitas extravagâncias, e assim vai apreciando o estado religioso, através do prisma destas calúnias e perseguições, e não vê mais no estado religioso sinão uma forma de vida, como qualquer outra, sem distinguir as pessoas e o estado, a verdade doutrinal e o fato pessoal.. e deste modo o estado religioso torna-se uma novidade.

E a minha elucidação participará desta novidade, embora seja velha, de uma velhice de 19 séculos.

Coisa antiga, esquecida, torna-se novidade ao reaparecer em público.

Deste modo, doutrinas antigas tornam-se novidades, depois de terem sido ignoradas durante um certo tempo.

Hoje, que a impiedade procura solapar a Igreja de Cristo, juntando sob o seu estandarte protestantismo, maçonismo, espiritismo, bolchevismo, é preciso que a verdade católica não somente refulja com mais fulgor, mas encontre recrutas de valor, de força, de convicção para aumentar a força viva da Igreja, a vanguarda de seus ensinos, que é o estado religioso.

É preciso que a mocidade ardente e idealista de nossa época veja, além das honras, da dignidade e do poder do sacerdócio, que é próprio de todos os sacerdotes, a sublimidade e a perfeição do estado religioso.

A Igreja católica é santa, não somente por­ que possui em todos os tempos santos isolados, mas sobretudo porque sempre houve e sempre haverá nela o estado de perfeição e a obrigação solene de trabalhar para a aquisição da santidade; o que seria impossível sem o estado religioso.

Não é tal ou tal instituto que é necessário; nenhum deles em particular é necessário: o que é mister é o estado religioso... são os religiosos.. é a vida religiosa. Ninguém se escandalize desta verdade. Não é um exagero, nem uma novidade, é a grande verdade evangélica, doutrinal e histórica. Esta verdade, entretanto, deve ser bem compreendida.

Meu intuito não é de exaltar uns para humilhar outros, mas apenas salientar uma verdade evangélica que bastantes escritores modernos deturpam ou parecem ignorar.

XI - Clero secular e regular

Trata-se aqui de estados e não de pessoas, distinção esta que é essencial.

Num estado superior pode haver pessoas inferiores, como num estado inferior pode haver pessoas superiores.

O hábito não faz o monge.

A casa não faz o santo.

O estado não faz a superioridade.

Mostrei em linhas precedentes que o estado religioso está acima da simples castidade e que a simples castidade está acima do matrimônio.

Isso não quer dizer que cada celibatário valha mais do que o casado, e que cada religioso valha mais que o celibatário no mundo.

Se cada pessoa cumprisse perfeitamente todos os deveres de seu estado, então, sim, tal gradação existiria. Mas as misérias humanas são numerosas; acontece, porém, que tal casado ou casada é mais generoso que certos celibatários e até de que certos religiosos. Isto é a perfeição pessoal, independente do estado abraçado.

A comparação não se estende às pessoas, mas somente ao estado de vida.

No Evangelho, jesus Cristo fala de virgens prudentes e de virgens tolas.

Judas perdeu-se como apóstolo decaído.

Sto. Agostinho santificou-se como pagão regenerado.

São Paulo foi perseguidor, e tornou-se um vaso de eleição.

Julião, o apóstata, foi seminarista e tornou-se perseguidor e apostata.

Os anjos pecaram no céu.

Adão e Eva pecaram no paraíso.

Há homens e mulheres, que vivem como anjos, no meio do lamaçal deste mundo.

Do mesmo modo comparei o clero secular ao clero regular e disse que o estado dos regulares, pela instituição divina, está muito acima do estado dos padres seculares.

Afirmei isso comparando os estados; nego-o quando se trata das pessoas.

Há no clero secular sacerdotes santos, zelosos, de grandes virtudes, que pessoalmente estão muito acima da pessoa de certos religiosos desmazelados, tíbios e descuidados.

A pessoa é distinta do estado, como os pássaros são distintos da gaiola.

A gaiola de ouro pode abrigar uma coruja repelente. A gaiola de buriti pode conter um canário encantador.

A virtude é pessoal; o estado de vida é comum a todos os que o abraçam.

É a virtude pessoal que santifica o estado.

Não é o estado que dá a virtude; é apenas um meio de adquiri-la.

Colocando os dois num mesmo plano, numa mesma virtude, o padre secular e o padre religioso, não pode haver dúvida que o último seja superior ao primeiro.

Haveria aqui uma tríplice distinção a fazer entre eles: o estado, a ordem, o ofício.

Como estado, o religioso é mais perfeito.

Como ordem, os dois são iguais.

Como ofício, é preciso examinar o apostolado de cada um.

A grande vantagem do estado religioso é de não sofrer a mediocridade.

A ela aplica-se o axioma: "Onde é bom, não há nada de melhor; mas onde é ruim, não há nada de pior".

São Bernardo dizia: "Não conheço gente melhor que aqueles que se exercitam à perfeição no estado religioso, mas não conheço gente pior que aquele que aí não ama a Deus".

Lembremo-nos bem da distinção entre estado e pessoa, entre o hábito e o monge. Não fazemos a comparação das pessoas, fazemos a dos estados.

Não pode, e não deve haver rivalidades entre o clero secular e regular; o que deve haver e o que há, felizmente, é a fraternidade fundada sobre a semelhança e uma comunidade de natureza pela participação do sacerdócio de Jesus Cristo. São irmãos pelo sacerdócio único. O hábito pode ser diferente, como são diferentes as pátrias, a educação, a língua.. porém, são revestidos do mesmo caráter e do mesmo poder.

XII - Conclusão

Terminemos aqui.

Não é meu fim fazer um estudo completo do estado religioso; quero apenas vingá-lo da ignorância que não sabe e da perversidade que caIunia.

A religião de Jesus Cristo não receia o estudo, a perspicácia, a penetração, a luz; ela receia apenas a ignorância e o vício.

Por isso é preciso, de vez em quando, salientar certas verdades que a impiedade ataca e encobre, para restituir-lhes o brilho de sua origem divina.

É o caso do estado religioso.

Este estado não é bastante conhecido, nem apreciado, devido às calúnias e aos sarcasmos da impiedade.

O que tenho aqui exposto é a doutrina simples, mas profunda, desta divina instituição.

A digna consulente que se referiu a este estado julgará agora o que é o tal estado, qual a sua grandeza e quais as suas vantagens.

Fica bem patente que o estado religioso não é de preceito, mas sim de conselho.

É de conselho para abraçá-lo, mas é de preceito para alcançar a perfeição: Se queres ser perfeito, diz o Salvador.

Não obriga a entrar no estado religioso a quem pretende simplesmente salvar-se; mas obriga a quem quer ser perfeito, como sendo este estado o meio próprio de alcançar a perfeição.

E quem deve abraçar este estado?

Aqueles que são chamados, que têm uma vocação sobrenatural, isto é, o atrativo pelo desejo de santificar-se, a capacidade de cumprir os deveres inerentes a este estado, e o conselho de um confessor prudente e instruído.

A vocação, sendo bem determinada, seria perigoso não segui-la.

"Não parece duvidoso, diz Santo Afonso, que expõem a sua salvação aqueles que, estando certos de ser chamados ao estado religioso, procuram persuadir-se que poderão salvar-se tão bem no mundo como no convento (Theol. mor.1.4,c.1).

O Santo doutor conclui com estas palavras, que formarão também a conclusão deste estudo: "Aqueles que são chamados, são obrigados a entrar na religião, porque Deus lhes recusará no mundo os auxílios que lhes preparou no convento; e, embora possam eles se salvar no mundo, com as graças ordinárias, eles se salvarão dificilmente".

DECIMA TERCEIRA POLÊMICA

A presença real de jesus Cristo na Eucaristia

Recebemos a seguinte cartinha, que merece uma resposta completa, por causa da importância do assunto:

Exmo. e Revmo. P. Júlio Maria Devido a certas objeções sobre a instituição da Eucaristia, de pessoa culta e de influência em nosso meio, acho, como católica que sou, necessário, afim de desviar certas duvidas, que o senhor publique um artigo esclarecendo a interpretação das palavras que instituíram o citado sacramento.

Pelas objeções, as palavras de Cristo deveriam ser interpretadas de um modo espiritual e, no entanto, a Igreja materializou-as.

Na minha impotência venho recorrer ao zelo nunca desmentido de V. Revma., para mostrar como a Igreja reconheceu a verdade admirável, elevando-a a dogma de fé.

De V. Revma.

Serva em jesus Cristo R. P.

I - Resposta

É por todos conhecido o ódio satânico que os pobres e obcecados protestantes concentram sobre a Sagrada Eucaristia e a SSma. Virgem.

Haverá neste ódio qualquer vislumbre de razão, capaz de explicá-lo?

Não; absolutamente nenhum, senão a perversidade do erro.

O fundamento da Religião católica é a pessoa divina de Jesus Cristo, mas não esta pessoa simplesmente histórica encerrada nas paginas de um livro, como fazem os protestantes, mas, sim, esta pessoa divina, viva, continuando a ser o que era durante os trinta e três anos de sua vida mortal: - luz, amor e força.

O Cristo é eterno, não simplesmente de uma eternidade de tempo, mas de uma eternidade de Salvador, de Mestre, de Pai, de Vítima, como o foi durante toda a sua vida terrestre.

Os protestantes relegam Jesus Cristo, encerrando-o nas páginas de um livro, de uma letra morta. É um Cristo passado, um Cristo morto, um Cristo que nos transmite apenas o eco longínquo de sua palavra e de seus exemplos.

O Cristo protestante é um cristo de papel.

Não fala, não ama...; transmite apenas pensamentos e ensinos remotos, que eles interpretam a seu talante, torcem, rasgam e aplicam à sua vontade.

Entretanto, o Cristo disse que era o caminho, a verdade e a vida (Jo14,6).

Para caminhar, é preciso força; Para conhecer a verdade, é preciso de quem a ensine; Para ter a vida, é preciso ter amor.

Força, ensino e amor, eis três elementos indispensáveis à vida da alma.

A força nos é dada pela Sagrada Comunhão.

O ensino nos é ministrado pela autoridade, isto é, pelo Papa, sucessor de São Pedro.

O amor nos chega pelo coração maternal da SSma. Virgem Maria.

E os pobres protestantes nada mais têm de tudo isso... Rejeitaram tudo, por pirraça à Igreja Católica, que conserva tudo isso.

É a única razão que se pode encontrar.

Razão de ódio, de pirraça; nada mais..

E isso não é de Deus; tais razões são do demônio.

II - Interpretação da Bíblia

Examinemos agora, de perto, o texto mencionado pela nossa digna consulente.

Os protestantes dizem que as palavras de Cristo deveriam ser interpretadas espiritualmente, e entretanto a Igreja materializou-as.

Tais palavras mostram uma ignorância crassa de todas as leis da interpretação, e uma singular aberração do bom senso.

O bom senso nos diz que a primeira interpretação, a interpretação fundamental, deve ser o sentido material, que se chama, em termo próprio, o sentido gramatical, literal e que não se deve recorrer ao sentido metafórico, ou ao sentido espiritual, senão nos casos em que o primeiro não possa ser aplicado.

Por exemplo, quando eu digo: desejo comer pão, todo homem de bom senso entende que eu estou com fome e desejo comer pão da padaria.

Do mesmo modo, quando digo: estou com sede, todos julgarão prestar-me serviço trazendo-me um copo de água.

E por que isso?

Porque tal é o sentido gramatical e literal da frase.

Entretanto, a Sagrada Escritura fala daqueles que têm fome e sede de justiça - Beati qui esuriunt et sitiunt justitiam (Mt5,6).

Quando um protestante diz que tem fome e sede, será preciso levar-lhe a justiça?

Todos compreendem que tal sentido é metafórico, e que o primeiro sentido é o sentido gramatical.

Assim também no Evangelho.

O primeiro sentido a adotar, conforme ao contexto e à significação, é o sentido literal, de modo que pão é pão e vinho é vinho.

Acontece, porém, o contrário, quando se ajunta à palavra qualquer termo explicativo, indicando claramente que tal palavra deve ser tomada em outro sentido.

Por exemplo, dizendo: o pão da caridade - enxugar as lágrimas dos que sofrem - comer da palavra divina, semear as boas obras - e até pegar a lua com os dentes, qualquer homem de bom senso compreende o sentido metafórico destas palavras, porque o contexto o exprime, e o fato é impossível. Nem Lutero pegava a lua com os dentes.

III - A aplicação exegética

Examinemos agora o texto evangélico, para ver qual a interpretação que lhe deve ser aplicada.

A instituição da Sagrada Eucaristia é narrada por S. Mateus, nos seguintes termos: E enquanto ceavam, jesus tomou o pão e o benzeu e o partiu, e deu-o a seus discípulos, e disse: tomai e comei; isto é o meu corpo (Mt26,26).

Sejamos francos: de que pão se trata nesta passagem? será de um pão espiritual?

É impossível; o texto é positivo, claro, sem figuras. É um relâmpago. Tudo aí liga-se numa unidade de pensamento e de expressão, que é impossível desviar o sentido de uma única palavra.

Vejamos bem: É uma ceia - Jesus toma o pão - parte este pão - dá este pão aos discípulos - faz comer deste pão. Tudo isso forma um conjunto perfeito de ceia.

Não se pode tratar aqui de pão espiritual, nem alegórico: trata-se de pão.

E este pão, diz o Salvador, é o meu corpo.

Ele não diz: figura ou representa o meu corpo.. mas isto é o meu corpo. Ora, para qualquer pessoa que sabe falar, dizer: isto é o meu corpo, é bem o seu corpo.

E se alguém dissesse: isto é o meu chapéu, isto é a minha gravata, parece-me que todos haveriam de compreender que o objeto que tem na mão é bem o seu chapéu ou a sua gravata.

De duas uma! Ou jesus Cristo não sabe falar, ou não compreende a significação dos termos que emprega.

E qual o protestante que teria coragem de afirmar isto? Jesus Cristo, quando fala de modo figurativo, tem cuidado de avisar sempre.

Por exemplo: O reino de Deus é semelhante a um grão de mostarda (Mt13,31). O reino de Deus é semelhante a um semeador (ld.24) - a um fermento (ld.33) - a um tesouro (Id.44) - a um rei (ld.18,23) - a um pai de família (ld.20,1), etc.

Nosso Senhor sabe falar, a sua palavra é luminosa, embora haja, em consequência das tradições, costumes e tempos, muitas passagens de difícil interpretação - Quaedam difficilia intellectu (2Pet.3,16).

Tal dificuldade não provém da palavra divina, mas sim de nossa ignorância.

No texto citado, tudo é claro, e nenhuma dificuldade existe.

Jesus toma o pão, benze este pão, parte-o, dá-o aos discípulos, dizendo: Tomai e comei, isto é o meu corpo.

Não é claro que Jesus acaba de mudar a substancia do pão, na substancia de seu corpo?

Era pão material, e agora é o seu corpo natural.

Não é uma parábola, uma comparação .

é uma realidade física: - Isto é.

E isto é o meu corpo.

Se Jesus Cristo sabe falar e compreende a significação dos termos, devemos então concluir que o pão que ele tinha nas mãos, pela benção divina dada, tornou-se verdadeiramente o seu corpo.

Não há outra saída, nem qualquer subterfúgio, senão o da impiedade, do ódio, da cegueira voluntária que não quer ver.

Não se trata, pois, de materializar o que é espiritual, pois aqui é material.

Por que querem os protestantes espiritualizar o que é material, e por que em outros lugares materializam eles o que é espiritual?

Somente por espirito de contradição.

É a mania de contradizer a verdade.

É a mania de protestar contra tudo...

Por isso é que são protestantes.

Titulo pouco honroso e pouco espiritual!

IV - A falsificação protestante

A resposta precedente seria o suficiente para elucidar a questão em litígio; mas, ao terminar esta resposta, deparou-se me no "jornal Batista" um pedacinho de ouro, ou de couro, que vai servir-me para pegar estes protestantes em flagrante de falsificação bíblica.

Em seu no 7 de Dezembro de 1933, há na parte doutrinal do mesmo a seguinte consulta de um protestante: - Queira dar explicação acerca de João, 6,53,57.

Tal é a consulta. Vejam agora a resposta fenomenal do rancoroso batista, revelando a sua estupenda ignorância exegética, ou, então, a sua perversidade diabólica.

Ei-lo:

1. "Jesus, pois, lhes disse: Na verdade, vos digo que, se não comerdes a carne do Filho do homem, não tereis a vida em vós (Jo6,53). Os versículos que se seguem, até ao 63, esclarecem de modo completo aquilo que Jesus quis dizer neste. ele mesmo deu a interpretação das suas palavras, de modo a não deixar resquício de dúvida; e não haveria tal dúvida se a Igreja católica não tivesse materializado aquelas palavras que jesus mesmo declarou que eram figurativas, e deviam ser " entendidas espiritualmente. "O espírito é o que vivifica, a carne para nada aproveita; as palavras que vos disse são espírito e vida" (v63) . Ou, em outras palavras: "Se eu vos desse a minha própria carne a comer, isso de nada vos aproveitaria, porque a carne não tem valor algum espiritual; é sempre carne". Que a despeito de tão claras e peremptórias declarações do próprio Jesus se estabelecesse a doutrina de comer Jesus materialmente para dar vida à alma, é a coisa mais estupenda e incompreensível que possa existir neste mundo. Isto prova, todavia, que não há doutrina por mais falsa e absurda que seja que não encontre quem a aceite e nela creia".

V - O texto do Evangelho

O fanático batista diz que os versículos que se seguem, até 63, esclarecem de modo completo aquilo que jesus quis dizer neste.

Estamos de acordo.

Perfeitamente. Tais palavras de jesus Cristo são tão claras e positivas que basta citá-las, para serem compreendidas por qualquer pessoa.

Eis por que o amigo batista não as cita, mas procura desviar o sentido da palavra de Jesus Cristo, cobrindo-as com calúnias.

Mas, caro pastor, calúnia não é argumento; é mentira!

O consulente não pergunta o que ensina a Igreja Católica; ele pede apenas explicação do texto.

E por que não destes a explicação pedida?

Por que desviar a consulta e fazer comentários que não pertencem ao texto?

Prefiro supôr que seja ignorância, mas devia dizer que é perversidade.

Citemos, na integra, o texto indicado, para bem apreciar a sua meridiana clareza, que os protestantes desvirtuam, escondem, torcem, para não dizerem a verdade, sendo a mentira e a calúnia a sua explicação costumada.

Leiamos, pois, e bem, o texto do Evangelho que é a condenação completa e granítica do absurdo protestante.

Tomemos a citação inteira do versículo 48 até 61, pois o contexto ilumina o texto e indica o seu verdadeiro sentido: (Jo6,48,a61).

VI - O sentido do texto

O texto citado é tão luminoso que nem precisa de elucidação.

O próprio Lutero, pai, avô e mestre dos protestantes, reconhece a fulgurante clareza deste texto, chamando de idiotas aqueles que têm a ousadia de negá-lo.

Estes pretensos sábios, escreve ele, prestar-me-iam um grande serviço se me dessem o meio de negá-lo; quanto a mim, não o pósso, porque o texto é claro demais - nimio apertus.

É verdade que os Luteros novos herdaram apenas o ódio do velho Lutero, sem sequer possuírem a sua inteligência.

De fato, todo homem de bom senso, examinando este texto, deve admitir que se trata de uma realidade física, de uma verdadeira comida, bebida, ou, então, deve dizer que Jesus Cristo está brincando, zombando da língua que fala e dos apóstolos que o escutam.

Se se trata nesta passagem de um simples pedaço de pão, de um simples copo de vinho, por que tantas cerimônias, por que este tom e modo misteriosos? Por que estas expressões veladas, incompreensiveis? Por que tudo isso?

Jesus Cristo teria perdido a sua seriedade acostumada, decaindo de sua linguagem clara e transparente nesta balbúrdia bombástica que só sabe dizer palavras ocas, sem sentido?

Reflita bem, meu caro batista.

Suponho que qualquer padeiro vá ao Rio, e com reclames e discursos atraia em torno de si o povo da capital, dizendo que vai comunicar-lhes uma coisa importantíssima .

E este homem, por ocasião da reunião geral, começaria a fazer reclame de seu pão, exclamando: Que ele é o pão de vida...

Que tal pão desceu do céu.

Que aqueles que o comem nunca morrerão...

Que tal pão é a salvação do mundo.

Que tal pão é a sua carne.

Que é o seu sangue..

Que é superior ao maná do deserto, etc.

E no fim desta lenga-lenga, o homem exibiria um pedaço de pão, que teria comprado na padaria mais próxima..

Que diríamos de tal homem?

As 886 seitas protestantes (em 1935), em voz uníssona, gritariam que era um louco.. um fugitivo do manicômio.

E não somente eles diriam assim, mas todos nós estaríamos de acordo.

Mas, então, meu caro batista, por que atribuis a Jesus Cristo uma palhaçada que reprovais em qualquer outro?

Releia bem as palavras graves, solenes, majestosas do divino Mestre, e depois diga-me si uma tal linguagem se concebe para prometer um pedaço de pão de padaria!..

Emfim, em sua linguagem batista a Eucaristia é só isto!

É uma ceia!.

Mas, para que tanto barulho, tanto palavrório para anunciar uma ceia, em que (como dizem os protestantes) os cristãos tomarão uma fatia de pão e beberão um gole de vinho em lembrança do Senhor.

O senhor não vê que isso é sumamente ridículo, e que fazem de Jesus Cristo um verdadeiro palhaço de feira?

Por amor de Deus, cale-se... A figura majestosa, doce e sublime de Jesus não se presta a um papel tão degradante!

É uma blasfêmia.

Se não respeitam a doutrina do divino Mestre, respeitem pelo menos a sua pessoa adorável!

VII - A astúcia protestante

É conhecida astúcia dos protestantes o desviar os textos de seu sentido natural, aproximando do texto a explicar outros textos de significação completamente diferente.

Temos aqui no caso um exemplo flagrante.

Eu queria poder desculpar tal aproximação, atribuindo-a à ignorância, porém é impossível.

Além da ignorância, vê-se aqui, claramente, a perversidade, o ódio, o desprezo da palavra de Deus, dando-lhe voluntária e grosseiramente o sentido que não tem, nem pode ter.

Se o meu caro batista não compreendeu tal perversidade, os meus leitores hão de compreendê-la; e o meu antagonista, se tiver um pouco de sinceridade, não deixará de examinar a refutação de seus erros.. e deste exame é capaz de brotar uma centelha de luz... que lhe faça ver - e quem sabe, talvez - endireitar as suas tantas elucidações heréticas.

Pelo texto citado do Evangelho de S. João, vê-se claramente que não se trata de um pão figurativo, simbólico, mas do corpo do Salvador, de seu próprio corpo, que ele quer dar como alimento às almas: Eu sou o pão da vida - Eu sou o pão vivo - o pão que eu darei é a minha carne (Jo6,48,51,52).

É claro: o pão que o Cristo vai dar é um pão vivo; o da padaria é um pão morto; tal pão é a sua carne; não é de farinha de trigo, nem de outro qualquer, como se usa na ceia protestante.

Diante de tanta clareza, pois é um relâmpago, o nosso amigo batista vai pescar qualquer texto para contradizer a palavra de jesus Cristo.

A continuação do texto é admirável, confirmando o que precede, e refutando de antemão as possíveis objeções. Mas pouco importa para o amigo, o que ele quer é uma objeção, saia esta donde quiser.

A continuação do texto reza:

61. Muitos, pois, de seus discípulos, ouvindo isto, disseram: Dura é esta linguagem, e quem a pode ouvir?

62. Porém Jesus, conhecendo em si mesmo que seus discípulos murmuravam, por isto disse-lhes: Isto vos escandaliza?

63. E se vós vedes subir o Filho do homem para onde estava Ele antes?

64. O espírito é o que vivifica: a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos disse, são espirito e vida.

65. Mas há alguns de vós que não creem.

Porque sabia Jesus desde o princípio quais eram os que não criam, e quem o havia de entregar.

Paremos aqui, e vejamos agora a significação deste texto, todo diferente do sentido que lhe empresta o amigo batista (Jo6,61-66).

 

VIII - A Interpretação deste texto

Examinemos bem o texto e o contexto, e veremos brilhar com luz meridiana a verdade exposta pelo Salvador.

Jesus acaba de dizer que vai dar a sua carne a comer e o seu sangue a beber (Jo6,55).

Tal linguagem espanta os discípulos. É natural... Ter-nos-ia espantado igualmente.

Imaginem!.. Jesus, tão sério, tão sublime, tão exato em todas as suas expressões, a dizer, de repente, que vai dar o seu corpo a comer e o seu sangue a beber; e diz isto com um vigor de expressão que não admite réplica.

Naturalmente, os judeus, materialistas, julgavam que Jesus ia cortar um pedaço de sua carne para fazer-lhes comê-la, e ia abrir uma veia para fazer beber o seu sangue.

Isto é demais.. eles ficam horrorizados e exclamam: Dura é esta linguagem e quem a pode ouvir?

O evangelista faz notar que jesus conheceu a dúvida, a hesitação de seus discípulos.

Vai Ele retratar-se?

Não, pelo contrário, vai reafirmar, retificar as ideias materialistas de seus ouvintes.

Ele perguntou-lhes: Hoc vos scandalizat?

Isto vos escandaliza? E por que? Pensais vós que não posso dar-vos a minha carne a comer, como subir ao céu donde vim? Um não é mais difícil que o outro?

Não entendeis estas palavras, continua o Mestre, porque sois materiais; sois carne, e a carne não compreende verdades tão sublimes; é preciso que seja o espírito (a fé) que receba estas minhas palavras; pois as palavras, que acabo de dizer-vos, são espírito e vida, isto é, fé e realidade.

Mas há uns entre vós que não têm este espírito de fé; eis por que eles duvidam e não acreditam em minhas palavras.

Veja, caro batista, como o texto vai se desenvolvendo logicamente e com uma clareza sem sombra.

Nosso Senhor não se retracta, não se contradiz, não recua, mas mostra aos discípulos que não se trata, na verdade exposta, de cortar um pedaço do seu corpo para dar a comer, o que seria o sentido materialista, mas, sim, de um milagre que vai fazer, instituindo, mais tarde, a Eucaristia.

E para melhor salientar este milagre, ele o compara à sua gloriosa ascensão.

Este milagre é a transubstanciação, ou mudança do pão e do vinho, no corpo e no sangue do Salvador, pelas palavras da Consagração, indicadas por Ele na instituição deste Sacramento.

É o que chamamos o sacrifício da Missa.

Peço ao amigo batista comparar bem os termos do Evangelho, para ver que no texto citado a palavra carne não se refere ao corpo de Jesus, como uns versículos acima (de 49 a 91) mas do homem carnal, homo carnalis (1Cor 3,1) .

Tal interpretação é óbvia e a única que combina com o contexto, com as circunstâncias e com as pessoas.

O espírito é o que vivifica - a carne para nada aproveita.

Vê-se que aqui não se trata do espírito do Salvador, nem de sua carne, mas dos homens que o estão escutando, e que pertencem a estas duas categorias opostas: do espírito, pela fé, da carne, pelo materialismo.

O primeiro vivifica, dá a vida, pela compreensão da verdade exposta; a segunda para nada serve, pela falta de compreensão da sublime doutrina que jesus acaba de expôr.

E neste último caso está Judas; estão todos os protestantes, em perpétua oposição às palavras de jesus Cristo, materializando tudo, e fazendo da palavra vivificante do Evangelho uma palavra morta, uma letra que mata; pois adaptam apenas a letra, inserindo nesta letra, o seu próprio espírito, em substituição ao espírito de Jesus, como no caso presente.

Eis por que o Mestre termina a sua sublime instrução dizendo: As palavras que eu vos disse são espírito e vida.

Sendo espírito, só podem ser compreendidas pelo espirito e não pela carne.

Sendo vida, devem ficar animadas por seu espírito, que é a única vida, e não pelo espírito da carne, que é a interpretação individual protestante.

Que coisa mais clara e mais lógica?

IX - Conclusão

É claro e lógico, e por isto é que não é protestante.

A esta lucidez de texto oponham agora a balbúrdia do amigo batista.

O Cristo acaba de dizer que vai dar a sua carne a comer, e que a sua carne é verdadeiramente comida (Jo6,56), e, logo em seguida, conforme a interpretação protestante, Ele diria (veja a objecção: é textual) "Se eu vos desse a minha própria carne a comer, isso de nada aproveitaria, porque a carne não tem valor algum espiritual: é sempre carne".

Diga-me, caro batista, após reflexão calma e desapaixonada, poderá um homem sensato deixar de exclamar: Mas, então, ou o Cristo não sabe o que está dizendo, ou está se contradizendo, mentindo vergonhosamente, pois ao mesmo tempo afirma e nega a mesma coisa.

Terá o amigo a coragem de tirar esta conclusão?

Entretanto, é a única que se pode tirar, seguindo a sua interpretação.

Pobre ódio protestante!.

É a aplicação da sentença dos Provérbios: Odium suscitai rixas: - o ódio suscita as brigas (Pv.10,12).

Todas as brigas ou objeções protestantes são oriundas do ódio ignorante que dedicam à Igreja Católica.

A palavra de Jesus Cristo pode ser cristalina como for, mas os protestantes examinarão primeiramente o que ensina a Igreja Católica, para depois dizerem o contrário.

O presente exemplo é frisante, como o são aliás todas as polêmicas já publicadas.

No caso presente Jesus Cristo afirma que a carne que vai dar a comer não é a sua carne atual, mas a sua carne glorificada após a sua morte, pela ressurreição.

Por isso, ele fala no futuro: - O pão que eu darei é a minha carne (Jo6,52).

Devia dar este pão, na última Ceia.

Não compreendendo os judeus este milagre passivei à onipotência divina, o Salvador lhes mostra que devem receber as suas relações com fé, e não em sentido materialista.

Não se tratava de seu corpo, no estado presente, mas no estado glorificado, após a ressurreição.

Cuidado, católicos, com o veneno protestante. A verdade católica é quase sempre a negação do que eles negam.

Combatei-lhes os erros.. e ficai sempre firmes no ensino da Igreja Católica, a única verdadeira.

DECIMA QUARTA POLÊMICA

Objeções e respostas populares

SOBRE VÁRIOS ASSUNTOS

Um amigo mandou-me uma lista de objeções recolhidas no meio do povo.

Não são dificuldades científicas nem sequer religiosas, mas apenas objeções contra o bom senso, que certos inimigos da Religião, indiferentes ou ignorantes, formulam, sem dar-se ao trabalho de examiná-las de perto para dar-lhes a resposta que dita o bom senso de cada um.

Com a vênia do autor, reproduzo aqui a carta e as objeções, dando-lhes uma resposta curta, mas decisiva.

Ilmo. Sr. P. ]úlio Maria.

Meus pais foram católicos, e por isso segui por muitos anos a religião que me foi ensinada por eles; sou batizado, casado na Igreja e meus filhos são todos batizados. De certo tempo para cá, devido à leitura do jornal "A Lanterna'', estou me tornando um pouco descrente em vista das dúvidas que tenho sobre os fatos que vão em forma de perguntas junto a esta.

Peço-lhe, pois, ao sr. que explica com tanta clareza tudo que se lhe pergunta, me explique uns pontos para que eu não perca a crença de meus pais.

Penso que Deus, tendo criado o mundo e nos colocado aqui, devia ter-nos dado mais clarividência para melhor podermos desviar-nos dos erros; e, no entanto, cerca-nos de perigos e depois não nos perdoa.

I - Más leituras

Dois pontos temos a salientar nesta primeira parte da consulta:

1 - a leitura de jornais perversos.

2 - a preservação do erro.

O amigo compreenderá imediatamente a oposição existente entre estes dois elementos.

Suponhamos que um amigo fosse ter com o Senhor e lhe dissesse: Olhe, amigo, estou perdendo a saúde, sinto o enfraquecimento, devido ao excesso de álcool que vou ingerindo; parece-me que Deus devia ter feito o organismo do homem mais forte para que pudesse resistir a umas cachaçadas completas.

Que é que o senhor responderia?

De certo responderia o seguinte: - Olhe, meu amigo, gozar saúde e beber cachaça são duas coisas que não combinam. O senhor deixe de matar o bicho, senão o bicho o mata. De duas uma, ou deixe de beber, ou renuncie à saúde. A resposta seria curta, mas clara e segura.

Deixe-me o amigo fazer-lhe a mesma pergunta. Ler jornais imorais, comunistas, que nada respeitam neste mundo, jornais infames que são uma verdadeira vergonha para um povo civilizado, como é a tal lanterna, e querer conservar a sua fé, isto é impossível. São dois antípodas.

A lanterna é a lanterna do diabo.

A fé é o farol de Deus.

Querer aproximar os dois é impossível. Só o cheiro nauseabundo, ou o miasma pestilencial de tal lanterna é capaz de apagar a fé na alma de um cristão, como o cheiro de certas podridões é capaz de sufocar a respiração de um peito humano.

Tal lanterna nunca devia ser encontrada num lar católico.

É a baixeza e a infâmia personificadas.

A fé é um imenso dom de Deus. Deus nos dá a fé, mas nós devemos conservá-la, preservando-a dos perigos e cultivando-a pela prática da religião. Quem se aproxima inútil e imprudentemente de um abismo, não pode queixar-se de nele cair.

Quem põe a causa, é responsável pelo efeito.

Deus faz tudo o que pode fazer para afastar-nos do mal: avisa-nos, mostra o abismo, indica os meios de evitá-lo, de modo que se alguém cair nele, é porque o quer obstinadamente.

Ora, contra estes, Deus nada pode fazer sem violar a nossa liberdade.

E Deus deve respeitar esta liberdade, pois sem ela o homem deixaria de ser homem, para tornar-se animal.

É, pois, dever nosso afastar o mal intelectual (e a lanterna é um dos maiores) assim como há males morais e físicos que podem nos prejudicar.

Deus perdoa tais faltas, é certo, mas à condição que haja arrependimento e vontade de afastar os perigos.

Não é clarividência que nos falta, mas, sim, generosidade, e a generosidade alcança-se pela oração.

Como o meu consulente é homem de caráter, estou certo que ele compreenderá a minha resposta, reduzindo-a imediatamente em prática, deixará de assinar e de ler tal imundície que é a lanterna, e lerá, ao contrário, jornais católicos, que explicam e defendem a religião.

Com esta simples medida, o amigo sentirá a sua fé aumentar e afervorar-se, e ficará digno da fé de seus pais e de sua mocidade.

II - O diabo

Se Deus é onipotente, como é que Ele consente que o diabo continue a perseguir as almas por ele criadas?

Deus permite ao diabo tentar aos homens, para dar-lhes uma prova de seu valor e de sua generosidade.

As tentações do demônio não são um mal, pois delas o homem pode fazer uma fonte de bem; os covardes, ao contrário, deixam-se enganar pelo demônio.

O pecado não está na tentação, mas, sim, no consentimento.

Ora, Deus nos dá sempre a graça de resistir ao demônio; basta pedi-la.

Deste modo, o homem conserva-se na humildade, reconhece a sua fraqueza e pratica a oração, recorrendo a Deus: que são dois grandes meios de santificação.

Se Deus é inimigo do diabo, por que pune os que pecam?

Sim, Deus é inimigo do diabo; nós devemos sê-lo, afastando-nos de suas ciladas.

Caindo em pecado, Deus deve castigar-nos, pois somos bem nós que fazemos o mal, cometendo o pecado.

III - As missas

Se Deus consente que as almas pecadora:s vão para o purgatório, o que é infalível, de que valem então as missas?

Sim, Deus consente, para que as almas com leves pecados possam expiar as suas faltas no purgatório e depois entrar no céu.

As almas no purgatório nada mais podem para si mesmas; somos nós que devemos oferecer para elas os méritos de jesus Cristo, em sua paixão e morte. Ora, sendo a missa a renovação incruenta do sacrifício sangrento do Calvário, não pode haver coisa mais meritória que este sacrifício, para o alívio e libertação das almas do purgatório.

IV - As doenças

Se Deus teve poder para criar o universo e colocar nele os seus filhos diletos, que são os homens, por que fez a tuberculose, o cancro, a lepra e outras doenças?

Aqui há uma grande confusão nas ideias do consulente.

As obras de Deus são perfeitas, e Deus não pode fazer obras más ou imperfeitas, porque repugnam à sua bondade. Deus não fez a tuberculose, nem o cancro, nem a lepra, e nenhuma outra doença.

Criou o homem dotado de uma saúde perfeita, sem sofrimento e sem morte; mas criou o homem livre.

O homem abusou desta liberdade, revoltou-se contra Deus e lançou-se em todas as aberrações do orgulho e da sensualidade.

Daí o estrago do organismo humano, pela aparição de todas as doenças.

A doença é uma negação: a negação da saúde.

Deus criou a saúde, mas o homem estragou-a pelo abuso, cujas consequências são transmitidas de pai a filho, de geração a geração, ocasionando as numerosas doenças hoje conhecidas.

Deus não pode criar uma negação.

Ora, a doença é a negação da saúde como a morte é a negação da vida, como a loucura é a negação da inteligência. Deus criou saúde, vida, inteligência, mas o homem afasta estes dons e os estraga por sua própria vontade.

Os causadores de tais males somos nós, unicamente nós.

É por isso que o Evangelho diz que "Deus não é o Deus dos mortos, mas, sim, dos vivos. - Non est Deus mortuorum, sed viventium" (Mt22,32).

Isto: não é o Deus da negação, mas da afirmação; a vida é a afirmação; a morte é a negação da vida.

V - Os insetos

Qual é a vantagem da saúva, do rato, do percevejo, da cobra e outros entes malfazejos?

Tais entes devem ter sua utilidade, visto serem criaturas de Deus, desde que Deus nada faz de inútil.

Em toda criatura é preciso distinguir duas coisas: o lado benfazejo e o lado nocivo.

Isto existe entre os homens como entre os animais. Não há homem tão ruim que não tenha qualquer qualidade boa, como não o há tão bom que não tenha, para uns, um lado ruim.

Assim também os animais.

Não quero entrar aqui em considerações zoológicas, o que é inútil, pois o meu consulente pode ver em qualquer livro de historia natural a utilidade dos sapos, cobras, ratos, etc., e mesmo de saúva, percevejos, etc.

Certos insetos, como percevejos, pulgas, piolhos, etc., que parecem ser os mais aborrecidos, têm uma utilidade: obrigam os homens a cuidarem melhor do asseio, limpeza, ordem, etc.

Sem os inconvenientes destes insetos, quantas pessoas se descuidariam da questão de higiene e do asseio, tão necessárias para a conservação da saúde.

Os ratos podem entrar no rol, pois obrigam o homem a conservar a ordem em sua casa, em suas provisões, etc.

A saúva obriga o lavrador a percorrer as suas terras, vigiando as plantações, cavando o terreno, etc...

A cobra tem ótimas qualidades, como a rã, sapo, etc., destruindo muitos insetos nocivos às plantas e às criações, sem falar da limpeza com que um dono de casa deve conservar jardins e quintais, para evitar estes perigosos hóspedes.

O próprio percevejo, por tremendo que seja, tem a sua utilidade, obrigando as famílias a não se descuidarem do asseio completo de suas camas e outros moveis.

Examine o amigo de perto todos os insectos e encontrará em todos eles, ao lado da parte nociva, uma real utilidade em qualquer ramo da vida humana.

VI - Cor e inteligência

Se Deus é pai de todos, como faz ele uns filhos de uma cor, outros de outra; uns com inteligência, outros bobos?

Deus fez todos os homens iguais, no sentido que todos são filhos dos mesmos pais: Adão e Eva; a questão de cor nada influi na raça humana, mas é uma mera questão de clima, alimentação, de costumes, etc.

Os habitantes dos países frios são alvos; dos países menos frios são brancos; de países quentes são bronzeados, ou amarelados; e os de outros climas tórridos, são negros.

Quanto à inteligência, todo homem é inteligente, porém, em uns há uma inteligência rudimentar, porque não foi cultivada, enquanto em outros há uma inteligência lúcida, extensa, fruto do estudo, observação, meio, etc.; tudo isso são meros acidentes, que em nada influem na parte constitutiva do homem.

VII - Os animais

Que mal fazem os animais para sofrerem também as dores físicas?

Os animais sofrem dores físicas porque pertencem à ordem sensitiva.

Ora, desde que sentem, devem sentir o prazer e a dor; pois os dois combinam-se necessariamente.

É impossível que um animal sinta a satisfação física e não sinta a dor física.

Tirando a sensação dolorosa, tem que tirar a sensação agradável, e neste caso o animal deixa de ser animal para tornar-se planta.

Poderia dizer, então, com igual razão: Por que a planta cresce e não a pedra?

Porque a planta pertence ao reino vegetal, e a pedra ao reino mineral.

É preciso deixar cada ser em seu reino próprio, deixando-lhes as qualidades e defeitos provenientes destas mesmas qualidades.

Objeções e respostas

O homem é um ser inteligente, porém a inteligência pode ser desenvolvida ou oprimida e daí o homem inteligente ou tolo.

O animal é sensitivo; deve, pois, sentir a satisfação e o sofrimento físicos.

A planta é vegetativa; é preciso que tenha, pois, maior ou menor crescimento.

A pedra é mineral; é preciso, pois, que haja minerais mais ou menos duros.

Tudo isto pertence ao próprio reino, e é essencial a este reino.

VIII - Conclusão

Como vê o amigo, não basta deixar impressionar-se pelos fatos exteriores, ou aparências; é mister penetrar no amago dos seres e descobrir neles a razão de sua existência.

Todas as obras de Deus são perfeitas, e nelas não há nada de inútil.

Dei perfecta sunt opera (Dt32,4), diz a Bíblia: - Opera Domini, universa bana valde (Ecle.39,21).

Notando qualquer defeito nestas obras, tal defeito não vem de Deus, mas dos homens.

O homem devia ser a coroação das obras divinas, mas, infelizmente, ele é muitas vezes o perturbador e até o destruidor destas obras.

O mal existe neste mundo, é certo, mas é ocasionado pelos homens.

Não limitemos nossas vistas à superfície destas obras, mas penetremos até no seu amago, e veremos em todas elas o dedo de Deus, a sua grandeza, a sua bondade, e muitas vezes a baixeza e a miséria do homem, que não sabe ou não quer ver.

O céu canta a gloria divina, e o firmamento proclama as obras de suas mãos, diz o salmista (Sl18,2).

IX - Os milagres de hoje

Outra consulta: jesus disse: Em verdade vos digo que, se tiverdes fé, podereis até transportar. montanhas (Mt21,21,22).

O consulente cita muitos outros textos, provando que, tendo fé, o homem tudo alcança, e no fim pergunta: Por que os católicos de hoje não fazem mais o que faziam no princípio?

Não curam enfermos, não expulsam demônios, não ressuscitam mortos, não dão a vista aos cegos, fala aos mudos, ouvido aos surdos.. É preciso que façam hoje o que foi feito no princípio.

Perfeitamente; estamos de acordo.

Mas, parece-me que o meu digno consulente está pouco familiarizado com a leitura da vida dos santos e do movimento religioso de nosso século.

O tempo dos milagres não passou nem terminou, e talvez não houve tempo em que Deus fizesse tantos milagres como em nossos dias. O meu consulente parece ignorar isto. Leia um pouco os "milagres e graças de Santa Teresinha". São mais de 8.000 e há entre eles curas de cegos, de mudos, de paralíticos e até resurreição de mortos.

E isto é de hoje . é moderno, é de cada instante.

Se o meu consulente fizesse uma viagem a Lourdes, averiguaria alí milagres assombrosos: cegos que veem de repente, surdos que ouvem, tuberculosos, morféticos que são repentinamente curados pela SS. Virgem.

E eu posso dizer a mesma coisa de Nossa Senhora de Fátima, em Portugal, de Pontmain, La Sallete, em França, de Beauring, na Bélgica.

Na Alemanha há uma moça estigmatizada, Teresa Neumann, vivendo só pela Sagrada Communhão, a qual revela o passado, prediz o futuro e faz os mais assombrosos milagres.

Temos santos no céu que fazem milagres; temos santos na terra que os imitam; temos santuários por centenas, onde Jesus Cristo e Maria SS. manifestam o seu poder e a sua misericórdia.

Não são os milagres que faltam para acreditar na Igreja Católica, pois somente ela possui o dom dos milagres; o que falta apenas é gente que queira ver, compreender e tirar a conclusão prática destes milagres.

O milagre é como o carimbo divino.

Somente a Igreja Católica tem milagres e possui homens que fazem milagres.

O protestantismo, com suas inúmeras seitas, "não chegou sequer a curar um cavalo manco", como disse um dos seus chefes, porque o demônio não possui o dom de fazer milagres.

A conclusão é que hoje ainda, como outrora, há milagres, há santos, como havia no principio do Cristianismo.

X - O juízo final

Um católico manda-nos a seguinte consulta:

"Venho com esta fazer-vos uma consulta que me foi feita por um protestante e por um católico destes que dão muita razão aos amigos de Martinho Lutero. Eis a consulta:

Se a Igreja Católica, Apostólica, Romana, (ou Igreja Romana, como dizem os protestantes) ensina que no fim do mundo serão todos julgados, como pode ser isto, se, digo, serão todos julgados e os justos terão a recompensa eterna e os maus a condenação, e como pode ser isto se pela doutrina da Igreja, já os justos estão no Reino dos Céus, os quais são os santos, e os maus no inferno. Pela consulta os acima citados desejam saber se os Santos vão de novo ser julgados como também os condenados no inferno".

Resposta:

A duvida do digno consulente provém de uma confusão entre o Juízo particular e o Juízo final.

O juízo particular terá lugar logo após a morte. São Paulo escreve: está decretado que todos os homens irão de morrer e o juízo há de acompanhar a morte (Hb9,27).

Este primeiro juízo fixa irrevogavelmente a sorte do homem, como vemos no caso de Lázaro e do mau rico, estando ambos já com a sorte que lhes cabe eternamente (Lc16,22).

O Juízo final existe também. É o próprio Jesus Cristo quem o proclamou perante Caifás e o Sinédrio: Vereis um dia o Filho sentado à direita do poder de Deus, e vindo nas nuvens do céu (Mt26,64;Mc14,63).

Este juízo final nada mudará da primeira sentença, mas manifestará publicamente, perante o mundo reunido, a sabedoria e a justiça de Deus, como servirá de exaltação publica de jesus Cristo, de triunfo dos eleitos e de confusão dos réprobos.

Tudo isto é indicado na Sagrada Escritura.

O Pai confiou ao Filho o julgamento, para que todos tributem ao Filho as honras que - dão ao Pai (Jo5,22).

Jesus Cristo fará a separação do trigo e do joio, das ovelhas e dos bodes (Mt 25,32).

Não se trata, pois, de um segundo Juízo propriamente dito, mas, sim, de uma solene e pública confirmação do primeiro Juízo, que manifesta a justiça de Deus, a glória dos eleitos e o castigo dos réprobos.

Tal é o ensino católico, e tal é a única verdade sobre o caso, ensinada pelo próprio Jesus Cristo.

Será bom que o tal protestante estude um pouco a Bíblia, e ocupe-se mais em compreendê-la do que carregá-la debaixo do braço.

XI - As emendas religiosas

Outro leitor manda-nos um longo artigo do sr. A. de Macedo Costa, sobre as emendas religiosas do anteprojeto religioso, pedindo a nossa opinião sobre as ideis expendidas.

O tal artigo não merece refutação, pois ele já se refuta por si mesmo.

Vê-se que o escritor é um destes católicos de nome, de tradição, sem compreensão do que é e do que exige a religião.

Está ele com receio de que as emendas religiosas provoquem novos debates e ataques entre católicos e anticatólicos.

O seu argumento, que não é argumento, é o seguinte, mudando apenas do terreno religioso, para o terreno social.

Os homens bons e honestos não devem opôr-se à ladroeira, ao assassínio, à libertinagem, porque tal oposição pode ser causa de luta entre os bons e os maus, excitando os ruins a resistirem aos bons.

Todo o raciocínio do sr. A. de Macedo Costa está resumido nesta frase.

E tal ideia chama-se liberalismo.

Este senhor pretende que não se deve falar de religião, nem de instrução religiosa, para não contrariar os maçons, os protestantes, os espíritas, os indiferentes.

É a paz do cão e do gato.

Não, caro amigo, a Igreja não sacrifica os seus direitos divinos em frente dos falsos direitos dos homens.

A Igreja não verga e não adapta a sua doutrina às opiniões dos homens, para atraí-los ou granjear-lhes amizade.

A Igreja é divina; sustenta uma doutrina divina, tem direitos divinos, e como tal, tais direitos não podem ceder diante dos direitos dos homens, como Deus não pode ceder diante dos caprichos dos homens.

A Igreja quer a liberdade de ensinar a sua doutrina, e por isso quer que seus princípios, que são os princípios básicos do progresso e da felicidade, encontrem o apoio nas leis das nações.

Além disto, o Brasil é um país católico, e como tal tem direito a ver respeitada a sua fé, por aqueles que escolheu como representantes, para a organização da Constituinte.

A atitude nobre e firme da Igreja, pode suscitar o ódio dos sectários; mas, pouco importa, se esta Igreja sabe reivindicar os seus direitos.

Ela sabe sofrer; a única coisa que não sabe e não pode fazer é morrer, porque é eterna.

Tal artigo é um miserável pasquim, de uma doutrina hipócrita e falsa; porém, os católicos sabem compreender os seus direitos, como sabem também descobrir a cabeça da serpente, ainda mesmo quando escondida sob as rosas de aparências religiosas.

Longe de nós o liberalismo socialista e covarde!

O povo católico saberá dar a este liberalismo o que ele merece, isto é, o desprezo; saberá, sobretudo, obedecer a voz dos seus chefes, aos seus Bispos, à orientação social que tão nobremente lhe prescreve o ilustre Cardeal D. Sebastião Leme.